ENSAIO
* Roney Marcos Pavani
Com a eclosão da Primeira Guerra, John Ronald Reuel Tolkien procurou conciliar sua vida acadêmica (um promissor estudante de idiomas antigos em Oxford) com o posto de Segundo Tenente no Corpo de Fuzileiros de Lancashire. Os oficiais não podiam fazer amigos entre si, pois o sistema não o permitia; mas cada um deles tinha um ordenança, um empregado incumbido de cuidar do oficial e do seu equipamento. Foi assim que Tolkien veio a conhecer muito bem vários dos seus subordinados. Muitos anos mais tarde, ao comentar um dos principais personagens de The Lord of the Rings, escreveu: “Meu ‘Sam Gamgee’ é, na verdade, um reflexo do soldado inglês, dos soldados rasos e ordenanças que conheci na guerra de 1914, e reconheci como tão superiores a mim”.
Essas palavras são frutos das lembranças de um homem no ocaso de sua vida. E as memórias que evoca nesse momento, como não poderia deixar de ser, estão ligadas ao contexto vivido por ele no presente. Já diria Halbwachs, “lembrar o passado é refletir sobre o semelhante”, ou ainda: “a lembrança é, em larga medida, uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada” (HALBWACHS, 1990, p. 67).
Samwise Gamgee, que possui um papel fundamental em toda a trama de The Lord of the Rings, representa o servidor fiel aos seus ofícios e leal ao seu patrão. Não é muito inteligente, mas é bastante audacioso. O autor pode conceber um personagem dessa forma, pois, forjou as suas visões de mundo com base nessas experiências. Sam seria, tal qual seus antigos companheiros de armas, um exemplo de que, no mundo real, há indivíduos superiores e inferiores. Sendo o dever dos primeiros proteger, e o dos segundos, servir. Não é de se estranhar que Tolkien buscasse no passado pré-moderno e pré-Revolução Francesa a inspiração para as suas histórias.
Em 1916, Tolkien partiu para a França, onde teve participação na linha de frente da Batalha do Somme. Entre as impressionantes 1,1 milhão de vítimas resultantes desse combate, estava Rob Gilson (1893-1916), um de seus amigos do clube de leitura da faculdade. O impacto dessa experiência o arrebatou terrivelmente durante muitas décadas, talvez por toda a sua vida. Mesmo nos anos 1940, enquanto compunha The Lord of the Rings, isso pode ser percebido ao vermos o autor se despir da linguagem poética tão característica do restante da obra, e substituí-la por uma descrição crua e fria da paisagem.
O trecho em questão se encontra em um capítulo intitulado The passage of the marshes (“A passagem dos pântanos”). Nela três personagens (Frodo, o já citado Sam e Gollum) estão diante de uma imensa zona pantanosa, palco de uma épica batalha vários séculos antes. Um deles (Gollum) fala aos outros a respeito dos cadáveres submersos, e é como se o ex-oficial Tolkien falasse aos seus leitores acerca da Batalha do Somme pela boca do personagem: “Jazem em todas as poças, rostos pálidos, nas profundezas das águas escuras. Eu os vi.
Rostos repugnantes e maus, e rostos nobres e tristes. Muitos rostos altivos e belos, e ervas em seus cabelos prateados. Mas todos nojentos, podres, todos mortos. Ali nada vivia, nem mesmo as excrescências leprosas que se alimentam da podridão. As poças sufocantes estavam cheias de cinzas e lama que se espalhava, como se as montanhas tivessem vomitado a imundície de suas entranhas sobre as terras que as circundavam”.
“Poças”, “cinzas”, “lama”, “mortos”: elementos típicos da guerra de trincheiras do Front Ocidental, mais ainda, da chamada Terra de Ninguém: “um caos de crateras de granadas inundadas de água, tocos de árvores calcinadas, lama e cadáveres abandonados” (HOBSBAWM, 1995, p. 27).
Tal descrição poderia ser facilmente encontrada em um romance realista do Pós-Guerra, como o Nada de novo no front, de Erich Maria Remarque: “Passamos por algumas semanas de chuva: céu pardacento, terra encharcada, pardacenta, morte pardacenta. Quando partimos (…) a umidade logo penetra em nossos casacos e fardas, e ficamos assim encharcados durante todo o tempo em que estamos nas trincheiras. (…) Os fuzis ficam cobertos de crostas de lama endurecida, os uniformes também, tudo é fluido, tudo se dissolve e se desagrega: a terra é uma massa que pinga, úmida e oleosa, formando poças amarelas nas quais se desenham espirais vermelhas de sangue, em que os mortos, os feridos e os sobreviventes afundam-se pouco a pouco”.
Contudo, insisto: o texto literário não é um espelho da realidade. Como Benjamin e Sarlo já assinalaram, ele não carrega esse compromisso. Afinal, muito provavelmente, não havia entre os corpos vistos pelo jovem Tolkien quem possuísse “cabelos prateados” (uma referência aos fantásticos elfos); tampouco havia “montanhas” naquele lugar (em toda a região do Rio Somme, no nordeste da França, a altitude chega a, no máximo, 300 m). No entanto, essa é a guerra como nosso autor a conheceu. Fazia parte de suas memórias.
É como nos diz Maurice Halbwachs: “Acontece com muita frequência que nos atribuímos a nós mesmos, como se elas não tivessem sua origem em parte alguma senão em nós, ideias e reflexões, ou sentimentos e paixões, que nos foram inspirados por nosso grupo. Estamos então tão bem afinados com aqueles que nos cercam, que vibramos em uníssono, e não sabemos mais onde está o ponto de partida das vibrações, em nós ou nos outros.
Quantas vezes exprimimos então, com uma convicção que parece toda pessoal, reflexões tomadas de um jornal, de um livro, ou de uma conversa. Elas correspondem tão bem a nossa maneira de ver que nos espantaríamos descobrindo qual é o autor, e que não somos nós. ‘Já tínhamos pensado nisso’: nós não percebemos que não somos senão um eco”.
Também faziam parte as histórias que ouviu e leu desde a infância, como as obras de George Macdonald (1824-1905) e os livros de fadas de Andrew Lang (1844-1912), que serviram de base para a sua concepção dos elfos. Eles seguem a tradição das lendas nórdicas, nas quais Tolkien sempre se inspirou. Tratam-se de seres inferiores aos deuses, mas, ainda assim, possuidores de grande poder. Além disso, altos, belos e solenes.
Autores como Macdonald e Lang, inseridos no romantismo vitoriano do século XIX, compuseram suas obras em um ambiente de crítica à Revolução Francesa e a todo o seu ideal racionalista e universalizante. O projeto das Luzes era tido como um mal e deveria ser rechaçado. Nada mais compreensível que enfatizassem, em suas criações, aquilo que supostamente poderia constituir a essência inglesa, ou suas origens: contos folclóricos e tradicionais, ambientados em florestas ou regiões rurais.
Tudo isso estava em voga. O nacional ao invés do cosmopolita, o local ao invés do universal, o particularismo inglês ante uma paisagem urbana e industrial, cada vez mais monótona e semelhante ao resto da Europa. Que Sir Walter Scott (1771-1832) tenha inaugurado o romance histórico por essa época, reavivando as lendas arturianas – esquecidas desde o século XVI – com o seu Ivanhoe (1820), não é coincidência.
Ora, é certo que Tolkien não era nenhum aristocrata. Mesmo assim, ele tinha acesso a livros e à instrução em instituições de elite (chegou a Oxford), como bolsista. Seu pai fora um alto funcionário do Bank of England, e mesmo que tenha falecido tragicamente (Tolkien tinha somente 4 anos de idade), deixou à esposa e aos filhos uma pensão satisfatória, sobretudo durante a sua primeira infância, até a morte da mãe (ele então com 11 anos).
Nesse meio tempo, sua família construiu boas relações com sacerdotes católicos, o que também foi fundamental para povoar o seu imaginário e suas memórias de infância com o que era escrito e lido na virada do século XIX para o XX.
Pela mesma razão, desde a sua adolescência, Tolkien guardou um profundo interesse pelas origens do idioma inglês. Ele leu bastante material sobre e em inglês médio (como os Contos da Cantuária, de Chaucer), e, sobretudo, em anglo-saxão (ou inglês antigo), a língua falada na Bretanha antes da invasão normanda no século XI. Como não poderia deixar de ser, mais cedo ou mais tarde, ele se encontraria (e se encantaria) com o poema Beowulf. Considerada a mais antiga obra literária em inglês, foi provavelmente composto no século VIII.
Este poema, curiosamente, passa-se inteiramente fora da Inglaterra. Toda a ação transcorre na Escandinávia, porque o poema se baseia em lendas levadas à Inglaterra junto com a nova língua. Era de lá que nosso autor buscava as origens dos ingleses. Um cenário de relevo acidentado, mares bravios, fiordes e repleto de altas montanhas, uma marca registrada no relevo do seu próprio universo. As tais montanhas que “vomitavam a imundície de suas entranhas sobre as terras que as circundavam”, como visto na já citada Passagem dos pântanos.
Aliás, naquela curta cena de The Lord of the Rings pudemos identificar, ao menos, três memórias embaralhadas de Tolkien: a) a de ex-combatente da Batalha do Somme; b) a da criança de classe média com acesso a livros de fantasia; c) a do estudante pós-vitoriano interessado nas origens linguísticas da nação inglesa.
Dito de forma esquemática, tratam-se de três eixos que representam três dos grupos sociais dos quais ele fez parte ao longo de sua vida. Embebidos nestes eixos estão três formas de pensamento e três concepções de tempo distintas. Cada uma dessas linhas imaginárias não tem começo nem fim, mas tem um ponto em comum: a consciência do escritor. É do cruzamento delas que nasce o seu talento e a especificidade da sua obra.
De volta ao autor de A Memória Coletiva: “Cada um é membro de vários grupos, participa de vários pensamentos sociais, seu olhar mergulha sucessivamente em vários tempos coletivos (…). Na realidade se, aproximando várias consciências individuais, podemos reposicionar seus pensamentos ou seus acontecimentos em um ou vários tempos comuns, é porque a duração interior se decompõe em várias correntes de pensamentos que têm sua origem nos próprios grupos. A consciência individual é apenas o lugar de passagem dessas correntes, o ponto de encontro dos tempos coletivos” (HALBWACHS, 1990, p. 126).
Em termos mais simples, é possível imaginar que houve vários ex-combatentes que sobreviveram aos horrores da Primeira Guerra (como C. S. Lewis); houve também crianças de classe média, com acesso a MacDonald, Lang e Scott, na virada do XIX para o XX (como o irmão de Tolkien, Hilary); igualmente, houve estudantes fascinados por Beowulf e outros clássicos do inglês antigo (como aqueles que compunham, com Tolkien, o círculo de leituras chamado Tea Club Barrovian Society). No entanto, o único a fazer parte dos três grupos simultaneamente, e de mesclar os três ingredientes em um mesmo elixir foi J. R. R. Tolkien.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
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