Elias de Lemos (Correio9)
No último domingo (18 de fevereiro), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que “o que está acontecendo na Faixa de Gaza não é guerra, mas um genocídio”, e fez referência às atrocidades cometidas pelo ditador nazista, Adolf Hitler, contra os judeus na II Guerra Mundial (entre 1939-1945).
A declaração do presidente brasileiro aconteceu na 37ª Cúpula de Chefes de Estado e Governo da União Africana, em Adis Abeba, na Etiópia: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus”, disse ele, durante uma entrevista coletiva que encerrou sua viagem à África.
Lula respondia a uma pergunta sobre a decisão de seu governo de fazer novos aportes de recursos para a Agência das Nações Unidas de Assistência aos refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA).
A afirmação de Lula deixou o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, ouriçado, com os cabelos “em pé”, subindo no telhado e, desde domingo (18), o governo israelense está esperneando e exigindo um pedido de desculpas.
A comparação, feita por Lula tocou em um assunto delicado: há uma sacralização do holocausto que leva ao entendimento de incomparável; neste sentido, não se compara nada com o holocausto e ninguém a Hitler. Lula não pronunciou a palavra holocausto. Falou do que Hitler fez e, o que ele causou.
Além do pedido de desculpas, Netanyahu conclamou o mundo a repudiar as declarações do brasileiro. A resposta do mundo tem sido um silêncio sepulcral, por parte de chefes de governo e de Estado. Nenhum, nenhum país (até a finalização deste texto) respondeu ao apelo de Israel.
A fala de Lula repercutiu nos quatro cantos da “terra quadrada” e em cada ponto de cada meridiano da “terra redonda”.
Reações à fala do brasileiro
Vamos lá. Primeiro: o mundo se calou diante da fala de Lula (quem cala consente). Segundo: a África do Sul apresentou nova denúncia de genocídio no Tribunal Penal Internacional (TPI), de Haia, na Holanda. Em seguida, 80 países pediram o cessar-fogo e Canadá, Austrália e Nova Zelândia manifestaram preocupação com a iminência de uma catástrofe.
Antes disso, o papa Francisco havia classificado o massacre como “desumano”. Ele disse: “Acredito que todos nós estamos indignados com o que está acontecendo, com essa carnificina, mas devemos ter a coragem de seguir em frente e não perder a esperança”.
Nas entrelinhas, o papa pede para não se deixar levar pelo desânimo e pela suposta impossibilidade de um efeito dominó de violência que jamais será uma possibilidade de paz, mas que, corre o risco de espalhar novos ódios.
Para surpresa geral, o príncipe William, herdeiro do trono da Inglaterra, o qual nunca fala sobre política, quebrou uma regra da realeza britânica e se manifestou pelo “X” (antigo Twitter). Ele escreveu: “Eu como muitos outros, quero ver o fim dos combates o mais rápido possível. Há uma necessidade desesperadora de aumentar o apoio humanitário a Gaza. É fundamental que a ajuda chegue e que os reféns sejam libertados”. Trata-se de uma rara manifestação política por parte da Família Real.
Os Estados Unidos (EUA), aliado histórico e incondicional de Israel, sentiu o impacto das palavras do brasileiro. Até agora foram apresentadas duas propostas de um cessar-fogo. A primeira foi apresentada pelo Brasil (em 18 de outubro), e foi aprovada por 12 países, porém, os EUA fizeram uso do poder de veto e reduziu a proposta a pó. Agora, a Argélia tem uma proposta pronta. Mas, os EUA já anunciaram que são contra.
No entanto, depois do que Lula disse na Etiópia, o governo americano anunciou que vai apresentar uma proposta de cessar fogo. O que terá levado a uma mudança tão repentina?
Lula teve a coragem de dizer a verdade, o que ninguém teve e, com isso, despiu Benjamin Netanyahu. Ele ficou isolado, está perdido e desesperado por apoio. Seu apelo ao mundo não deu certo e ele lançou mão de fake news para atacar Lula. Nesta terça-feira (20) o governo israelense chamou o presidente Lula de “negacionista do holocausto”.
Reações da imprensa
A grande imprensa e seguidores da extrema-direita logo trataram de promover um carnaval tendo como enredo, as palavras do presidente Lula. É impressionante como a grande imprensa se concentra em questões como: prejuízos à imagem do Brasil; fala inadequada e prejuízos comerciais. A mídia ocidental vê mais importância nestas questões, do que a hecatombe que ocorre em Gaza, com a matança de crianças, mulheres, trabalhadores e idosos.
A mídia brasileira não tem correspondente em Gaza, mas em Israel. Não ouve palestinos nos programas de TV, mas pessoas ligadas a Israel. Consulta correspondentes nos EUA e Reino Unido, favoráveis a Israel. Coloca sob suspeita informações vindas de Gaza, e nunca as de Israel. Trata as ações do lado palestino como terrorismo, já as adotadas por Israel são tratadas como defesa. Assim, encobre o genocídio.
A mídia brasileira não esclarece que o Hamas é um grupo terrorista infiltrado no território palestino. Não diz que o grupo não responde pela Autoridade Palestina. Não fala que o Estado de Israel se consolidou em 1948, por meio da ONU, e desde então o País vem oprimindo os palestinos tendo transformado o território deles em uma prisão a céu aberto, a maior prisão do mundo.
A mídia e os extremistas não se atêm ao fato de que, em outubro de 2023, Lula condenou o ataque terrorista do Hamas a Israel naquele 6 de outubro. Em nenhum momento, ele suavizou o grupo terrorista.
Reações de extremistas brasileiros
No Brasil, a extrema-direita, alegando que as palavras de Lula expuseram o País ao “perigo da guerra” começou a surfar na onda e já tem pronto um pedido de impeachment baseado na tese de que Lula tenha cometido crime de responsabilidade.
O pedido é uma ideia da deputada Carla Zambelli (PL-SP) que tem na esteira, o deputado Nikolas Ferreira. Até a noite desta terça-feira, o pedido contava com 113 assinaturas, incluindo, 20 deputados da base aliada do governo; aquele pessoal, o Centrão, que vai onde o dinheiro sopra.
A direita que está condenado a fala de Lula é aquela liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que, com orgulho, disse em uma entrevista que seu bisavô foi soldado de Hitler. E, ao ser questionado se ele se alistaria no exército do sanguinário, ele declarou que sim.
É a mesma direita da deputada Bia Kicis, que se encontrou e posou ao lado da deputada nazista alemã Beatrix von Storch. É a mesma turma do senador Flávio Bolsonaro, que comparou as prisões dos golpistas do 8 de janeiro de 2023 com o holocausto. Quando ele disse essa aberração, não se ouviu um pio da extrema direita. Esses são os hipócritas que pedem o impeachment do presidente Lula.
Contextualizando a declaração
Pois bem. Vamos contextualizar a fala de Lula. O que ele disse? Onde ele estava, quando disse? Para quem ele disse isso? A fala foi impensada?
Antes de chegar à Etiópia, Lula esteve no Egito, onde conversou sobre a ajuda humanitária às vítimas do massacre. Antes e durante a viagem, ele conversou, sobre o assunto, com dezenas de chefes de estados e de governos.
Na Etiópia, ele sabia que a União Africana é o maior bloco, do mundo, de oposição ao genocídio. Ele falou para aqueles líderes que tem a mesma opinião, mas, não se sentiam capazes de falar. E daí, depois que ele se manifestou, o resto se calou (consentiu).
O holocausto foi um acontecimento aterrador! Segundo estimativas, Hitler ordenou a morte de seis milhões de judeus. Um acontecimento incomparável, sem nenhum paralelo na história humana. Daí, o susto com a ousadia de Lula: falou a verdade que todos estão vendo, mas não ousam pronunciar.
A fala de Lula foi descabida? Para uns, sim, para outros não. A incomparabilidade com o holocausto foi dessacralizada. Até o dia 6 de outubro de 2023, o mundo não testemunhava tamanha crueldade quanto a cometida por Hitler. Mas, aquilo que o mundo acreditava ter ficado, apenas, nos registros históricos, voltou a assombrar a humanidade.
Tipificando o que está acontecendo
Quando vimos tamanha brutalidade, crueldade, desumanidade, tamanha falta de empatia, de compaixão? Quando testemunhamos um acontecimento como esse que dói na alma e corta as entranhas de quem é “humano” (humano no sentido literal da palavra)?
A diferença entre as ações de Hitler e Netanyahu (até agora) só diferem na quantidade de inocentes mortos, mas, não na crueldade. Se o governo de Israel estivesse atacando integrantes do Hamas, seria defensável, mas está matando inocentes, sobretudo mulheres e crianças e dilacerando famílias.
Como Lula disse, guerra é caracterizada pelo combate entre soldados. No entanto, não é o que está acontecendo em Gaza. Lá, de um lado há um exército altamente treinado e fortemente armado matando mulheres e crianças. Isso é guerra?
Depois dos atentados terroristas que derrubaram as torres gêmeas, em 2001, matando quase 3 mil pessoas, os EUA declararam guerra ao Taleban; invadiram o Afeganistão e foram atrás de Osama Bin Laden, não saiu matando inocentes. Foi combate, foi guerra.
Lula erra muito na política externa, mas agora, acertou
Lula comete certos erros indefensáveis na política externa. Em 29 de julho de 2023, durante entrevista à Rádio Gaúcha, ele foi questionado sobre o motivo de setores da esquerda continuarem a defender o regime de Nikolas Maduro, na Venezuela, ele respondeu que o conceito de democracia “é relativo: falou excremento (ou merd@ mesmo). Indefensável! Democracia é um conceito absoluto, que não tem nada de relativo. A Venezuela vive uma ditadura e pronto.
Quando Maduro disse que anexaria parte do território da Guiana, Lula errou novamente ao pedir “calma aos dois lados”. Que calma? A Guiana está no seu “canto” e a Venezuela fala em invadir seu espaço; não tem que pedir calma, mas, condenar veementemente a ameaça.
Em relação à Guerra da Ucrânia, ele afirmou que “os dois lados querem a guerra” e perdeu a oportunidade de falar honestamente ou de ficar calado. A Rússia invadiu o território ucraniano, e ele diz que os dois lados querem a guerra!?
Mas, desta vez, ele falou a verdade, porém, a verdade dói e isso é que assustou tanta gente acostumada com a mentira, com as fake news.
Enquanto Israel esperneia exigindo um pedido de desculpas, acreditando que o governo brasileiro abaixaria a cabeça e colocaria o “rabinho entre as pernas”, o presidente se reuniu na última segunda-feira (19) para discutir a expulsão do embaixador israelense do Brasil.
O fulcro dessa questão é que Lula tocou em um ponto delicado: ele mexeu com a estrutura político-religiosa da extrema-direita mundial. Essa que usa de dois pesos e duas medidas. Não há nada que ele faça que vá contentar os extremistas brasileiros; eles sempre serão contra. Eles vivem numa bolha, em uma realidade paralela onde tudo que é promovido pela direita, é aprovado. Mesmo que as ações sejam comparáveis às de Hitler.
A afirmação de Lula na Etiópia é trágica porque é real. Que bom seria se ele estivesse equivocado, mas, para isso, a realidade teria que ser outra. No entanto, pela primeira vez, o mundo assiste a um genocídio transmitido em tempo real pelos meios de comunicação.
Não foram palavras de apoio ao Hamas, mas, de apelo ao sentimento de humanidade. Porém, infelizmente, para tantos extremistas, a palavra “humanidade” tem sentido relativo. Se esqueceram de que assim como a democracia, o conceito de humanidade é absoluto.
Enfim, o presidente não precisa procurar agradar o “rebanho” porque eles obedecem ao “mito, ao messias”. Ele jamais será aceito por eles. O importante é que enquanto eles falam para si, Lula falou ao mundo e está sendo ouvido.
As mães, os pais, os avôs, as avós, os trabalhadores, as trabalhadoras e todos os inocentes agradecem e podem vislumbrar um fio de esperança, uma luz de que o massacre poderá ter um fim para que eles possam dormir em paz e acordar para juntarem os cacos deixados pelo cruel exército genocida.
* O autor é economista, professor, jornalista, escritor e editor-chefe do Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
Fotos da Guerra:
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