* Roney Marcos Pavani
Já faz alguns dias que esse país rememora uma data emblemática de sua história. Trata-se de nada mais nada menos do que os 60 anos do Golpe de Estado de 1964, perpetrado por políticos conservadores, setores da imprensa e do empresariado, membros da alta cúpula da Igreja e, obviamente, militares. O estratagema, fermentado durante cerca de três anos, depôs um presidente legitimamente eleito, no caso João da Silva Goulart (1919-1976) (se este fazia um bom ou um mau governo, não vem ao caso), culminou na ascensão de vários generais ao poder, e mergulhou a República em uma ditadura de 21 anos. Segundo o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em História do Brasil República, entre os mandos e desmandos do regime, foram assassinadas cerca de 500 pessoas (incluindo militares legalistas, como o Coronel Alfeu de Alcântara Monteiro); presos e torturados encontram-se entre 30.000 e 50.000; além de fugas forçadas, demissões e aposentadorias compulsórias, estimadas entre 3 a 6 mil casos. Além disso, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, recém-eleita para a Academia Brasileira de Letras, traz à memória as vítimas indígenas da Ditadura: entre perseguidos, vítimas de desumanização e trabalho análogo à escravidão, torturados e mortos, as cifras chegam a 8.000.
Miseravelmente, ainda existem os saudosistas desse período. É compreensível: além das práticas de força e demais arbitrariedades, a Ditadura Militar revelou-se uma verdadeira máquina de desigualdade. O tal “milagre econômico” (1969-1973), momento em que a economia do país apresentou taxas de crescimento elevadíssimas, dissipou-se com a perda do poder de compra do salário mínimo: em março de 1964 era o equivalente a R$ 1,2 mil, mas ao final do regime, em 1985, era de R$ 620, em valores atualizados. Tudo isso foi fruto de políticas para conter a inflação que, entre 1964 e 1984, foi em média de 64,5% ao ano. Não à toa, em 1965, a fração recebida pelo 1% mais rico era cerca de 10% do bolo total. Somente três anos depois, após medidas adotadas pelos governos militares, a cifra já era de 16%. Além disso, 70% dos trabalhadores não tiveram nenhum ganho relevante entre 1960 e 1970. Não sejamos ingênuos. Há quem defenda a desigualdade e a manutenção dos privilégios, seja em uma democracia ou em um regime autoritário.
O que mais me chama a atenção, porém, é que soluções armadas para problemas políticos não são exceções no Brasil, e sim a regra. Em outras palavras, a presença dos militares nos bastidores (ou mesmo, no palco) do poder é uma constante em nossa história. Pode-se dizer que as vísceras da república brasileira estiveram (e estão) impregnadas de tumores militares. Como veremos adiante, as raízes dessa maldita associação são mais profundas do que parecem. Ora, que em pleno 2024 ainda se ouçam os ecos de frases como “S.O.S. Forças Armadas” ou “Intervenção Militar Já”, inclusive adesivadas em carros e casas dessa cidade, não é mera coincidência.
A 15 de novembro de 1889, a República surgiu a partir de um golpe militar. Descontentes com o melancólico governo de D. Pedro II (1825-1891), e conscientes do seu poder, sobretudo a partir da Guerra do Paraguai (1864-1870), militares de alta patente e grandes cafeicultores depuseram o imperador, e o enviaram junto com sua família para o exílio. Parêntese: antes que algum desavisado me acuse de monarquista, não o sou. O Império Brasileiro, em que pese a sua longevidade (1822-1889), nada mais foi do que um acordo entre grandes oligarcas para manter em funcionamento o nefasto tripé latifúndio-exportação-escravidão. Quando o trabalho compulsório finalmente tornou-se uma impossibilidade, a partir da década de 1860, o regime ruiu, e os outros dois vértices buscaram um novo arranjo. Todavia, esse fato não torna a intervenção de Deodoro da Fonseca (1827-1892) e Floriano Peixoto (1839-1895) menos ilegítima.
Por falar nessas duas figuras, ambos foram os dois primeiros presidentes da República, nascida não só a partir de um golpe militar, mas também como um regime militar. É por isso que, durante muito tempo, o período compreendido entre 1889 e 1894 foi chamado de República da Espada. Oligárquico como a monarquia da Casa de Bragança, só que com marechais à frente. Gente acima dos mortais, esclarecida e de pulso firme, capaz de colocar cada um em seu devido lugar e, assim, ditar os rumos da jovem nação brasileira. Quando o Marechal de Ferro soube que seu sucessor, no caso, o advogado Prudente de Morais (1841-1902), seria um civil e não um militar, quase teve um infarto. Ato contínuo: em protesto, recusou-se a comparecer à posse do novo presidente.
(Confesso que, às vezes, é difícil sustentar a máxima de que a história não se repete…)
Morais e, a seguir, Campos Salles (1841-1913) deram início à sequência de 11 presidentes da Primeira República ou “República das Oligarquias” (1894-1930), quase todos civis; a exceção ficou por conta do Marechal Hermes da Fonseca (1855-1923), sobrinho de Deodoro. Bastante dependente da economia cafeeira voltada ao mercado externo, especialmente para os Estados Unidos, as oposições tiveram força para se organizar a partir da Crise de 1929. Assim, durante a chamada Revolução de 1930, momento da ascensão de Getúlio Vargas (1882-1954) e de elites de outros estados que não Minas Gerais e São Paulo, os militares voltariam à carga (e ao poder). Dessa vez, com novos quadros, formados a partir dos movimentos tenentistas dos anos 1920. Não mais os oficiais encarquilhados que proclamaram a República, mas, ainda assim, militares. Note bem: ideologias à parte, todos convictos do seu papel tutelar junto a sociedade civil.
Os novos militares sustentaram Vargas em seu projeto modernizador e autoritário. Derrotaram a Revolução Constitucionalista de 1932 e sufocaram a Intentona Comunista de 1935 (momento da prisão de Olga Benário e Luiz Carlos Prestes). Na escalada da violência, e a partir da confecção de uma das mais célebres fake news da história – o Plano Cohen – deram ao presidente a justificativa necessária para a implantação do Estado Novo (1937-1945), uma ditadura declarada, responsável por uma máquina repressora que atingiu nada menos do que 30.000 pessoas, segundo o historiador Francisco Teixeira da Silva (UFRJ).
Militares apoiam. Militares retiram o apoio. É questão de conveniência e, evidentemente, sinal de força. Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o retorno apoteótico da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que havia ido lutar na Europa contra o Eixo, Getúlio é deposto no final de 1945, e abre-se o caminho para a primeira eleição presidencial desde 1934. Os dois principais nomes da disputa? Eurico Gaspar Dutra (1883-1974) e Eduardo Gomes (1896-1981). Não por acaso, um General do Exército e um Brigadeiro da Aeronáutica. Na eleição seguinte, Vargas volta ao poder, e faz um governo atribulado, marcado por oposições virulentas, novamente das Forças Armadas. Como se dizia à época: “o Exército depôs. O povo pôs. Agora, o Exército vai depor de novo…” A profecia somente não se concretizou devido ao fatídico suicídio do presidente, em 24 de agosto de 1954.
No entanto, essas pessoas não desistem facilmente e, como víboras do brejo, sabem a hora certa de dar o bote. Uma nova intervenção foi tentada em finais de 1955, de modo a impedir a posse de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976), aliado de Vargas e único governador de estado a ir ao seu velório. Novamente, o plano fracassa. Dessa vez, graças à ação da ala legalista do Exército, encarnada na figura do então Ministro da Guerra, o Marechal Henrique Teixeira Lott (1894-1984). Seria preciso esperar um pouco mais. Cerca de seis anos, para ser mais preciso.
Uma nova oportunidade se desenhou a partir da renúncia imprudente e inesperada do folclórico Jânio Quadros (1917-1992), o “homem da vassoura”, em agosto de 1961. Seu vice, que deveria assumir constitucionalmente sem grandes discussões, era o já citado João Goulart, outro herdeiro político de Vargas, muito mais do que JK. Havia sido seu Ministro do Trabalho, estava em viagem diplomática à China comunista, e não era muito bem visto pelas Forças Armadas. Portanto, era preciso agir. Se a Constituição pregava uma coisa, os militares cuidavam de interpretá-la a seu bel-prazer. Se desembarcasse no Brasil, Jango seria preso por tropas do Exército, em nome da “segurança nacional”. Não o foi. Assumiu. Porém, como presidente de um regime parlamentarista, inventado de última hora por Tancredo Neves (1910-1985), para agradar aos homens de farda. Estes, se por um lado, faziam que sim com a cabeça, por outro cruzavam os dedos e tinham o seu próprio plano B: desestabilizar o governo Jango, com o apoio de empresários e do governo dos Estados Unidos, por meio do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e de uma vasta produção de material audiovisual anticomunista. Mutatis mutandis, era o Brasil Paralelo da época.
O golpe veio, finalmente, na madrugada do dia 31 de março para 1º de abril de 1964, quando o General Olímpio Mourão Filho (o mesmo que, 27 anos antes, compôs o Plano Cohen) deslocou tropas de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro. O resto da história já é bastante conhecido: O General Castelo Branco (1897-1967) ascende ao poder, prometendo dirimir o caos e garantir as eleições presidenciais de 1965. Mentira! Tal pleito só ocorre em 1967, e, ainda assim, de forma indireta, uma fachada. Vence o Gal. Costa e Silva (1899-1969), mentor do dispositivo mais brutal de toda a história da República, o infame Ato Institucional (AI) n. 5, promulgado em dezembro de 1968. Entre outras coisas, punha fim ao Habeas corpus para crimes políticos (na prática, para quaisquer crimes) e dava carta branca para a prática da tortura. Sabe-se que o único voto contrário à promulgação do Ato veio do vice-presidente Pedro Aleixo (1901-1975). O que mais se poderia esperar de um civil, não é mesmo? Pois a vingança contra ele viria no ano seguinte: Costa e Silva adoece, vítima de um aneurisma. Quem deveria assumir? O vice, ué! Mas não era um vice adequado aos caprichos dos militares. Aleixo foi escanteado e, em seu lugar, formou-se uma Junta Militar Provisória, responsável por empossar, mais tarde, o Gen. Emílio Garrastazu Médici (1905-1985). Graças a essa cambalacho, a esse golpe dentro do golpe dentro do golpe, foi possível manter o aparelho repressor do regime a todo vapor por, pelo menos, mais cinco anos.
Aprenda uma lição, estimado leitor: os militares desse país (aliás, de lugar nenhum), quando se bestam a fazer política, nunca são capazes de obedecer às regras que eles próprios criam. O cinismo e o arbítrio estão na ordem do dia. De sua parte nada se pode esperar, se não escuridão e horrores. Nesse sentido, o grande Ulysses Guimarães (1916-1992), figura ímpar na luta pela redemocratização nos anos 1980, estava certo ao proclamar: “Temos ódio à ditadura! Ódio e nojo!”
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
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