OPINIÃO
* Roney Marcos Pavani
O bolsonarismo é a coisa mais patética da história do Brasil. Disso poucas pessoas (de fora da bolha de ignorância que ele encerra) têm dúvida. Não só por ser um vazio de ideias e projetos políticos concretos para o país, além de um poço abissal de contradições. É bem pior. Vejamos: em nenhum outro momento desde que esse país se tornou uma república de massas até hoje, pode-se presenciar momentos tão, digamos, constrangedores; que vão do infame ao grotesco, passando pela total perda da dignidade.
Refiro-me aqui a pessoas que, em um passado não tão distante, vestidas com camisas da seleção brasileira de futebol (muitas delas piratas) ou enroladas na bandeira nacional (algumas vezes dos EUA, outras da Ucrânia ou de Israel), se prestaram a: 1) emular toscamente marchas militares, ao melhor estilo “passo-de-ganso” (com direito a continências afetadas, dancinhas ridículas ebrados roucos de guerra, à escolha do freguês); 2) parodiar o clássico “Florentina”, de Tiririca, e vibrar com uma cantiga de exaltação a medicamentos que, supostamente, combateriam o Coronavírus (“Cloroquina, Cloroquina / Cloroquina, vem pro SUS. / Eu sei que tu me curas, / em nome de Jesus!”); 3) prostrar-se em frente a um muro de concreto, e chorar copiosamente diante do que parece ser o fim do mundo ao saber do resultado das eleições; 4) entrar em verdadeiro êxtase, elevando aos mãos aos céus, batendo violentamente no peito e gritando frases triunfalistasdo tipo “O Brasil é nosso!!!!”, ao ser informado (obviamente, pelo Whatsapp) da prisão (obviamente, fictícia) de um dos ministros do Supremo Tribunal Federal (obviamente, Alexandre de Moraes); 5) rodear um único e isolado pneu de caminhão, e cantar em tom solene e em sua homenagem o Hino Nacional; 6) fazer uso de celulares acesos sobre a cabeça para pedir socorro (resta saber se de generais ou de alienígenas, de todo modo, seria inútil); 7) dependurar-se na frente de uma carreta e ser arrastado por vários quilômetros por uma rodovia (confesso que essa é a minha favorita…). Ah, e claro, 8) acampar durante semanas em frente a quartéis pelo Brasil afora, suspirando, gemendo e chorando por uma intervenção dos militares que, com toda a certeza, viria dentro de 72 horas. Ou seriam 772? Quem sabe 7.272? Pois é, dava até pena.
Parêntese: As Forças Armas, excetuando-se algumas dúzias de aloprados, jamais embarcariam (como, aliás, não embarcaram) em uma aventura golpista, isto é, não passariam por cima das instituições, tal qual fizeram em 1937 e 1964. E isso porque simplesmente não lhes convinha: 1. Não haveria apoio internacional à trama (especialmente dos EUA, cujas diretrizes e estratégias os militares brasileiros seguem à risca); 2. Não haveria suporte massivo dos veículos de comunicação e da imprensa (exceto Rede Record, Jovem Pan e similares); 3. Não haveria respaldo por parte do STF. Quem estuda o passado desse país (não é o caso dos bolsonaristas) sabe muito bem que, nas duas ocasiões em que a solução autoritária foi levada a cabo, o Poder Judiciário calou-se diante do processo, e chancelou o novo regime que se seguiu. Em resumo, no Brasil, não se dá golpe contra o STF, e sim com o STF. Não era esse o caso em janeiro de 2023. Nem golpe essa gente sabe dar. Pueris. Amadores.
Voltemos à lista das cafonices verde-amarelas. Sim, ela é extensa. Basta uma busca rápida no Google ou no YouTube para se deliciar (ou se enojar) com várias performances dessa natureza. A propósito, em tempos de redes sociais, nos quais tudo é minuciosamente gravado, postado, curtido e compartilhado, há um orgulho mórbido em mostrar tudo isso, inclusive atos criminosos (para a alegria da Polícia Federal).
Note bem: trata-se de gente adulta (supostamente, pelo menos), homens e mulheres feitos. E, ainda assim, o amor-próprio passou longe. Dito de outra forma, não há pudor algum em agir assim. Nem valor a si mesmo. Nem remorso. Dá prazer (e ibope, às vezes um dinheirinho,) lamber botas e ser capacho. A causa, o capitão valem a pena (e a sola). Parafraseando uma das minhas brincadeiras de infância: “tudo o que o Mito mandar faremos todos, e, se não fizermos, levaremos bolo…” É uma espécie de masoquismo patriótico. Uma tara.
E tudo para quê? Coincidentemente, para idolatrar e manter no poder um sujeito igualmente tosco, grotesco, sem noção da vergonha e do ridículo. Três décadas de vida pública, poucos projetos de lei (quase todos em benefício da própria categoria), várias rachadinhas, filhos e agregados na política, muitos partidos (todos igualmente insignificantes e integrantes do câncer chamado “Centrão”), diversas polêmicas, muitos palavrões e impropérios, nada a contribuir. Semelhante figura só ascendeu mesmo à Presidência por uma série de contingências históricas (as quais já discuti em outros textos); em linguagem vulgar, a qual ele conhece como ninguém, uma verdadeira “cagada”. E foi mesmo. Ou melhor, três delas. Para chegar ao poder (com fake news e pânico moral), para exercê-lo (desdenhando de uma pandemia que matou 700 mil pessoas) e para sair dele (arquitetando um golpe de Estado). O único chefe do Executivo Federal a não conseguir se reeleger (diferentemente de FHC, Lula e Dilma). Não foi suficiente aparelhar a ABIN e a Polícia Federal, distribuir auxílios irresponsavelmente e criar um rombo bilionário nas contas públicas. De nada adiantou. É realmente uma proeza.
Proeza maior, insisto, é submeter-se à execração pública em nome desses fracassos. (Haveria alguma satisfação erótica por trás disso tudo?).
Bolsonaro, inelegível que está, passou, sabemos, mas seus correligionários tarados não. De fato, o mais novo fetiche dessa nova direita (não só brasileira, mas mundial), especialmente a de matriz religiosa (e, portanto, evangélica) é vestir a fantasia de judeu errante e defender com unhas e dentes o Estado de Israel (e, de quebra, as políticas autoritárias e catastróficas de Benjamin Netanyahu em Gaza). É bizarro. Logo a extrema-direita que, historicamente, sempre foi xenófoba e antissemita, vide o exemplo nefasto do Holocausto nazista. Logo os evangélicos que, historicamente, sempre viram nos judeus um povo maldito e deicida, que escolheram Barrabás em vez do Salvador. Eu sei que vontade e prazer não se discutem, porém, o que explicaria essa mudança radical na escolha dos ídolos a venerar?
Quem responde a isso com brilhantismo é o escritor João Cezar de Castro Rocha, Professor Titular de Literatura Comparada da UERJ, e um dos mais atuantes intelectuais da atualidade. Segundo ele, não se trata propriamente de um culto a Israel ou a Jerusalém. Isso é apenas uma casca, uma ponta no iceberg. Na verdade, a solução para esse enigma se encontra no conceito de “Teologia do Domínio”. Explico: nos últimos 25 anos, as chamadas igrejas neopentecostais têm produzido uma verdadeira virada de chave teológica. Isto é, se, originalmente, o personagem central à fé e ao culto era Jesus Cristo, o Verbo que se fez carne, aos poucos isso foi desaparecendo. Cristo fora escanteado pois não servia a projetos de poder. Leia-se: de poder político, de ocupação de espaços em todos os setores da sociedade: governo, empresas, mídia, cultura, instituições de ensino, etc., cujo fim último consiste na completa aniquilação de quem pensa ou crê de forma diversa.
Ora, já era necessário um malabarismo interpretativo gigantesco para coadunar o humilde carpinteiro de Nazaré à mesquinha “Teologia da Prosperidade”. Agora, porém, nem o mais criativo exegeta neopentecostal seria capaz de transformar o homem que disse “o meu reino não é desse mundo”, “atire a primeira pedra quem não tiver pecado”, “ofereça a outra face”, em um comandante-em-chefe, um soberano secular. O Príncipe da Paz não servia. Era necessário um príncipe mesmo, à la Maquiavel. Daí o deslocamento teológico para o Antigo Testamento, no tempo em que Deus tinha somente uma nação como sua, e que sangue e morte eram espalhados em nome Dele. Então, para cumprir esse papel, quem evocar? Moisés, o líder sábio que guia o povo pelo deserto? Não. Salomão, o juiz justo que dirime causas impossíveis? Não. Jó, o homem temente a Deus, que, por meio do sofrimento, aprende a amá-Lo ainda mais? Não. José, o jovem que foi vendido pelos irmãos e que, mesmo assim, os perdoa? É claro que não. A resposta estaria em Davi, o soberano, o rei de Jerusalém, senhor de exércitos e que governa pela espada. Esse é o exemplo a ser seguido.
Contudo, atenção: não se trata de qualquer Davi. A ênfase deve ser bem específica. Pouco importa o jovem pastor que enfrenta o gigante Golias e que, utilizando-se da astúcia, vence a força bruta. Quer-se, por incrível que pareça, o Davi pecador: aquele que cobiça Batsheva (Betsabé) em seu banho de purificação; em seguida, a possui com violência, mesmo sendo ela casada; em seguida, envia o seu marido, Urias, para a frente de batalha, a fim de que ele pereça o mais rapidamente possível; em seguida, uma vez morto Urias, faz de Batsheva uma de suas muitas concubinas. Vê-se que em todo o Novo Testamento não há nenhum personagem que tenha cometido tantos pecados contra Davi. O homem fez uma espécie de Decálogo às avessas: cobiçou a mulher do outro, cometeu adultério, foi responsável direto por um assassinato. No entanto, e, apesar de tudo, ele se arrepende e consegue ser ainda mais ungido por Deus. Nesse sentido, Jair Bolsonaro, Javier Milei, Donald Trump, Viktor Orbán e Benjamin Netanyahu, faróis da extrema-direita transnacional funcionam como esse Davi. Ungidos por Deus para combater o mal de maneira implacável. E a prova disso está, veja só, justamente nos inúmeros pecados que eles cometem.
Sim, eu sei. É ridículo, patético, constrangedor. Todavia, é somente dessa forma que conseguiremos entender a frase medonha, dita por uma senhora bolsonarista, em plena Avenida Paulista uns dias atrás: “somos cristãos, assim como Israel”.
Pensando bem, a tara dessas pessoas não mudou tanto assim. É só mais uma variante da velha necrofilia.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
Comente este post