* Roney Marcos Pavani
É muito comum ouvir da boca de saudosistas da Ditadura Militar (1964-1985) que o regime em questão era, não apenas competente do ponto de vista técnico, como também prodigioso nos seus aspectos econômicos. No texto anterior, deixamos claro os limites do “Milagre Brasileiro”, e de que forma os índices de dois dígitos no crescimento do PIB não significava muito para quem vivia de salário. Ademais, os governos militares, extremamente dependentes do petróleo via mercado externo, sofreram um golpe terrível durante a década de 1970, no que passou a história como a crise dos energéticos. A primeira delas, em 1973, enfraqueceu o governo, e foi decisiva para as eleições indiretas do ano seguinte. Como consequência, o então presidente Médici, representante da chamada “linha-dura” das Forças Armadas (da qual também fazia parte o Gal. Arthur da Costa e Silva), não conseguiu fazer o seu sucessor. Em seu lugar, ainda um militar, porém ligado a ala mais intelectualizada do Exército, o General Ernesto Geisel (1907-1996). Parêntese: se até então, as eleições presidenciais haviam sido apenas de fachada, de modo a referendar escolhas prévias, pela primeira vez desde o Golpe, a oposição, sintetizada na candidatura de Ulysses Guimarães (MDB) conseguira obter cerca de 16% de votos no colégio eleitoral. Se, por um lado, a ditadura estava longe de acabar, por outro, já dava certos sinais de cansaço.
Como maus perdedores que sempre foram, os membros da linha-dura não venderiam barato a sua derrota. Geisel assumira a presidência com o compromisso de promover a abertura política, devolvendo o poder aos civis (em suas próprias palavras, “de forma lenta, gradual e segura”), foi o que bastou para os setores mais obscuros e autoritários do regime passarem a taxá-lo de “comunista” (até hoje, o insulto favorito de algumas pessoas). E isso não só graças a um ódio visceral à democracia, mas sobretudo ao medo de que, uma vez fora do poder, as barbaridades cometidas desde 1964 (e sobretudo, pós-1968) viessem a público, bem como investigações e punições aos responsáveis. Em outras palavras, proteger a ditadura significava proteger a própria retaguarda. Enquanto isso, Geisel, de modo a conseguir levar adiante seu projeto de distensão (como o de extinguir o famigerado Ato Institucional n. 5, em 13/12/1978), não hesitou em acenar positivamente a seus colegas da linha-dura. Foi o que fez no que ficou conhecido como Pacote de Abril (1977): além da criação dos senadores biônicos (que não seriam eleitos, e sim indicados diretamente pela presidência), aumentava o mandato presidencial para seis anos, e modificava a composição da Câmara dos Deputados, dando maior representação às bancadas do norte e nordeste do Brasil. Essas regiões, na verdade, recebiam uma forte influência política da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido de sustentação do regime. Como se vê, para cada modesto passo em direção à redemocratização, um preço elevado a se pagar.
Foi nesse contexto de, digamos, “dar com uma mão e tomar com a outra”, que, em 25 de outubro de 1975, se deu o assassinato brutal do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), diretor do departamento de telejornalismo da TV Cultura e professor do curso de Jornalismo da Universidade de São Paulo (USP). Na manhã daquele mesmo dia, Herzog havia se apresentado voluntariamente ao Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), localizado no quartel-general do II Exército, a fim de “prestar esclarecimentos” sobre suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Horas depois, o Serviço Nacional de Informações (SNI) recebeu a seguinte mensagem em Brasília: “cerca de 15h, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI/CODI/II Exército”. Naquela época, era comum que os órgãos oficiais divulgassem que vítimas de tortura e assassinato haviam perecido por “suicídio”, fuga ou atropelamento, o que gerou comentários sarcásticos de que Herzog, dentre outras pessoas, havia sido “suicidado” pela ditadura. O jornalista Elio Gaspari, colunista da Folha de S. Paulo e autor da célebre série em 5 volumes sobre a Ditadura Militar, não consegue esconder a acidez: “suicídios desse tipo são possíveis, porém raros. No porão da ditadura, tornaram-se comuns, maioria até.”
Os algozes de Herzog, entretanto, não contavam que a versão oficial não desceria goela abaixo tão facilmente. Ato contínuo: uma semana depois, Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), arcebispo metropolitano de São Paulo, juntamente ao rabino Henry Sobel (1944-2019), líder da Congregação Israelita Paulista, e ao pastor presbiteriano Jaime Wright (1927-1999), organizaram um culto ecumênico em memória do jornalista morto (que, aliás, era judeu). A cerimônia, que reuniu cerca de 8.000 pessoas na Praça da Sé, foi a primeira manifestação pública contra a Ditadura desde a Passeata dos 100 mil, ocorrida em meados de 1968. D. Paulo não se convenceu com a teoria do suicídio. Em sua homilia, ele foi direto: “Não matarás. Quem matar, se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da História e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus!”
(O que pensaria o arcebispo e seus companheiros hoje, ao ver tantas lideranças religiosas, especialmente pentecostais, a defender o ódio, a violência, e o extermínio sumário de outros seres humanos?)
As circunstâncias sinistras da morte de Vladimir Herzog foram similares às do estudante Alexandre Vanucchi Leme (1950-1973), do Tenente da Polícia Militar José Ferreira de Almeida (1911-1975) e do operário Manoel Fiel Filho (1927-1976). Os dois últimos casos, a propósito, provocaram um enorme desgaste dentro do governo Geisel, o que culminou na demissão do Comandante do II Exército, o general Ednardo D’Ávila Mello (1911-1984), e do Ministro do Exército, o general Sylvio Frota (1910-1996), dois representantes da chamada “linha dura”, e que, segundo eles mesmos, “estavam horrorizados com a presença de tantos comunistas no funcionalismo público”, a começar pelo presidente. Por causa disso, Frota traçou um plano para derrubar Geisel e frear o processo de abertura política. O estratagema passaria, diretamente, pelas mãos do seu ajudante de ordens, um jovem capitão chamado, vejam só, Augusto Heleno Ribeiro Pereira. Sim, podem acreditar, é ele mesmo. O Ministro-chefe de Segurança Institucional da Presidência da República durante os 4 anos do governo Bolsonaro (2019-2022). Atualmente, Heleno é investigado, junto a outras figuras igualmente nefastas, como suspeito de participação no plano de golpe de Estado, que se iniciou com a divulgação do resultado das eleições de 2022, e culminou nos atentados à Praça dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. Quanta ironia! Pois é, parafraseando o político conservador Afonso Arinos (1905-1990), líder da oposição durante o governo Vargas: “Golpista é como mau-caráter. Nunca muda. Só tira férias…”
A trama de Frota e Heleno não saiu do papel, felizmente. O general foi aposentado (mas não punido), o capitão seguiu firme na carreira e passou incólume pelos anos que se seguiram (nunca saindo dos bastidores do poder), e Geisel conseguiu fazer o seu sucessor sem maiores problemas. Outro militar, o ex-chefe do SNI, João Batista Figueiredo (1918-1999) tomaria posse em 15 de março de 1979. Com a revogação do AI-5, no ano anterior, caberia a Figueiredo concluir o processo de distensão e, cumprindo com um pequeno atraso (coisa de uns 15 anos…) a promessa feita pelos militares golpistas de 64, finalmente devolver o poder aos civis. Pronto! A caserna empertigou-se. A preocupação com a redemocratização, inexorável em toda a América Latina, os punha de cabelo em pé! Nenhum patriota de farda, verdadeiras raposas velhas, desejava para si, por exemplo, o mesmo destino do general Jorge Rafael Videla (1925-2013), ditador na Argentina entre 1976 e 1981, e que saíra do poder para o tribunal, e, de lá, para a cadeia. Por falar nisso, recomendo vivamente o filme 1985, estrelado por Ricardo Darín, que interpretou o papel do célebre promotor Julio César Strassera (1933-2015) no processo de acusação contra Videla e outros agentes da ditadura naquele país, por crimes contra a humanidade.
A escapatória dos militares brasileiros viria, principalmente, por meio da Lei da Anistia de 1979. Cito: “É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais…” Em português claro, o Brasil volta a ser uma democracia, os militares retornam aos seus quartéis, ninguém pune ninguém, não se fala mais no assunto, e todo mundo fica feliz. O que passou, passou. Cômico, se não fosse trágico. A lei anistiou os condenados por crimes políticos e permitiu o retorno de brasileiros exilados, é verdade. Contudo, também passou pano para torturadores e assassinos (como os que mataram Herzog, ou como o infame Carlos Alberto Brilhante Ustra, figurinha idolatrada nos setores bolsonaristas) que, convenhamos, nem sequer haviam sido julgados. Bizarro. Anistia pressupõe crimes. Crimes pressupõem condenações. Condenações pressupõem processo e julgamento. Ora, diferentemente do caso Argentino, nada disso aconteceu em terras brasileiras. Tratou-se de uma bela chantagem dos militares. Dá-se com um mão; tira-se com a outra. Era esse o seu lema. Sempre foi.
Não que da caserna não tenham partido reações violentas. Em consequência da anistia, ocorreram dezenas de atentados, entre 1978 e 1981, como forma de intimidação. Foram anos marcados por atentados terroristas, praticados por grupos radicais, e que se atreviam a resistir. Em todo o País, multiplicavam-se ligações anônimas com ameaças e falsos alarmes de bomba, que obrigavam a evacuação de prédios inteiros. No Rio de Janeiro, em 30 de abril de 1981, uma bomba que deveria ter sido detonada durante um show no Riocentro explodiu dentro do carro dos dois militares que a transportavam. Além de golpistas, burros.
A verdade é que a marca da redemocratização brasileira foi a de um processo feito a partir de cima, na base de acordos, concessões, e sempre com um preço (elevado) a pagar. Prova disso é que o primeiro presidente civil pós-ditadura, José Sarney (vice na chapa de Tancredo Neves), construiu a sua carreira política de mãos dadas com a ARENA e com os governos militares. Nunca foi um opositor ao regime, bem longe disso. Obviamente, Sarney jamais abriria a boca para condenar os Anos de Chumbo, protagonizados por aliados diretos e indiretos seus. O mesmo fizeram Collor de Mello e Itamar Franco (1930-2011), os dois primeiros presidentes pós-eleições de 1989, só que por razões diferentes. Surpreendentemente, Fernando Henrique Cardoso, um intelectual renomado, e Lula, o presidente-operário, não demonstraram coragem cívica e, igualmente, se abstiveram de qualquer enfrentamento. Em nome da governabilidade, é claro. No entanto, de qualquer maneira, nada de aborrecer os militares com as sombras do passado. Apenas discrição, esquecimento e silêncio. Após anos, décadas, qual o custo disso?
A resposta é muito simples: fazer acordos com as Forças Armadas, de histórico autoritário e intervencionista, que tantas e tantas vezes se intrometeram nos assuntos políticos desse país, é o mesmo que vender a alma ao Diabo. E sem garantia de pagamento, é evidente. Cientes de que nada os atingiria, essa gente continuou a crer, grotescamente, em sua superioridade intrínseca e em seu papel de tutela frente a sociedade civil. Saíram do governo, porém seus poderes e regalias não diminuíram, muito pelo contrário. E como haveria de diminuir com a sensação da impunidade correndo-lhe pelas veias? Nada de punição. Somente privilégios, tais como aposentadorias e pensões especiais, inigualáveis para qualquer contribuinte. Além disso, como contrapartida para que o país pudesse receber uma nova constituição, os militares trataram de enfiar o seu dedo sujo de lama e sangue no texto, e exigiram a inclusão do famosíssimo artigo 142: “As Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Aparentemente inócua, a redação permitiu interpretações verdadeiramente rocambolescas, como a do jurista Ives Gandra, mentor jurídico da extrema-direita, segundo o qual caberia aos militares o papel de Poder Moderador da República. Loucura. Delírio. Perversidade.
No entanto, o pior de tudo nessa história de conchavos e compromissos, ainda estava por vir. Foi não ensinar à sociedade a real e pérfida natureza da Ditadura Militar. Ora, criar lugares de memória, organizar julgamentos e apontar responsabilidades têm, em especial, uma função pedagógica. Há algum dia de Resistência à Ditadura nesse país? Algum feriado cívico para rememorar os torturados e mortos, como Herzog e tantos outros? Ora, para o cidadão comum, se não há, é porque não deve haver. Nada disso existiu. No máximo, é papo de professorzinho comunista que quer doutrinar os estudantes e perturbar a juventude. Por outro lado, o 31 de março existe. Ainda hoje. É o marco inicial da “Revolução Democrática”, conforme ouvi uma vez de uma certa (e caquética) figura política veneciana.
Por isso, quando em 2011, a então presidente Dilma Rousseff resolveu fundar a Comissão Nacional da Verdade (CNV), um colegiado instituído para investigar as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, “praticadas por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado brasileiro (o que, portanto, incluía diretamente os militares e a Ditadura)”, aí já era tarde. Tarde demais.
Deu no que deu.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
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