OPINIÃO
* Roney Marcos Pavani
“Bandido bom é bandido morto!” Esse é, certamente, um dos adágios populares mais conhecidos desse país. E também um dos mais democraticamente pronunciados, desde as elites às camadas populares. Não por acaso. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2023, o Brasil registrou 37.640 mortes violentas intencionais. O número é o menor dos últimos 12 anos. Em termos estatísticos, a taxa de mortalidade ficou em 18,5 a cada 100 mil habitantes, o que representa uma redução de 3,3% em relação a 2022. Ainda assim, são números relativamente elevados. A fundação InSight Crime, que se dedica ao estudo do crime organizado na América Latina e Caribe, mostra que o Brasil é um dos cinco países mais violentos da região. O Paraguai, por exemplo, tem um terço do índice de homicídios registrados em território brasileiro.
Ninguém, inclusive este autor, gosta de violência e da sensação de insegurança. É compreensível (embora não justificável) que em muitos setores da sociedade se defendam soluções enérgicas e imediatas para o seu fim, o que implica, necessariamente, na punição sumária do criminoso (mesmo que se trate de um suspeito). Logo, instrumentos jurídicos consagrados pela Constituição Federal e pelos organismos internacionais, tais como o respeito às leis e ao devido processo legal, a presunção da inocência, o amplo e irrestrito direito de defesa, as possibilidades de recursos, os atenuantes em caso de condenação, e a observância aos direitos humanos (que muitos, pejorativamente, chamam de “dos manos”), somados a uma sensação contínua de impotência e impunidade, de modo muito recorrente são vistos como travas, obstáculos no combate ao crime. São formas encontradas pelos bandidos para se verem livres da condenação e, a partir daí, continuarem a cometer atrocidades. Em outras palavras, tudo isso deveria deixar de existir, já que, dentro dessa lógica, uma bala na cabeça basta para pôr fim a todos os problemas.
Não pretendo aqui discutir os equívocos desse tipo de raciocínio. Fiquemos, apenas, com o mais óbvio: a eliminação de criminosos perigosos, por si só, não impede o aparecimento e a proliferação de outros criminosos perigosos, em um ciclo vicioso e viciado. Pretendo, porém, chamar a atenção para as origens históricas das garantias constitucionais contra o arbítrio do Estado. Desde a Antiguidade ao Mundo Moderno, passando pelo chamado jusnaturalismo do século XVIII, foram debatidas e desenvolvidas uma série de ideias de modo a proteger o ser humano – qualquer ser humano – de injustiças. Nesse sentido, o que está por trás de expressões, tais como “o ônus da prova cabe ao autor” ou “na dúvida, julgue a favor do réu” é a premissa de que, se absolver um indivíduo culpado é uma lástima, condenar um indivíduo inocente é uma catástrofe. A vida humana, pelo simples fato de ser humana, é um bem tão precioso e insubstituível, que não pode ser tratada de qualquer maneira. Em outras palavras, para não se viver à sombra do medo, inocentar um bandido, ou, ao menos, dificultar a sua punibilidade, é um risco que se deve correr.
Não estou a dizer aqui que o sistema jurídico brasileiro não possa (e não deva) ser reformado. Tal demanda urge. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, já dizia que o dever de todo legislador é esforçar-se diuturnamente por aproximar Lei e Moral. O que acontece é que os legisladores brasileiros, em sua maioria, estão mais preocupados com temas, no mínimo, estapafúrdios, desde isentar igrejas de tributos a “combater o comunismo”. Em tempos mais recentes, conseguir curtidas e compartilhamentos através de lacrações. Debate e discussão adulta é nula. Não sobra muito tempo para o que realmente interessa ao conjunto da sociedade (como é o caso da segurança pública). Mas vou além: nunca se sabe quando um cidadão comum pode ser acusado, pelo Estado ou por grupos empresariais poderosos, de ser ele o bandido. Nessas ocasiões, como se defender? Apelar aos sentimentos cristãos do acusador? Inventar uma série de fofocas? Chamar o Chapolin Colorado? Acho que não. Nesse momento, de fato, é que as garantias constitucionais valerão a pena.
Portanto, que pessoas simples queiram por fim ao arcabouço jurídico da Nova República (como quando se pede a volta da Ditadura e o retorno do AI-5…) já é um grave problema. Que figuras públicas (gente, a princípio, inalcançável e inviolável) pensem da mesma forma, já beira à canalhice. Agora, que pessoas simples façam eco às palavras de figuras públicas canalhas é o apocalipse. E, assim como na escada da desgraça sempre há um degrau a mais, na ladeira da farsa e do cinismo, há um abismo para quem segue adiante.
Vejamos o seguinte caso: certo deputado estadual, de cuyo nombre no quiero acordarme, e que miseravelmente possui assento na Assembleia Legislativa do Espírito Santo (ALES), é acusado pelo Ministério Público (MPES) de uma lista nada modesta de crimes: participação em atos antidemocráticos, ataques a ministros da Suprema Corte e de integrar uma “milícia digital” com o objetivo de desestabilizar as instituições da República. Em dezembro de 2022, o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou o cumprimento de mandados de busca e apreensão e impôs medidas cautelares ao parlamentar: a proibição de usar redes sociais e de conceder entrevistas, de ausentar-se do território estadual, além do uso de tornozeleira eletrônica. Com relação ao último item uma observação: o sujeito protagonizou, em tom de zombaria, uma das cenas mais ridículas da história do Plenário: “Só um instantinho que vou tirar um negócio que está me atrapalhando, senão não vou falar direito. Depois eu coloco de novo”, afirmou, ao retirar o dispositivo na frente dos colegas e diante das câmeras da TV Assembleia, que transmitia a sessão. Em seguida, continuou discursando com a tornozeleira na mão, inclusive batendo com o objeto na tribuna. Tosco. Pois bem, na noite de 28 de fevereiro de 2024 ele foi preso, em Vitória. O deputado tinha um mandado de prisão preventiva expedido pelo ministro Alexandre de Moraes, depois que a Procuradoria-Geral do ES apontou que o parlamentar descumpriu as ordens judiciais em questão.
A prisão foi apenas o estopim de uma carreira longa e polêmica. Entre outras absurdidades, tal deputado já ofereceu da tribuna da Assembleia Legislativa uma recompensa de R$ 10.000,00 para quem trouxesse (vivo ou morto, não importava) o suspeito de cometer um homicídio. Além de encarnar o xerife do faroeste, ele também buscou se aventurar pelos mares do revisionismo histórico, e propôs que a mesma ALES, realizasse uma “sessão especial, em alusão à ‘Revolução’ de 31 de março de 1964”, ocasião em que haveria “a entrega de honrarias a homenageados”. Em português claro, uma festa saudosa para se celebrar o tempo em que “bandido bom era bandido morto”.
Me atrevo a perguntar: o que será que o deputado outrora acusador pensaria do deputado hoje acusado, hein? Proporia a sua sentença de morte? Ou será que, com base na conveniência e no oportunismo, posaria de vítima e clamaria pelas garantias constitucionais?
Afinal de contas, conveniência e oportunismo lhe são expedientes comuns: ele começou a sua vida na política em 2006, inicialmente filiado ao, pasmem, Partido Socialista Brasileiro (PSB). Na época, fez declarações favoráveis aos governos Lula (2003-2010). Entretanto, aproveitou-se da mudança conjuntural e se deslocou gradativamente para a extrema-direita, assim como várias outras figuras. Será que, uma vez que hoje se apresenta como “perseguidor implacável de esquerdistas”, teria vergonha do seu passado? Será que quer escondê-lo? Talvez esquecê-lo? Não por coincidência, em 2021, o mesmíssimo deputado pediu ao Ministério Público do Espírito Santo, que abrisse uma investigação contra “professores” (assim mesmo, no coletivo) que, segundo ele, “interferem e fazem juízo de valor na capacidade crítica do aluno”. É simplesmente infame!
Pois é, já que vivemos em tempos democráticos, onde deve se imperar a Lei e não o arbítrio de meia-dúzia, a Constituição do ES, em consonância com os textos da Carta Magna, prevê que a prisão de um parlamentar deve ser submetida à validação da Casa. O dispositivo legal em questão é um mecanismo de defesa contra medidas de força por parte do Estado, e leva em conta todos os traumas da Ditadura Militar (1964-1985) – curiosamente, o regime que o deputado e seus asseclas tanto idolatram – bem como as centenas de cassações de mandatos e suspensões de direitos políticos ocorridas no período. Dessa forma, com base no argumento de que “não houve flagrante” (o que, aliás, é, pelo menos, controverso) o Plenário da ALES decidiu pela revogação da prisão, em sessão realizada na manhã da última quarta-feira (6). A decisão foi tomada por 24 votos a favor da revogação e 4 votos contra.
A maior virtude da democracia, e ao mesmo tempo o seu maior vício, é defender o direito de todas as pessoas, inclusive de quem concorre para a sua destruição. Nesse sentido, cabe a ela utilizar-se dos instrumentos de que dispõe para se defender. Se ela abrir mão disso, arrisco a dizer, não haverá uma democracia no mundo nos próximos 15 anos. Contra a radicalização da extrema-direita, da qual o referido deputado faz parte, não há conciliação possível. É o fim da política, e o caminho estará aberto para a barbárie.
Mesmo porque, para ele e seus seguidores, “bandido bom é bandido morto”, contanto que não se tratem de bandidos de estimação.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
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