* Roney Marcos Pavani
Na modernidade, todo romance tem sempre algo de autobiográfico. Escrever sobre os outros é escrever sobre si mesmo. Ao elaborar uma trama, ou melhor, um universo ficcional, o autor necessariamente perscruta sua mente em busca de referências para a composição do enredo, das personagens, do espaço, do tempo e dos pontos de vista presentes na narrativa. Tais referências, por sua vez, estão ligadas a suas próprias visões de mundo e a seus valores, os quais são forjados a partir de lembranças, traumas e demais experiências pessoais. Portanto, em um texto literário, conhecer o lugar de onde se constroem os enunciados, quem os constrói e para quem são construídos é necessário à produção de sentidos.
Antonio Cândido define a obra literária como uma produção cultural de dimensões coletivas por atuar esteticamente na representação de um povo, uma nação ou uma comunidade. Dessa forma, compreende-se a literatura como um instrumento que desvela os aspectos mais íntimos de uma sociedade, sendo impossível dissociar-se dela.
Experiências individuais e dimensões coletivas não se configuram como elementos contraditórios, uma vez que, desde os aportes clássicos sobre a memória, é sabido que “não podemos pensar nada, não podemos pensar em nós mesmos, senão pelos outros e para os outros, e sob a condição desse acordo substancial que, através do coletivo, persegue o universal e distingue (…) o sonho da realidade, a loucura individual da razão comum” (Halbwachs 1990, 15-16).
É o mesmo Maurice Halbwachs quem diz que, se supostamente o sujeito participa de dois tipos de memória (uma coletiva e outra individual), a memória dita individual não está isolada ou fechada. Isso porque o seu funcionamento não é possível sem instrumentos, isto é, palavras e ideias, que o indivíduo – e o escritor de ficção não é exceção – absolutamente não inventou e que pediu emprestado de seu meio.
O texto literário, assim, direta ou indiretamente, está carregado de marcas que revelam a vida de seu autor: onde nasceu, quem foram seus amigos, por quais dramas e angústias passou, em quais contextos esteve inserido. Não de forma simples e categórica como uma fotografia da realidade, já que, por óbvio, nenhuma pessoa sozinha consegue abarcá-la totalmente. Mas como uma sua pintura, em que, a partir da criatividade e da industriosidade de cada um, certos elementos são enfatizados e outros rejeitados. Mesmo porque, via de regra, um romancista é uma pessoa extraída das camadas médias de uma sociedade, e seu olhar para o real está filtrado por essa condição socioeconômica.
Dito de outra maneira, as obras literárias de um modo geral, e os romances, em particular, do ponto de vista do historiador, não são textos meramente informativos, como jornais. Não falam de uma suposta conjuntura. Enquanto fontes a serem analisadas, o seu papel é muito mais complexo, obscuro. Um ladino se ocultando nas sombras, não um cavaleiro trajando uma armadura reluzente.
Essa relação indireta do texto com a realidade ficou mais evidente a partir dos anos iniciais do século XX, sobretudo após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e de toda a catástrofe que ela significou. É possível, por exemplo, traçarmos um paralelo entre essa questão e os estudos de Walter Benjamin sobre narração e experiência. Segundo o filósofo alemão, a experiência transmissível ficou em choque a partir daquele conflito. Das trincheiras e dos fronts da guerra os homens voltaram emudecidos: “Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca.
Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano” (Benjamin 1995, 182-183).
Sabemos que o argumento de Benjamin não pode ser tomado como uma regra, uma vez que houve quem voltasse da Primeira Guerra orgulhoso dos cadáveres que havia empilhado. Ou ainda, que visse em um conflito de proporções gigantescas não um mal em si mesmo, mas a certeza de que a solução para os problemas do mundo não estava na política e na diplomacia, e sim na agressão e na vitória do mais forte. Não por acaso, os principais líderes do nazifascismo estiveram envolvidos diretamente nos campos de batalha e, segundo eles próprios, o único mal da guerra era não tê-la vencido.
Seja como for, para muitos ex-combatentes, entre explosões de granadas e rajadas de metralhadoras automáticas, simplesmente não era possível relatar o que fora vivido. Mais do que isso, o próprio ato de transmitir em palavras algo que, até então, estava acoplado no corpo e na mente, minorava-o, reduzia a sua importância e o seu impacto. Nas palavras de Beatriz Sarlo (2007, 35): “porque comunicado, é uma versão incompleta”. Tudo o que acontecera ali era simplesmente inacreditável.
É a mesma autora quem adverte que nos tempos modernos é difícil encontrar um narrador, pois, como vimos acima, tornou-se muito difícil intercambiar experiências. As demais catástrofes do século XX (o Holocausto, os Gulags, as guerras de limpeza étnica e os terrorismos patrocinados pelo Estado) só reforçarão esse problema.
Entre suas funções, a narrativa oral possuía uma dimensão utilitária – o saber dar conselhos. E essa sabedoria, incapaz de ser transmitida, está a definhar. Em seu lugar, emerge o romance (que já existia, é verdade), atrelado ao livro-objeto, à imprensa, ao indivíduo isolado e ao leitor solitário. Esse indivíduo não quer (e, se quisesse, não conseguiria) aconselhar e, muito menos, ser aconselhado por alguém. Seu tempo é curto, imediato. Não há lugar para “moral da história”: “Com efeito, ‘o sentido da vida’ é o centro em torno do qual se movimenta o romance.
Mas essa questão não é outra coisa que a expressão da perplexidade do leitor quando mergulha na descrição dessa vida. Num caso, ‘o sentido da vida’, e no outro, ‘a moral da história’ — essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa, permitindo-nos compreender o estatuto histórico completamente diferente de uma e outra forma. (…) Com efeito, numa narrativa a pergunta — e o que aconteceu depois? — é plenamente justificada. O romance, ao contrário, não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida” (Benjamin 1995, 196).
Em outras palavras, o romance pode ser entendido em termos de um mundo em rupturas. Rompe-se a relação da narração com o corpo (e, consequentemente, do narrador com a sua audiência), e do passado com o presente. Não se pode representar tudo o que a experiência foi para o sujeito. O vínculo entre o texto literário e a realidade é feito às apalpadelas.
A literatura, em suma, carrega um vínculo com o real, mas não é a sua cópia (Pessoa, 2013). Ela possui autonomia de significado, sem, contudo, desligar-se do real e atuar sobre ele. Por isso, a obra literária se relaciona tão intimamente com as questões existenciais do ser humano. Enquanto arte, ela proporciona ao leitor reconhecer os sentidos dos fenômenos e perceber como tais fenômenos estão conectados a contradições sociais e históricas.
Em suma, estamos diante de três premissas: 1) a obra literária (e o romance, por excelência) é um produto feito por e sobre um autor; 2) não se trata de um artefato puramente individual, feito no vazio, mas que é atravessado por diversos contextos; 3) sua relação com a realidade é difusa, e não direta e objetiva. É a partir delas que buscaremos, em nosso trabalho, investigar a obra ficcional de J. R. R. Tolkien, desde seus primeiros escritos na forma de poemas e contos (1917), até a conclusão de sua obra maior: The Lord of the Rings (1949), em forma de romance. Buscamos, igualmente, fornecer uma contribuição para o diálogo entre a História do século XX e a literatura fantástica, gênero que o mesmo autor ajudou a criar.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
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