OPINIÃO
* Roney Marcos Pavani
Quando Dilma Rousseff assumiu o poder como a 36ª presidente do Brasil, uma aura de desconfiança a envolvia. Era a primeira mulher a chefiar o executivo federal (sim, em uma sociedade de formação misógina como a brasileira, isso, por si só, é motivo para olhares de soslaio); tratava-se de uma personagem pouco conhecida e sem experiência em cargos eletivos; além do óbvio: sucedia a figura mítica de Lula. Todavia, e mais importante, Dilma havia participado ativamente da luta armada contra a Ditadura Militar, tendo sido vítima da máquina repressora do regime, por meio de prisão e tortura. Sabe os herdeiros ideológicos de Carlos Lacerda? Pois é, despertaram de seu sono sepulcral e ficaram em posição de alerta. Daí haveria de vir alguma coisa.
Ato contínuo, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída em 16 de maio de 2012, pouco mais de um ano de Dilma no poder. A CNV tinha por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988 (ou seja, compreendia todo o Regime Militar). Para um país que foi redemocratizado com base em acordos e conciliações, remexer nesse vespeiro seria, no mínimo, desnecessário. No máximo, uma afronta. “Isso não é uma comissão, é uma revanche, uma vingança!” O espírito dos agentes da ditadura – fossem civis ou militares – aqueles mesmos que pouco ligavam para a soberania popular, quedou-se ultrajado. Quem não se lembra do grotesco Carlos Alberto Brilhante Ustra, em depoimento à comissão em 2013? Estava exasperadíssimo e completamente inconformado com dados que apontavam os horrores da ditadura que tanto amava. Não por coincidência, nas eleições do ano seguinte, um certo deputado federal do Rio de Janeiro, até então figura discreta (para não dizer, inútil) no Parlamento, conhecido, entre outras sandices, por propor o fechamento do Congresso e sugerir o assassinato de Fernando Henrique Cardoso, foi reeleito. Pasmem, com recorde de votos. Seu nome? Jair Messias Bolsonaro.
De modo avassalador, diversas vozes fantasmagóricas foram, aos poucos, tomando forma nas recém-criadas redes sociais (Orkut e YouTube, em seguida, Facebook, posteriormente, Whatsapp e Twitter). Sites apologéticos do Golpe de 1964, até então mal feitos e com conteúdo grosseiro, ganharam novos ares (e novos adeptos). Tudo ao alcance de um clique. “O seu professor de História mentiu para você”, “não confie em narrativas de esquerda”, entre outras bobagens. Já destaquei em outros textos o papel fundamental de Olavo de Carvalho (bem como de seu obscurantismo e de sua linguagem chula) como mentor dessa nova direita. “Não foi Golpe, foi Revolução”, voltaram a bradar aos quatro ventos. O espírito despótico em nossa sociedade estava enterrado, é verdade, porém não estava morto. Ressurgia.
Paralelamente, a Operação Lava Jato tinha início. Na época, quatro organizações criminosas que teriam a participação de agentes públicos, empresários e doleiros passaram a ser investigadas perante a Justiça Federal em Curitiba. Por causa da complexidade do esquema, novas frentes de investigação foram abertas. Também resultou na instauração de inquéritos criminais junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ) para apurar fatos atribuídos a pessoas com prerrogativa de função.
Não é meu objetivo aqui discutir os métodos controversos da operação, e sim suas consequências.
Diuturnamente, nomes fortes ligados ao sistema político fervilhavam nos noticiários. Ninguém prestava. Embora a lista de acusados integrasse partidos como o PP, o PR, o MDB, entre outros, o PT, partido que estava à frente do governo há mais de uma década, foi o mais estigmatizado. Um ódio visceral à esquerda e à democracia foi tomando ares nunca antes vistos. Ou melhor, só vistos nos tempos pré-1964.
As coisas estavam por um fio. O governo Dilma, diferentemente de seu antecessor, amargava diversos fracassos econômicos. Faltava à presidente um certo tato político para negociar com o Congresso Nacional, além de habilidade para evitar que a Lava Jato corresse solta. Vieram protestos de rua, inicialmente puxados pela esquerda, pelos 20 centavos, contra a realização da Copa do Mundo (lembram do 7 a 1?) e das Olimpíadas. De súbito, os golpistas em potencial pegaram carona e começaram a demonizar tudo. Porém, ainda lhes faltava um nome. Tiveram, para enfrentar uma criticada Dilma e o PT em outubro de 2014, de contar com uma velha raposa do PSDB, Aécio Neves. A disputa foi ferrenha, virulenta e extremamente apertada (51,6% a 48,4% para a presidente), um prenúncio do que estava por vir. Foi então que o candidato derrotado, diferentemente de seus colegas de partido, Geraldo Alckmin (2006) e José Serra (2010), fez algo inédito na Nova República (mas não na história do Brasil): contestou o resultado das urnas e pediu recontagem de votos. Pausa: a semente da dúvida havia sido plantada. O sistema não era confiável. Lacerda reencarnava.
E mais: todo mundo comprou o discurso. Imprensa e formadores de opinião, empresários (quem não se lembra do Pato Amarelo da FIESP?) e artistas, pastores evangélicos e padres reacionários, além de influenciadores digitais. Era preciso uma solução fora do campo da normalidade. Qual seria? Ninguém sabia. Ainda que tenha vencido a eleição, o triunfo de Dilma Rousseff foi sua maior derrota. Mal seu segundo mandato se iniciara, em 2015, com um Parlamento bastante hostil, diga-se, o desgaste para com sua figura era evidente. Nas ruas, milhões de pessoas, em geral de classe média e média-alta, vestidas com camisas da Seleção Brasileira de Futebol (se viam como os únicos “brasileiros”, o resto era de mentira) pediam a sua cabeça. Parêntese: uns e outros, mais exaltados, falavam em intervenção militar. Poucos, mas lá estavam. No final daquele ano, quando Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, levou ao plenário o pedido de impeachment da presidente por crimes de “responsabilidade fiscal”, seu destino parecia selado. Nada ali seria jurídico, técnico, mas puramente político. O objetivo era apeá-la do poder e abrir um vácuo preenchível somente por uma criatura alienígena, que representasse um Brasil arcaico, de antes da redemocratização: sem direitos humanos, políticas para minorias, aquilo que até então formara o nosso incipiente Estado de Bem-Estar Social. “Quero o meu país de volta”, dizia a direita nas ruas. Pois bem, ao homenagear Ustra em seu voto pelo impedimento, o então deputado Bolsonaro colocava as suas credenciais na mesa.
Dilma foi afastada provisoriamente do cargo em maio, e definitivamente em 31 de agosto de 2016. Michel Temer, seu vice e um dos mentores de todo o embuste, assumiu o governo com a missão de fazer milagres. Em vão. Temer, que perdera sua credibilidade à esquerda, também colecionava fracassos à direita, devido à exibição de conversas telefônicas com o empresário e investigado pela Lava Jato, Joesley Batista. O mesmo aconteceu com Aécio Neves. “São todos farinha do mesmo saco”, dizia-se. A direita, assim, precisava inovar, ir mais fundo, mostrar a sua asquerosa herança lacerdista. E tinha condições para isso, já que estava fervendo de ódio há décadas. Seu paladino vingador não poderia ser outro que não Jair Bolsonaro.
O homem era dono de um currículo, convenhamos, invejável. Ex-capitão do Exército (expulso com desonra, por prática de terrorismo, mas que importava?), que propusera pouquíssimos projetos em toda a sua longeva carreira política (estava na Câmara desde 1991!), quase todos em benefício de sua própria categoria. Grandes ideias para o seu estado ou para o país? Que nada. O sujeito caía como uma luva (ou melhor, como um soco inglês) para essa velha direita ressurrecta: desbocado, misógino, violento, anti-intelectual, racista, xenófobo, homofóbico, inimigo fidagal da Constituição de 1988 e de todo o aparato jurídico institucional que dela emanava. Em outras palavras, um espelho perfeito de seus entusiastas. Como fosse pouco expressivo e de participação discreta (ao menos até 2014), o Sr. Jair ainda pagava de honesto e incorruptível. Era quem acabaria com a corrupção (que a Lava Jato dizia ser nosso pior problema) e com “o socialismo” (isto é, com as políticas de inclusão social que tanto causam arrepios à direita reacionária). Um “caçador de marajás” muito melhor do que Collor. Turbinado, evoluído, marombeiro. Que, ainda por cima, sabia se utilizar como ninguém das redes sociais, por meio de suas “mitagens” (frases de efeito quaisquer, de significado irrelevante, porém de grande impacto, sobretudo à juventude sem causa em busca de ídolos para seguir).
Vieram as eleições de 2018: o “mito” vencia. Finalmente, após inúmeras tentativas, o velho sonho de Lacerda tornava-se realidade. Se estivesse vivo, sentiria orgulho de seus descendentes, não resta dúvida. Embora, verdade seja dita, apesar de toda a sua verve antidemocrática, ele tenha sido um sujeito de ideias (grande orador, escreveu vários livros e chegou a traduzir Shakespeare para o português). Já os bolsonaristas, de capacidade cognitiva infinitamente mais limitada, se contentam, quando muito, com Olavo de Carvalho. Via de regra, param nas correntes de Whatsapp e Telegram.
O governo de Bolsonaro, claro está, dispensa maiores comentários. Trágico, desastroso, infame. Falta de compostura e xingamentos estavam na ordem do dia. Ataques à imprensa, descaso para com os serviços essenciais do Estado e conspirações contra o Legislativo e o Judiciário eram a regra. Desemprego, aumento de preços, 30 milhões de brasileiros de volta ao mapa da fome. Muito grito e pouca eficiência. Tentativas de golpe do Estado e pedidos miseráveis de intervenção militar volta e meia surgiam (com destaque para o de setembro de 2021, prontamente aniquilado pelo Supremo Tribunal Federal). Ora, por isso mesmo, a direita o seguiu idolatrando até o fim. Era isso que ela queria. Era esse o “seu país de volta”. Para poucos. Muito poucos.
Todavia, o Brasil ainda é uma democracia. O povo, aquele real, que viu a sua vida piorar nos últimos quatro anos, foi chamado a se manifestar. O resultado não poderia ser outro: o único presidente na história da Nova República a não conseguir se reeleger, mesmo com todo o aparato governamental nas mãos, distribuindo auxílios e mais auxílios de modo irresponsável e comprando votos explicitamente (o rombo nos cofres públicos para 2023 é da ordem de R$ 400 bilhões!). Além de aparelhar setores da Polícia Rodoviária Federal e pôr em cheque a confiança das urnas eletrônicas e do processo eleitoral como um todo. De nada adiantou.
Bolsonaro aceitou prontamente a derrota? Não. Fez-se de mudo durante dois dias e, depois, em um pronunciamento de 2 minutos, não disse nem que sim nem que não. Já seus cães raivosos foram às ruas: bloquear rodovias e causar danos irreparáveis à sociedade, ou estacionar à frente de quartéis, clamando, como muitos em 1964, por uma “intervenção militar”. Outros ficaram em casa, inundando suas redes com postagens estúpidas, do tipo: “vergonha”, “estou de luto pelo meu país”. Vejam bem, não é culpa deles. Simplesmente está em seu sangue, em seu DNA golpista. É impossível lutar contra a natureza das coisas.
Para essa gente, como tantas vezes a história desse país demonstrou, a vontade popular que se exploda. Sempre haverá uma desculpa cretina para traumas e rupturas: “as eleições foram fraudadas”, “o povo é burro e não sabe votar”, “o Nordeste é um câncer do país”. Leis e regras valem somente para os inimigos. “Democracia” é apenas um nomezinho bonito. Nada mais.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
(Parte 2 e final. Veja no link abaixo a Parte 1):
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