OPINIÃO
* Roney Marcos Pavani
“O Senhor Getúlio Vargas não deve ser candidato, se for candidato não deve ser eleito, se for eleito, não deve tomar posse, se tomar posse não pode governar”. Estas palavras foram ditas pelo então jornalista e líder da UDN, Carlos Lacerda (1914-1977) durante as eleições presidenciais de 1950. Em outras palavras, a vontade popular que se explodisse. Como é sabido, Lacerda levou a sério as próprias orientações, e fez das tripas coração para desestabilizar o governo de Vargas, o qual culminou de maneira trágica no suicídio do presidente, em 24 de agosto de 1954. Cinco anos mais tarde, novas eleições presidenciais: Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976), considerado seu sucessor político, vencia o candidato udenista Juarez Távora (1898-1975) por uma margem apertada de votos (35% a 30%). Parêntese: naquela época, e diferentemente do que se vê hoje, a legislação eleitoral previa o pleito em turno único, sendo que o candidato que obtivesse a maioria simples, como era o caso de JK, seria considerado o vencedor.
Mas a golpistas de mão cheia como Lacerda – o Corvo da Guanabara – pouco importava o que dizia a lei, ou melhor, a lei só deveria ser seguida quando convinha a interesses pessoais. A vontade popular, novamente, era um detalhe. Pois bem, Lacerda tentou, mancomunou-se com Café Filho (que havia assumido após a morte de Vargas) e Carlos Luz (então Presidente da Câmara dos Deputados e adversário político de JK), de modo a fazer emergir a possibilidade de uma ruptura institucional – através, obviamente, das Forças Armadas. Essas aí, bem, já tinham o seu próprio histórico de intervenções (1889, 1891, 1930, 1937, 1945 e 1954). Nada mais cômodo (e canalha) do que procurá-las. No entanto, para desgosto dos golpistas, o tiro saiu pela culatra, graças ao papel seguro e certeiro do então Ministro da Guerra – o Marechal Teixeira Lott (1894-1984). Ele, por meio da força, é verdade, deu posse ao Presidente do Senado, Nereu Ramos e este, por sua vez, passou a faixa a Kubitschek a 31 de janeiro de 1956.
Eis que vieram as eleições de 1960 e a ascensão do folclórico Jânio Quadros (1917-1992) – não filiado, mas maciçamente apoiado pela UDN. Teria sido a primeira vitória de Carlos Lacerda, se Jânio fosse controlável. Não o era. Como um reformista autoritário, tinha seus próprios projetos, o que incluía, por exemplo, retomar relações diplomáticas com a China e com a União Soviética, além do célebre episódio de condecorar Ernesto Che Guevara (1928-1967), um dos líderes da Revolução Cubana, com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Isso bastou para acender as luzes do radar anticomunista de Lacerda e dos militares, especialmente em tempos de Guerra Fria. O resultado não poderia ser outro: retirada do apoio da UDN ao governo e renúncia de Jânio em agosto de 1961, somente 8 meses após sua posse.
Segundo a Constituição Federal, tanto a de 1946 (vigente à época) quanto a de 1988 (vigente hoje), é dito que: “Substitui o Presidente, em caso de impedimento, e sucede-lhe, no de vaga, o Vice-Presidente da República.” Tão claro como água, nem é preciso desenhar. Uma vez vaga a presidência com a renúncia de Jânio, o poder supremo deveria passar ao vice – João Goulart. Mas não era assim que os “arautos da Pátria” (sinônimo de golpistas, convenhamos) liam o texto constitucional. Esse vice não lhes apetecia. Sobre o pretexto de que Goulart estava ausente do país, em viagem à China comunista, fervilhou-se a ideia de que, ao desembarcar em terras brasileiras, ele seria destituído e preso por tropas do Exército. Na realidade, Goulart era um dos herdeiros políticos de Vargas (havia sido seu Ministro do Trabalho, inclusive) e havia sido eleito vice-presidente fora da chapa de Quadros (naqueles tempos era possível). Nada mais odioso para Lacerda e os udenistas. No fim das contas, Goulart só tomou posse após vários dias e muitas manobras, seja dentro do Congresso (por meio da chamada solução parlamentarista, para, na prática, enxugar os poderes do presidente), seja fora dele (por meio da resistência armada do governador do Rio Grande do Sul e amigo íntimo de Goulart, Leonel Brizola).
Entre setembro de 1961, quando da posse de Goulart, até março de 1964, boa parte da direita brasileira e das Forças Armadas organizou-se no sentido de derrubar o governo. Golpe não é episódio, é processo. Por meio de institutos disseminadores de notícias falsas e propaganda anticomunista, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o já existente Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). A função primordial do IPES era, por exemplo, integrar os diversos movimentos sociais de direita para criar as bases de uma oposição que pudesse, em suas próprias palavras, “deter o avanço do comunismo soviético no Ocidente”. Traduzindo para o português claro, era um núcleo de conspiração golpista com agenda política própria. Seus membros estavam estrategicamente informados e muito bem posicionados entre os conspiradores que derrubaram Goulart. E, ao lado dos militares, foram os protagonistas do processo de ocupação da estrutura do Estado após março de 1964 – o IPES funcionou regularmente até o ano de 1973.
E por falar em março de 1964, no calor dos acontecimentos que depuseram Jango e passaram o poder às mãos dos militares, o mesmíssimo Lacerda estava lá, encastelado no Palácio Guanabara (era governador daquele estado), armado com seu revólver calibre 38, ameaçando através do rádio e aos berros militares legalistas, como o Almirante Cândido da Costa Aragão (1907-1998). Na ocasião, obviamente, ele não estava sozinho. O golpe foi arquitetado, entre setores da imprensa, da Igreja e do empresariado, também por Adhemar de Barros (1901-1969), Magalhães Pinto (1909-1996), governadores dos estados de São Paulo e Minas Gerais, respectivamente. Todos de direita.
Por que, do ponto de vista estritamente político, apoiar a ação dos militares em uma ruptura institucional? Para combater os comunistas e evitar que o Brasil se transformasse “em uma Cuba de proporções continentais”? Balela. Em primeiro lugar, para aniquilar seu principal adversário, o PTB de Jango. Em seguida, com a promessa dos militares de que a intervenção seria uma espécie de “saneamento” (em linguagem civil, quer dizer: prisões, cassações de mandatos, práticas de tortura e assassinato), “higienizando o país” para as eleições de 1965, nas quais ele, Lacerda, disputaria a presidência contra outro adversário histórico, o ex-presidente JK.
Getúlio, Jânio, Jango. Não por acaso, Lacerda passou à história com o epíteto de “derrubador de presidentes”. A Cientista Política e Professora da PUC-SP, Maria Celina Soares D’Araújo preferiu um termo menos simpático: “aviltador de constituições”. A lei nunca foi algo para ser seguido, no máximo para ser usado. Democracia e vontade popular nada mais eram do que palavras vazias na boca de um demagogo a tomar o poder a qualquer custo. Vender-se-ia a alma, se fosse necessário. E ele a vendeu.
No fim das contas, porém, Lacerda teve os direitos políticos cassados, não participou das eleições de 1965 (que, aliás, foram suspensas pelos militares), virou-se contra a ditadura que havia ajudado a construir, e morreu em condições, no mínimo, estranhas, em maio de 1977, somente um ano antes do fim do AI-5. Deixou três filhos, biológicos. No entanto, ideologicamente, como principal nome da direita política brasileira durante a Quarta República (1946-64), deixou muito mais. O seu DNA golpista passou adiante, embora tenha ficado adormecido por um bom tempo.
Foram-se os Anos de Chumbo, e vieram a reabertura política, a volta dos civis ao poder e dos militares aos quartéis, a redemocratização. Para quem viu a direita brasileira ser representada por nomes como Fernando Henrique Cardoso (1931-), José Serra (1942-), Mário Covas (1930-2001), Franco Montoro (1916-1999) e Sérgio Motta (1940-1998), membros fundadores do PSDB (à época um partido político, hoje um espectro chefiada por caciques) parecia que as sementes sinistras de Lacerda jamais germinariam. O Brasil entrava na década de 1990 potencialmente esperançoso, com uma Nova Constituição, e escolhendo livre e diretamente todos os seus representantes, da esquerda à direita, inclusive o Presidente da República.
Em 1992, Fernando Collor foi afastado e impedido por denúncias de corrupção pelo Congresso Nacional, segundo as leis em vigor. Itamar Franco, seu vice, assumiu a presidência e fez um governo de união nacional (1992-1994), segundo as leis em vigor. Passou a faixa presidencial para o seu candidato, FHC, também segundo as leis em vigor. Este, por sua vez, após vencer Lula em duas ocasiões (1994 e 1998), não conseguiu fazer o seu sucessor (2002) e, por isso, se viu na nobre e simbólica tarefa de, pela primeira vez em muitas décadas, ser um presidente eleito democraticamente a, primeiro, reconhecer a derrota do seu candidato e, mais importante, transmitir o poder para um adversário também eleito democraticamente. Havia diferenças ideológicas, é verdade, mas a mensagem deixada pelo povo nas urnas era o que realmente importava. O sistema era eficiente, para os vencedores e para os que eram derrotados. Com a introdução das urnas eletrônicas, em 1996, o processo do voto ficou ainda mais rápido, prático e confiável. Nesse sentido, após duas vitórias (2002 e 2006), e deixar o governo com um índice espantoso de 80% de aprovação, Lula fez a sua sucessora – Dilma Rousseff (2010). Tudo sob o império impassível da Lei. Sem rupturas, intervenções militares, golpes, nada.
Irônica e miseravelmente, porém, foi nesse período, de crescimento econômico e estabilidade política, que os lacerdistas romperam a casca dos ovos. Eles esperaram com paciência, no submundo, nutrindo-se em doses cada vez maiores de ódio e rancor.
Ódio ao sistema político, que solenemente os havia deixado de lado. Ao que tudo indicava, não havia espaço, na sadia disputa PT x PSDB, para arroubos autoritários e aventuras golpistas com militares a rasgar a Constituição. Itamar, FHC, Lula e Dilma faziam, cada qual à sua maneira, governos republicanos, decentes, em equilíbrio com os demais poderes e respeitabilidade internacional. Havia crises, mas eram contornáveis. A democracia vencia, e não era necessário mudá-la.
Rancor à sociedade, que, a partir dos governos Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985), não havia ido beijar os pés dos militares por terem lhes salvado do Perigo Vermelho. O povo, imaturo e ingrato, tinha esquecido de seus salvadores, de seus heróis, de seus vultos da Pátria, de pessoas como Carlos Lacerda. Resultado: o governo, agora, estava nas mãos dos comunistas. Não aqueles clássicos, de armas em punho, mas os que faziam uso de livros e ideias: Direitos Humanos? Meio ambiente? Políticas para minorias? Quanta desfaçatez. No Congresso? Somente corruptos e ladrões. Nas salas de aula, nada de disciplina ou estudos de moral e cívica, somente doutrinação esquerdista e método Paulo Freire. Até as igrejas haviam se convertido em células de subversão, em vez de pregarem estritamente o catecismo. O Brasil havia se tornado, nessa visão, uma mistura de boca de fumo e parada gay.
Isso cobraria um preço. Era preciso salvar o Brasil novamente. Era preciso voltar ao poder.
A qualquer custo.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
Veja no link abaixo a Parte 2 do texto:
Comente este post