* Roney Marcos Pavani
“Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida pra entrar na história”. Esta é, certamente, a frase mais dramática da política brasileira. Ela encerra a carta-testamento de Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), escrita pouco antes do seu suicídio, no início da manhã do dia 24 de agosto de 1954. Os eventos se deram na então sede da presidência da República, o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Desgastado pelas muitas denúncias contra o seu governo e acossado pela oposição implacável da UDN de Carlos Lacerda, Vargas passava pela pior crise, dentre as muitas que teve, em toda a sua vida política. Ele temia ser destituído e humilhado publicamente por aqueles que o perseguiam; antecipou-se à desgraça com um tiro no coração. O ato desesperado comoveu a nação e calou os inimigos.
Em toda a história do Brasil no século XX não existe personagem mais conhecido e mais emblemático. Durante os quase 20 anos nos quais manteve-se no poder, Vargas teve tempo e habilidade para construir uma memória inigualável sobre si. Ora lembrado como “pai dos pobres”, por suas políticas de apoio aos trabalhadores urbanos, ora como um ditador, responsável pela prisão, tortura e morte de milhares de pessoas. Ah, e é claro, mais recentemente, em tempos de redes sociais, blogues, textões, vídeos no YouTube, e de uma extrema-direita que se pretende revisionista, também como um “comunista maldito” (quem não é, não é verdade?) ou um “fascista fofinho” (sim, acredite). Segundo essas pessoas, para quem a educação formal (sobretudo pública) é uma falácia, e o ensino de História um punhado de “doutrinação esquerdista”, a República passou por somente uma ditadura – a de Vargas (o governo militar de 20 anos inaugurado em 1964, no máximo, seria algo como “um regime forte”). Ato contínuo, também afirmam absurdos revestidos de frases de efeito, tais como “o meu professor de História mentiu pra mim”, “isso os livros do MEC não mostram”, entre outras igualmente impactantes. Portanto, seria dever deles “ensinar a verdade” e proclamar aos quatro ventos a real face do varguismo.
O que esses pobres ignorantes (alguns nem tão pobres assim…) não sabem, nem pretendem saber, é que existem inúmeros estudiosos do assunto – daqueles que dedicam a sua vida inteira a pesquisar e ensinar sobre Getúlio Vargas – que reconhecem a máquina repressora de seu governo, em especial durante o chamado Estado Novo (1937-1945). Refiro-me a nomes célebres, tais como: Maria Celina D’Araújo, Angela de Castro Gomes, Jorge Ferreira, Lucília de Almeida Neves, Fabio Koifman, Francisco Carlos Teixeira da Silva, entre inúmeros outros presentes nos quadros universitários do país. Leiam seus artigos, assistam às suas entrevistas e palestras disponíveis na internet. A biografia “Getúlio” em três volumes do jornalista cearense Lira Neto, e lançada em 2012 pela Companhia das Letras, é uma verdadeira obra-prima. Ela une o rigor científico necessário à compreensão da história com uma prosa leve e acessível ao grande público.
Portanto, caro leitor, não perca o seu tempo (nem o seu dinheiro, em alguns casos…) com palpiteiros de quinta categoria. Esses só almejam curtidas, compartilhamentos e monetarizações, quando muito uma vaguinha no governo Bolsonaro, nada mais. E, se me permite, se o assunto é o período mais sanguinário da Era Vargas, as reflexões a seguir poderão ser úteis.
As condições para o surgimento e a implantação do Estado Novo (1937-1945) se formaram a partir do fervilhar de ideologias no princípio do século XX. Após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e com o sucesso da Revolução Russa (1917), chegou-se à conclusão de que o dogma do capitalismo liberal havia fracassado. Ao mesmo tempo, procurava-se conter o avanço comunista (ainda há quem o faça, como sabemos). No lugar de ambos regimes, surgiram duas tipologias básicas: os chamados Regimes Totalitários, na Europa, e o keynesianismo, nos EUA. Embora completamente diferentes, ambas criticavam a economia de mercado e viam no Estado um regulador do sistema.
Entre essas possibilidades, ora mais à esquerda, ora mais à direita, emergiram novas formas de organização social. Aliás, o nome Estado Novo não era uma exclusividade brasileira, mas sim o mesmo nome concedido às ditaduras de Francisco Franco (1892-1975) e Antônio Salazar (1889-1970), na Espanha e em Portugal, respectivamente. O “novo” aqui representava, exatamente, um caminho entre o capitalismo liberal clássico, o comunismo e os demais regimes.
Nesse sentido, o Estado deveria aglutinar a nação, por meio da criação de um partido único ou, mais especificamente, de um chefe político único. Nas palavras do intelectual getulista Oliveira Viana (1883-1951): “nosso partido é o presidente!” Todas essas medidas ideológicas procuravam eliminar os conflitos na esfera política, e, ao mesmo tempo, mobilizar as massas em prol de um único ideal.
Internamente, o golpe dado por Getúlio Vargas (que chegara ao poder em 1930) ocorreu no dia 10 de novembro de 1937. Não se pode dizer que não houve oposição, embora essa não tivesse condições para reagir. Muitos autores inserem a causa última do golpe no chamado “Plano Cohen” – uma falsa conspiração judaico-comunista, forjada pelas forças do exército (isso não lhe soa familiar?). A pretexto de contê-la, Vargas teria as justificativas necessárias para se perpetuar no poder, por meio do endurecimento do regime e do cerceamento das liberdades. (isso também não lhe soa familiar?) Na realidade, porém, o tal plano foi apenas a consolidação de um processo iniciado há algum tempo.
Em 1935, por exemplo, a Aliança Nacional Libertadora (ANL) encabeçada por Luís Carlos Prestes (1898-1990) e contando com o apoio financeiro e militar do Partido Comunista Soviético, procurava implantar um governo “popular e revolucionário”. Diante de uma ameaça real a seu governo, Vargas impôs, no mesmo ano, a Lei de Segurança Nacional, manifestada pela implantação de um Estado de Sítio, por torturas e prisões de toda a ordem. No entanto, essas armas não combatiam somente a esquerda radical, mas também os opositores liberais. Nesse contexto, parlamentares foram presos ou exilados e as Forças Armadas foram colocadas em alerta, o que explica a falta de reação ao golpe.
Imediatamente, foram criados vários outros mecanismos de repressão: 1) a comissão para minar oposições de norte a sul do país; 2) a guarda pessoal de Getúlio Vargas; 3) o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), controlando os meios de comunicação e censurando notícias que colocassem em risco a “segurança nacional”; 4) o fechamento do Congresso e a supressão das eleições para governadores estaduais.
No entanto, o lado mais ambíguo (e, certamente, o mais bem empregado) do Estado Novo não estava no âmbito político-administrativo, mas no que dizia respeito à política cultural e à educação. Por um lado, vários projetos e intelectuais de esquerda e progressistas, defensores de uma “brasilidade” autônoma, muito em voga no Brasil após a Semana de Arte Moderna de 1922, foram contemplados. No campo propriamente educacional, por outro lado, procurava-se educar os jovens e as crianças, desde a mais tenra idade, contra “influências externas”. Isso foi levado a cabo mediante a nacionalização do ensino (não se poderia ensinar em outra língua que não o Português), o controle centralizador dos currículos, e a promoção de várias manifestações estudantis de caráter ufanista em estádios de futebol, como o de São Januário.
Nesse mesmo caminho, deu-se uma produção massiva de uma bibliografia sobre Vargas – sobretudo para crianças, contribuindo para moldar as consciências em torno do mito que se construía. Exaltando a figura do presidente, de sua história pessoal e de sua chegada ao poder, procurava-se legitimar, mediante uma narrativa retroativa e providencialista, o atual estado de coisas.
Certamente, o varguismo sempre será lembrado por seu modo sui generis de lidar com o tripé: indústria-trabalhadores-governo. A conjunção perfeita dessas três esferas foi, mais do que sua política de censura e repressão política, a grande responsável pela perpetuação do regime até finais de 1945.
A explosão da indústria e as modificações nas exportações do café, que deixava de ser o principal produto voltado ao mercado externo, ganhou apoio tanto por parte da direita quanto da esquerda. Esse nacionalismo econômico possuía um grave toque ideológico, servindo ao projeto autonomista que até então se queria construir. Por outro lado, à iniciativa privada era destinada apenas a produção de bens de consumo não-duráveis. Assim, criava-se uma crença inapelável do Estado como propulsor do desenvolvimento econômico.
Se o Estado Novo modelava os meios de produção, também se fazia presente na formação de uma força de trabalho domesticada, que evitasse os conflitos de classes, tão frequentes na Europa e nos EUA. Para tanto, foram lançados vários mecanismos de controle e tutela: a ideia de sindicato único por categoria, atrelado ao Ministério do Trabalho; o imposto sindical (inclusive para não filiados); e a justiça do trabalho, para mediar, via aparelho estatal, as relações entre patrões e empregados.
Desta feita, o governo se empenhou na construção de uma nova cultura: o “trabalhismo”, sintetizado pela criação da Carteira de Trabalho e Previdência Social, e pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT): identificação profissional, duração (jornada) do trabalho, salário-mínimo, férias anuais, segurança e medicina do trabalho, proteção ao trabalho da mulher e do menor, e previdência social. Essa nova cultura, por fim, ficou marcada nos discursos de Vargas, sempre iniciados com o vocativo: “trabalhadores do Brasil…” Em outras palavras, o brasileiro passava paulatinamente a se identificar mais como “trabalhador” do que como “cidadão”.
Assim, transmitia-se fervorosamente, seja pelo ensino ou pelos meios de comunicação, a ideia de que antes de Getúlio Vargas não havia direitos sociais ou a participação dos trabalhadores na vida econômica do país. Na realidade, porém, tais direitos existiam, e explodiam greves e manifestações sociais desde a República Velha. O que diferenciava Vargas de seus antecessores é o enquadramento sindical e o controle absoluto das relações trabalhistas pelo governo central.
Todas essas características ficaram profundamente marcadas na cultura e, principalmente, nas discussões políticas brasileiras. Não por acaso, todos os partidos formados após a dissolução do Estado Novo, tais como o Partido Social Democrático (PSD), a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) se viam, ideologicamente, referenciados a Vargas: seja contra, seja a favor. Além disso, as medidas criadas por Vargas, mesmo após o Regime Militar (1964-1985) e a promulgação da Constituição Federal de 1988, por raríssimas vezes foram postas em discussão, sendo somente abolidas com a Reforma Trabalhista de 2017, durante o governo de Michel Temer.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
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