ENSAIO
* Roney Marcos Pavani
Em seu seminal ensaio – Minha história das mulheres – a historiadora e professora Michelle Perrot (2007) esclarece que o ato de escrever uma história do ponto de vista feminino não significa, em absoluto, redigir biografias sobre mulheres específicas; tampouco quer dizer escrever uma história “menor”, “desviante”, “suplementar” à história “oficial”, “geral”, “masculina”. A tarefa a qual os historiadores e historiadoras se impõe, nesse sentido, visa a alcançar as mulheres em seu conjunto, como parte imprescindível para se compreender os processos históricos na sua totalidade. Afinal de contas, a história, embora nem sempre seja contada por homens e mulheres, ela é, efetivamente, feita por homens e mulheres: “Uma história ‘sem as mulheres’ parece impossível. Entretanto, isso não existia” (PERROT, 2007, p.13).
Por outro lado, durante muito tempo e para preencher essa lacuna, imaginou-se que escrever uma história não só de homens, mas com as mulheres, seria fazê-lo ao enfatizar o seu papel “subalterno”, “oprimido”, “vítima” do poder masculino. Vários foram os autores e várias foram as obras publicadas nesse sentido, abrangendo do Paleolítico Superior à Pós-Modernidade. Nesse sentido, o patriarcado sempre fora uma constante e coube às mulheres lidar mais ou menos passivamente com ele. Embora estes trabalhos tenham algum valor, no sentido de abrirem os caminhos para além de uma história positivista, masculina, de figuras públicas (“tudo o que é, é”), a conclusão a que se chega no minuto seguinte é que a história das mulheres não teria nada de propriamente “histórico”. Se constituiria num imenso e imutável panorama: a condição das mulheres é, infelizmente, inferior, e não há muito o que se fazer com relação a isso. Ora, como conviver com esse tipo de abordagem?
Pausa para um esclarecimento: dizer que as mulheres não devem ser analisadas apenas pelo viés da dominação masculina não significa, de modo algum, dizer que essa dominação não exista. Uma história que conte como grilhões foram rompidos precisa partir do princípio de que esses grilhões são reais (às vezes imperceptíveis, mas reais). Provavelmente o maior nome nesse quesito, que tratou do poder dos homens sobre as mulheres de forma ambiciosa e ousada, como um exemplo paradigmático do conceito de “violência simbólica”, seja Pierre Bourdieu e sua magistral A dominação masculina (2012). O objetivo principal da obra é demonstrar como as relações entre homens e mulheres, superficialmente “neutras”, são construídas e arbitrárias, formando o que o autor mesmo chama de “linhas de demarcação místicas” (BOURDIEU, 2012, p. 9). E mais, essa dominação é eficiente justamente por seu caráter invisível, formulada em espaços que não só o doméstico, mas também o de instituições como o Estado, a Escola, a Igreja. É nesses espaços que a “mágica” da dominação é criada e repassada, gota a gota, para os demais cantos da sociedade, de modo a aparecer “naturalizada”, como o ar que se respira.
Bourdieu também chama a atenção para o fato de que a ênfase na violência simbólica não significa diminuir a importância da violência física contra as mulheres. Parêntese: no primeiro semestre desse ano, o número de casos de feminicídio no Brasil beirou os 700, cerca de 4 por dia, o que significa dizer que, nos últimos anos, a violência com base no gênero tem crescido. Em outras palavras, escrever uma história das mulheres hoje pressupõe escapar de dois extremos: o primeiro, que quer dar destaque às cadeias que as prendiam; e o segundo, que quer fazer crer que tais cadeias nunca existiram. O caminho do meio seria colocar no papel o processo pelo qual as mulheres, em suas cadeias, debatiam-se, feriam-se, gritavam de dor, suavam, sangravam e, por vezes, libertavam-se (obviamente, sofrendo na pele as consequências dessa liberdade). É caminhar da passividade ao protagonismo. À mulher “passiva” seguiu a mulher “invisível”, aquela que não era possível estudar devido à carência de fontes. De fato, desde os primórdios da constituição do saber histórico como ciência e disciplina universitária no século XIX, fomos ensinados que “história” diz respeito “ao que aconteceu”, e, sobretudo, “ao relato sobre o que aconteceu”. E os relatos não são todos iguais, não têm a mesma importância. História não é “fofoca”, “boato”, “anedota”; é algo público, geral, amplo, que se encontra nos arquivos e nos documentos oficiais, e se opõe ao que é privado, familiar, restrito. Por essa lógica, sendo as mulheres historicamente invisibilizadas no espaço público, o único digno de relato, elas não possuem história. Aliás, sempre houve quem considerasse prudente que assim o fosse. Mulheres eram somente lembradas em duas ocasiões: ou piedosas, ou escandalosas.
No entanto, devemo-nos atentar para o crescimento da presença feminina nas várias esferas da vida social (mercado de trabalho, campo artístico e científico, política), o qual produziu um reflexo significativo também na historiografia. Disso decorrem novos paradigmas, novas histórias e novos problemas, dando origem às questões de gênero, ao mesmo tempo, questionando o discurso hegemônico masculino (MATOS, 2006, p. 9-10). À crise dos paradigmas oriundas do pós-modernismo relativista, seguiu-se a descoberta da alteridade, dando-se voz àquelas figuras excluídas na (e da) história, já que quem a escreve, como sabemos, são os vencedores. Tal fato estimulou, ainda segundo Matos (p. 11-12), os historiadores e pesquisadores nas áreas de Humanidades a descobrirem as mulheres como objeto de estudo e sujeitos da história. A temática da mulher, portanto, tornou-se uma constante em vários aspectos, também, e especialmente, nos meios de comunicação e em reivindicações de toda a ordem. Caminhou-se do verniz invisibilizador à mulher manifesta, banhada pelo sol do meio-dia. Dona de si mesma, inclusive de seus vícios e virtudes. Nas palavras de Perrot: […] a história das mulheres mudou. Em seus objetos, em seus pontos de vista. Partiu de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que provocam a mudança. Partiu de uma história das mulheres para tornar-se mais especificamente uma história do gênero, que insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade. Alargou suas perspectivas espaciais, religiosas, culturais (PERROT, 2007, p. 15-16).
Já não é possível compreender a história sem a presença das mulheres. Presença essa enquanto objetos de análise e, de modo especial, enquanto sujeitos que desempenham essa análise. Se a história fosse uma obra literária, as mulheres não se resumiriam ao papel de personagens, mas de narradoras. Não para, simplesmente, ouvirmos o que uma mulher tem a dizer, e sim para, através desse discurso, ampliar a nossa visão da realidade.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
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