ENSAIO
* Roney Marcos Pavani
As transformações socioculturais ocorridas na Europa nas primeiras décadas do século XX, sobretudo após a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da Revolução Russa (1917-1922), geraram as mais diversas consequências para a literatura europeia. Escritores e intelectuais de um modo geral procuravam, cada qual à sua maneira, interpretar os processos de modernização e as consequências que deles emergiam, relacionando-os com o seu próprio ambiente em questão. Desses debates surgiam três tipos de ficção: as que enfatizavam sentimentos de angústia e desilusão, outras responsáveis por criar cenários distópicos, outras ainda por produzir mundos de espanto e fantasia. A Inglaterra, o centro do então maior império da Terra, não poderia ser exceção nesse importante processo. Seus literatos pensavam em como compreender um projeto de modernidade que, paradoxalmente, se propunha a construir um mundo melhor, mas que produzia catástrofes.
Um de seus mais ativos e fecundos autores, apesar de ter suas obras pouco analisadas do ponto de vista político, foi o professor e criador da literatura fantástica moderna John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973). Autor do internacionalmente aclamado O Senhor dos Anéis, Tolkien é um dos exemplos dessa complexidade do pensamento ficcional europeu da primeira metade do século XX. Sua mitologia, inigualável até hoje em profundidade e complexidade é, ao contrário do que muitos críticos dizem, muito mais do que “escapismo” ou “alienação”. Ao contrário, os temas recorrentes em suas narrativas – decadência, desencanto, tragédia e ameaça – são um retrato de sua época e, sobretudo, uma crítica aguda ao mundo moderno (em especial no que tange à urbanização acelerada, à industrialização e ao desenvolvimento tecnológico), e às pretensões racionalistas que o geraram. Simultaneamente, a obra que Tolkien produziu entre 1917 e 1949 é fruto desse mesmo mundo, ao ser redigida em um gênero tipicamente moderno – o romance.
J. R. R. Tolkien nasceu em Bloemfontein, no então Estado Livre de Orange. Filho de pais ingleses – Arthur Tolkien e Mabel Suffield –, que haviam saído de seu país pelo caminho aberto pelo expansionismo do Império Britânico e sua busca por mercados na África do Sul.
Tolkien perdeu o pai precocemente, ainda com quatro anos de idade. Com isso, ele, sua mãe e seu irmão Hilary voltaram a se estabelecer na Inglaterra. Inicialmente, e por pouco tempo, na região rural e idílica de Sarehole. Tempos depois, a família migrou para os subúrbios de Birmingham, de paisagem suja, barulhenta e medonha.
Esse contraste entre o campo e a cidade, a natureza e a indústria foram fundamentais, mais tarde, para o seu desprezo à tecnologia e à modernização, ao que ele mesmo viria a chamar de “maquinário”.
Com a eclosão da Primeira Guerra, Tolkien procurou conciliar a vida acadêmica (um promissor estudante de idiomas antigos em Oxford) com o posto de Segundo Tenente no Corpo de Fuzileiros de Lancashire. Em 1916, ele partiu para a França, onde teve participação na linha de frente da Batalha do Somme. Entre as impressionantes 1,1 milhão de vítimas resultantes desse combate, estava Rob Gilson (1893- 1916), um de seus amigos do clube de leitura da faculdade. Pouco depois, em dezembro, também morreria G. B. Smith (1894-1916), outro dos membros do grupo. Este último deixara a Tolkien uma breve carta, como um incentivo para, no futuro, desenvolver seus talentos de escritor: “possa você dizer as coisas que tentei dizer, muito tempo depois de eu não estar aqui para dizê-las”.
A nostalgia de uma Belle Époque e a noção de descontinuidade entre o passado e o futuro foram as marcas desse período. Era preciso, inclusive artisticamente, reinventar tradições e regressar a um suposto equilíbrio rural pré-capitalista. Por outro lado, o universo cultural também se abria a novas possibilidades, como por meio do jazz, da moda feminina e dos bares noturnos.
Em outras palavras, houve uma revolução profunda nos artistas e em sua relação com o mundo. Na literatura de língua inglesa isso se manifestou de várias formas: ora enfatizando-se as desilusões do período, o caso de autores como Siegfried Sasson (1886-1967), T. E. Lawrence (1888-1935), Wilfred Owen (1893-1918) e Virginia Woolf (1882-1941); ora por meio da criação de universos desconhecidos e cenários distópicos: H. G. Wells (1866-1946), Aldous Huxley (1894-1963), George Orwell (1903-1950); ora de mundos de fantasia e de espanto: H. P. Lovecraft (1890-1937), C. S. Lewis (1898-1963), Robert Howard (1906-1936), além do próprio J. R. R. Tolkien.
Em sua obra, ele representou uma mistura de sentimentos. As desilusões trazidas pela experiência nas trincheiras, mais a criação de um mundo fantástico, inspirado sobretudo nas lendas nórdicas, porém com um grau refinado de complexidade, deu origem ao que ele mesmo chamou de The Book of Lost Tales. Os três contos desse compêndio – The Fall of Gondolin, The Children of Húrin, e Beren & Lúthien, escritos entre 1917 e 1930 (mas só publicados em épocas bem posteriores), diziam respeito às aventuras e às desventuras vivenciadas por personagens humanas e semi-humanas em um passado longínquo e grandioso.
Esse lugar, essa Terra de muitas eras atrás, era permeada de seres maravilhosos (elfos, magos, etc.) e elementos sobrenaturais (como armas, joias e artefatos de grande poder). Isso não quer dizer que se trate, como à primeira vista pode soar, de um enredo de super-heróis. O elemento mágico existe sim, contudo é apresentado de modo muito mais sutil, indefinido. Ou seja, nem tudo o que existe pode ser apreendido e previsto pela mente humana. Uma realidade baseada em cálculos, crente na razão e dependente de máquinas, nesse sentido, pode ser perigoso.
De mais a mais, e assim como no mundo real, a beleza e a virtude estão constantemente sob ameaça. Há um Inimigo, um Mal de ambições ilimitadas. Todos os protagonistas, por sua vez, são criaturas trágicas, isto é, tentam escapar a um destino, mas que, por isso mesmo, são arrastadas para dentro dele.
As vitórias e os ganhos, quando ocorrem, nunca se apresentam plenamente como finais felizes. São agridoces. O elemento ameaçador pode até ser derrotado, porém há um preço a ser pago: a perda irreparável de vidas, sentimentos, encantos, valores. Nesse sentido, a conclusão a que se chega é que a fase posterior da história (Tolkien concebeu uma mitologia desenvolvida em três grandes eras) é sempre inferior, qualitativamente, à época pregressa. Em termos mais simples, a humanidade não progride. Ela decai.
Entre 1937 e 1949, ainda em Oxford, mas agora como professor, Tolkien redigiu seu trabalho mais conhecido: O Senhor dos Anéis. A ideia original era produzir uma continuação para o seu primeiro livro de ficção, um conto de fadas chamado O Hobbit. No entanto, conforme o enredo foi sendo desenvolvido, o novo conto adquiriu feições de temas grandiosos, isto é, as ideias já pinceladas nos textos lendários das décadas de 20 e 30.
Basicamente, os temas ameaça, decadência, desencanto, tragédia voltam à carga. Entre outras razões, o alcance e a magnitude da obra estavam em unir o corpus imaginativo que havia sido produzido anteriormente em um único romance. O personagem principal desse romance? Não era propriamente uma pessoa, mas um objeto, tentador e hipnótico. Um artefato que garantia ao usuário poder e longevidade. Porém, igualmente, era capaz de corrupção e morte. O argumento fundamental está na disputa entre aqueles que querem possuí-lo e aqueles que, por outro lado, querem destruí-lo.
Trata-se de um anel, que seduz e amedronta. Mas que não pode ser usado, nem mesmo com boas intenções, sem consequências profundas, transformadoras e nefastas. Ele é, por natureza, ambivalente, e está fadado a voltar-se contra si mesmo. Não por coincidência, o único local em que ele pode ser destruído é exatamente o mesmo em que foi forjado. Por analogia, trata-se de um símbolo da modernidade, que, simultaneamente, tudo cria e que tudo destrói.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
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