OPINIÃO
* Roney Marcos Pavani
“Estou inocente desse sangue. A responsabilidade é vossa” (Mt 27,24). A passagem evangélica é célebre e ecoa aos nossos dias. Pôncio Pilatos, então governador da província da Judeia, preside o julgamento de Jesus Cristo por crimes contra o Império Romano. Após um breve interrogatório, além de ouvir alguns testemunhos imprecisos, ele está convencido da inocência do réu. Porém, e de modo a agradar a uma turba raivosa e faminta por um cadáver, decide por agir contra a própria consciência (e contra o próprio sistema legal que encarna) e entregar o nazareno aos soldados para que procedam com a execução. Uma pergunta: teria sido Pilatos o primeiro populista da história? Certamente não. Lideranças a romperem com as leis em vigor de modo a agradar a algumas dúzias de pessoas é um expediente tão antigo quanto, bem, a existência de lideranças. Mas a cena não termina por aí, e eis a peculiaridade do nosso personagem: ele não faz questão de ocultar, como é praxe entre os políticos, a sua hipocrisia. Aliás, busca explicitá-la em um gesto dramático: ordena que lhe seja trazida água e, lavando as mãos diante de todos, espera eximir-se da culpa por permitir a morte brutal de um inocente.
Não há espaço aqui para discutirmos a historicidade desse episódio. No entanto, recomendo a leitura dos trabalhos do brilhante historiador e Professor Titular da UFRJ, André Chevitarese, um especialista no tema do cristianismo originário e autor do livro “Jesus de Nazaré: o que a história tem a dizer sobre ele”. Seja como for, Pilatos entrou para a história (e para o Credo) como o símbolo máximo da covardia e do cinismo. Afinal, é ele mesmo quem diz a Cristo, em outra versão do julgamento: “não sabes que tenho a autoridade para te libertar e o poder para te crucificar?” (Jo 19,10). Sim, não há, em hipótese alguma, nivelamento de forças entre o magistrado romano e a ralé que supostamente o pressiona. Ela faz barulho, é verdade, mas nada além disso. Essa gente não é responsável por nada. É dele, de modo exclusivo, que emana o poder e a mão que condena, todos o sabem.
Em outras palavras, Pilatos exemplifica todos aqueles que fingem, num exercício de autoengano, não serem responsáveis por seus atos. De quem tem sangue nas mãos e insiste em escondê-lo. Os que, em linguagem vulgar, “tiram o corpo fora”, desconversam, olham de lado e mudam de assunto em vez de encarar a própria consciência. Especialmente quando as consequências de seus atos (ou de suas omissões, como é o caso) é nefasta.
Duvido que na história recente desse país tenha havido algo mais nefasto do que os atentados às sedes dos Três Poderes, ocorridos há cerca de um mês. Inconformados com a derrota nas últimas eleições presidenciais, milhares de adeptos do ex-presidente Jair Bolsonaro resolveram que era hora de se vingar da vontade popular.
Que espetáculo: de repente, abriam-se os portões do inferno e uma horda demoníaca revestida de verde-e-amarelo irrompia prédios adentro, vociferando palavras de ordem, quebrando vidraças, pichando paredes, derrubando portas de gabinetes, revirando mesas e cadeiras, depredando obras de arte raras, rasgando exemplares originais da Constituição Federal. Nada ficaria em seu caminho. Não restaria pedra sobre pedra. Alguns dos congregantes de tal sabá cívico carregavam enormes faixas, clamando por velhos bordões golpistas, os quais nos acostumamos a ver nos últimos quatro anos: “Intervenção Militar já”, “Supremo é o povo”, dentre outras imbecilidades. Outros ainda, em verdadeiro êxtase profético, erguiam as mãos para os Céus em ação de graças; o Estado fora exorcizado. Houve até mesmo (provavelmente um pastor neopentecostal) quem levasse a Bíblia Sagrada para o festim, chancelando com versículos escolhidos a dedo tudo o que se passava.
Os tipos de criaturas envolvidas, bem como as performances desempenhadas foram das mais variadas (todas grotescas, é óbvio). Porém, me chamaram particularmente a atenção duas situações: primeiro, um punhado de invasores, como crianças possuídas em um macabro parque de diversões, que fizeram a mesa diretora do Senado de tobogã. Lá estava eles, a deleitarem-se em seu mais novo brinquedo, felizes da vida, pondo para fora uma infância reprimida e sem momentos de lazer, gargalhando ao melhor estilo Coringa. E também um homem (esse merecia até um troféu), mais ousado e criativo, abraçado à bandeira nacional, e que já exausto de tanto defecar pela boca, acocorou-se sobre uma espécie de caixote, e fez as suas necessidades fisiológicas literalmente (acreditem!) ali mesmo, em uma das salas do Supremo Tribunal Federal. Antes que me perguntem, sim, ele também fez xixi. Ah! Uma catarse patriótica completa! Tudo, como não podia deixar de ser em tempos de internet e redes sociais, minuciosa e orgulhosamente registrado sem o mínimo pudor por quem ali estava.
Desde então, a Polícia Federal já prendeu ao menos 20 suspeitos e cumpriu 37 mandados de busca e apreensão em operações contra envolvidos na organização, participação e financiamento dos atentados golpistas. Isso sem contar mais de mil pessoas presas em frente aos quartéis após os atos. Doze dias após as invasões, os agentes deram início à Operação Lesa Pátria que, no momento, está em sua 5ª fase e não tem prazo para terminar. Um dos objetivos é reunir provas para prosseguir com novas ações e novos alvos. O material apreendido ajuda na identificação de participantes nos crimes. Policiais e influenciadores conhecidos da bolha bolsonarista nas redes sociais estão entre os presos — um deles é Ramiro dos Caminhoneiros, apontado como um dos principais nomes na organização de caravanas para Brasília. Em menos de um mês, a PGR (Procuradoria-Geral da República) denunciou 653 pessoas. Em paralelo, o governo Lula (PT) promoveu uma desmilitarização do seu entorno. Só no primeiro mês de gestão, foram dispensados pelo menos 155 militares diretamente ligados ao Planalto, com postos da inteligência na Presidência da República, na vice-presidência e no GSI (Gabinete de Segurança Institucional).
É fundamental lembrar que uma aberração dessa magnitude não teria sido possível sem a conivência (e a cumplicidade) de certas autoridades, a começar pelo então governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), afastado, e seu Secretário de Segurança, Anderson Torres, exonerado. Além de policiais militares (as imagens de alguns deles conversando animadamente com os golpistas me causam ânsia de vômito), membros da alta cúpula das Forças Armadas e integrantes do já mencionado GSI. Todos que, assim como Pôncio Pilatos, insistem em fugir às suas responsabilidades e transferir a culpa para quaisquer outros. Que tal explicar, assim como o advogado de Bolsonaro, Frederick Wassef, que tudo não passou de “movimentos sociais espontâneos”? (Acredito que o antigo governador romano não conheceu o cinismo de certos juristas…).
E por falar no antigo mandatário, ele, por meio de sua defesa, prontamente repudiou todos “os atos ilegais e criminosos”, e disse ser, pasmem, “um defensor da constituição”. Sim, o mesmo indivíduo que durante toda a sua longeva e desprezível vida pública, defendeu: a instauração de uma nova ditadura militar (e que esta fizesse “o serviço que a primeira não havia feito, matando uns trinta mil”); a morte de seus opositores (“a começar por FHC”); a tortura como meio para obtenção de confissões; o fechamento do Congresso Nacional; a sonegação de impostos; a manutenção dos privilégios gordos e valiosos de parlamentares. E que, uma vez na chefia do Executivo, não passou um dia sequer sem ter feito investidas, diretas ou indiretas, a setores da imprensa, a adversários políticos, a ministros da Suprema Corte (sobretudo Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso), ao sistema eleitoral brasileiro (que chamou de “farsa”), ao Estado Democrático de Direito, como um todo.
Lembremos do que foi dito por ele, durante as manifestações de apoiadores seus em 7 de setembro de 2021: “Só saio preso [da presidência], morto ou com vitória (…). Quero dizer aos canalhas [sic] que eu nunca serei preso!” Tudo floreado por insultos, palavras de baixo calão e ameaças. Sim, foram quatro anos de incitação à barbárie, à violência, ao crime. E, quando finalmente ele acontece: “Oh! Que horror! Sou inocente desse sangue…”
Jair Messias Bolsonaro é o maior dos nossos (muitos) Pilatos. Mas ele não tem vocação para tanto. A máscara não convence mais, ao menos não à maioria dos brasileiros. O papel que lhe cabe agora nessa tragédia vem de Shakespeare, da conhecida peça Macbeth (1606), a quarta e última de suas obras que a crítica considera mais representativas. Nela, o personagem-título, um nobre guerreiro escocês, é convencido pela profecia de três bruxas de que se tornaria rei de seu país. Para tanto, ele mesmo convida o então monarca da Escócia, Duncan (que além de seu suserano, é seu parente), a passar a noite em seu castelo. Um estratagema diabolicamente arranjado para assassiná-lo e, ato contínuo, ascender ao trono. O crime acontece, sem intermediários ou mercenários, mas pelas mãos de seu mentor. Em seguida, culpam-se os camareiros do rei, que também são passados a fio de espada. Instantes depois, ainda imerso em um misto de adrenalina e tensão, Macbeth se reúne em segredo com sua esposa para se desvencilhar de qualquer peso na consciência. Porém, ao olhar para as próprias mãos, vê, no sangue que ainda está a manchá-las, a metáfora perfeita do seu atestado de culpa no crime hediondo: “Que mão são estas? Fazem-me sair os olhos fora das órbitas. Toda a água do grande Netuno chegaria para lavar este sangue das minhas mãos? Não; será antes esta mão que tingirá os incontáveis mares, tornando vermelho o que era verde.” Lady Macbeth, de modo muito mais resoluto, tenta confortá-lo: “Um pouco de água lavará isso tudo. Como é fácil!”
Será mesmo fácil? Para Bolsonaro; para seus lacaios da política e da milícia; para as empresas de telecomunicação e para os líderes religiosos que criminosamente fecharam os olhos diante de todo o descalabro protagonizado por ele; para aqueles que não aceitaram a derrota e, por isso, se prestaram ao papel ridículo de mendigar por um golpe militar que nunca aconteceria; para os que ainda creem em seu retorno glorioso e, por isso, ainda ostentam seus símbolos em carros e casas; para aqueles que durante a campanha disseminaram as mais estapafúrdias notícias falsas (desde que Lula havia vendido a alma ao Diabo e que fecharia igrejas, até que Alexandre de Moraes acabara de ser preso) e produziram, nas palavras de João Cezar de Castro Rocha (UERJ), uma “dissonância cognitiva coletiva” sem precedente na história. Fizeram da política uma cruzada do bem contra o mal, e ensinaram que certas pessoas deveriam ser eliminadas (a começar pelos “professores comunistas”). Eu os convidaria a todos, em maior ou menor grau, a olharem para as próprias mãos e perceberem o que fizeram.
Vou além, ao pedirem por água, é provável que recebam mais sangue no lugar.
Se bem que, a depender do nível patriótico de quem trouxer a bacia, poderão muito bem se tratar de fezes.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
Comente este post