* Roney Marcos Pavani
Boa parte das pessoas com as quais convivo já leu O Senhor dos Anéis, o clássico de Tolkien, até o final. Uma parte maior ainda assistiu às três adaptações dirigidas por Peter Jackson (2001, 02 e 03) inteiramente, inclusive mais de uma vez. E quem é um pouco mais velho, e perdia horas e horas com os filmes infinitamente reprisados na Sessão da Tarde e na Sessão de Sábado, da Rede Globo, também se emocionou um bocado com o fim da história de Coração de Dragão (1996) e de As Brumas de Avalon (2001). Esta última, uma minissérie inspirada no romance publicado em quatro volumes de Marion Zimmer Bradley (1982), que pretende contar a narrativa do mítico Rei Arthur, mas do ponto de vista das personagens femininas.
Essas três histórias têm em comum muito mais do que o seu pano de fundo, a temática ou o enredo – a fantasia medieval. O sentimento que permanece em todos eles vai muito além das espadas e feitiços, dos castelos e dos dragões, dos reis e dos cavaleiros. Na realidade, tem-se aqui a total e a infeliz certeza de que o mundo, em seu conjunto, está mudando. Nesse sentido, é seminal a fala de abertura de A Sociedade do Anel, o primeiro dos três filmes de Peter Jackson, posta na boca da personagem élfica Galadriel:
“O mundo mudou, posso senti-lo na água, posso senti-lo na terra, posso senti-lo no ar, muito do que havia está perdido, pois nenhum dos que se lembra, está vivo” (no romance de Tolkien, as palavras são ditas por Barbárvore, o ent).
Mais ainda, este mundo está a minguar, decair, enfraquecer-se. O futuro, por mais promissor e harmônico que seja – e não há dúvida de que a ação dos protagonistas nas três histórias concorrerá para isso – não terá, nunca mais, o mesmo vigor e a mesma magia de antes. A esse fenômeno de decadência, presente tanto na ficção quanto na vida real, pode-se acrescentar aquilo que o grande sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) chamou de Desencantamento do Mundo.
Através desse termo ele designa um processo histórico, ocorrido na civilização ocidental. Tal processo implica na “desmagificação” da realidade, que ocorre de duas formas: Primeiramente, por meio do desencantamento religioso, a magia vai sendo eliminada do interior das religiões e vai sendo substituída por uma prática religiosa fundada na ética. Além disso, e em segundo lugar, através do desencantamento religioso o mundo deixa de ser concebido como permeado por forças ocultas, que podem ser manipuladas magicamente, para ser controlado pela ciência e pela tecnologia – o grande sonho dos iluministas.
Trazendo as ideias de Weber para o que pretendemos discutir aqui, todos os aspectos da realidade de um mundo em decadência são mais fracos ou estão em um patamar inferior, se comparados aos do passado. Um exemplo: ao final de O Retorno do Rei, com a derrota de Sauron, o Senhor do Escuro, tem-se a certeza de que todos os vilões e demais seres malignos ainda presentes no mundo (orcs, wargs, trolls, aranhas gigantes, etc) são infinitamente menos poderosos e, consequente, menos perigosos do que ele. E mais, também se sabe que isso sempre será assim. É um caminho inexorável. Sauron, por sua vez, embora seja um ser extremamente terrível e perverso, é somente um servidor da primeira entidade maligna – Melkor (Morgoth) – o inimigo de homens e elfos na Primeira Era. Ou seja, a realidade é decadente desde a sua formação mesma.
O mesmo acontece com a presença de seres extraordinários, que guiavam a humanidade e que não mais o farão: Gandalf, o Branco, Merlin, o Mago ou as fadas Morgana e Viviane, e Draco, o último dragão. Sem eles, os povos livres, os bretões, as pessoas de um modo geral hão de ficar, para sempre, sozinhos. Consequentemente, os fenômenos mágicos e sobrenaturais passarão a ser cada vez mais raros, até desaparecerem. Sinais, milagres, profecias não serão mais vistos, ao menos não com a mesma frequência (ou com a mesma proximidade) com a qual eram vistos há séculos. De fato, a principal mensagem passada ao imaginário das pessoas e das sociedades é exatamente o esvaziamento desse mesmo imaginário, e o apego irrestrito ao materialismo, ao que é concreto, palpável e imediato.
Ora, a própria concepção de história herdada de judeus e cristãos, a base fundamental da cosmovisão ocidental, é essencialmente linear e decadente. No princípio, antes da Queda, Deus e o homem conviviam lado a lado. Após o pecado de Adão, o homem é expulso do Paraíso, embora a convivência com Deus ainda seja direta e constante (Caim, Henoc, Noé). Segundo os relatos míticos do Gênesis, estimava-se que a vida humana tinha diminuído segundo as grandes idades do mundo: antes do Dilúvio, os homens atingiam mais de 900 anos; após o Dilúvio, ela será apenas de 200 a 600 anos, e inferior a 200 anos para os Patriarcas (Abraão, Isaac, Jacob). A diminuição dessa longevidade extraordinária está em relação com o progresso do mal no mundo, pois uma longa vida é encarada como uma bênção de Deus.
Com o passar das eras, por outro lado, Ele passa a se manifestar através de meios materiais (como o episódio de Moisés e da Sarça Ardente), ou de profetas – que falam EM SEU NOME. Ainda existem fenômenos sobrenaturais, como a Passagem pelo Mar Vermelho, ou o Sol que para de caminhar pelo céu, ou o caso de Jonas, que vive durante três dias nas entranhas de um monstro marinho, mas percebe-se uma clara diminuição em sua ocorrência. Portanto, a relação entre Deus e os homens passa a ser somente indireta, e cada vez mais distante.
Podemos traçar um paralelo entre essas tradições míticas com o que se viam em muitas outras civilizações, quase como que um fenômeno universal. Para o caso da Civilização Grega, isso não é diferente. Citando o célebre historiador Moses Finley (1912-1986):
“A história do declínio e da queda da humanidade foi contada de muitas maneiras. Segundo uma versão muito elaborada, talvez de origem iraniana, a humanidade atravessou quatro idades, quatro etapas afastando-a cada vez um pouco mais da justiça e da moralidade, do paraíso onde os deuses originalmente a tinham colocado. Cada idade era simbolizada por um metal: por ordem de valor decrescente o ouro, depois a prata, o bronze ou o cobre e por fim o ferro. Veio o momento em que este mito se difundiu para o ocidente, até a Grécia. Mas quando aí o encontramos pela primeira vez em Os trabalhos e os Dias de Hesíodo, tinha-se enriquecido com um elemento inteiramente novo. Uma quinta raça encontra-se intercalada entre a idade do bronze e a época presente, a idade do ferro. (…) ‘raça divina dos heróis chamada semideuses e cuja geração nos precedeu sobre a terra sem limites. Eles pereceram na dura guerra e na contenda dolorosa (…). A outros, Zeus deu uma morada afastada dos homens, estabelecendo-os nos confins da terra’.” (FINLEY, Moses. O mundo de Ulisses)
Partindo desse princípio, em nosso mundo moderno, a história se dessacralizou, a política perdeu o seu caráter encantatório, as artes deixam de representar o que pode ser para se conformar com o que é. Até mesmo as religiões – o cristianismo, em especial – se sustentam sobre colunas imanentistas: de sessões e milagres previsíveis (o que é uma contradição em termos) até formas fáceis de se ganhar dinheiro. Tudo isso foi bastante lamentado, por exemplo, pelo movimento romântico do século XIX.
Nesse contexto, a palavra somente não é ingênua: o ser humano é somente um emaranhado de células ou somente mais uma espécie única; o casamento é somente um contrato; a educação e o estudo são somente meios para se conseguir um emprego; a alta cultura é somente o ponto de vista das camadas mais favorecidas da sociedade. Não há encanto, magia, sobrenatural, nada.
Para concluir, a realidade tem mudado. As certezas foram desfeitas e os valores imutáveis caíram por terra. Não se trata de um processo neutro, mas de perdas constantes – um progresso de decadência. Não se trata, porém, de abrir caminho para o apocalipse. Trata-se tão somente de sentir pela perda do que era bom. Logo, como a vida dos seres, que crescem, amadurecem e envelhecem, o mundo enquanto tal também envelhece, enfraquece, definha. Mais sábio, no entanto, também mais próximo da morte.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
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