* Camilo Maia Moraes
Mais do que um jogo, mais do que esporte, mais do que uma conquista.
O título de Campeão da Libertadores 2019 para os flamenguistas, da forma como se deu, foi conto de fadas.
A história do futebol abriu página de fábula no dia 23 de novembro de 2019, quando, naquela “última hora”, a abóbora é que virou carruagem voadora e saiu pelo céu do Brasil despejando “pó de pirlimpimpim” para que toda favela pudesse voar junto.
Sobre a tal carruagem voavam várias criaturas fantásticas, dentre as quais um Sábio Português, um Mago Uruguaio, um “Zagueiro de Condomínio”, um “Senhor do Anel”, três Capitães e até um “Papai Noel” todo tatuado, barba preta e cabelo pintado, despejando magia sobre seu povo.
Só viajando na fantasia para tentar traduzir as emoções de quem vê a sorte mudar de mãos em três minutos. Aos 43 minutos eu ainda era vice e aos 46 minutos eu já era o campeão que sonhava ser desde menino. Aos 42 anos e aos 42 minutos do segundo tempo, estou sentado sozinho no sofá e consigo sentir rivais também contando segundos e se agitando, mas com motivação inversa. Aos 43 minutos eu grito o primeiro gol, a garganta arde com o desafogo e digo a mim mesmo “tem jogo”. Aos 46 minutos, eu salto do sofá e corro desvairado pelo quintal gritando “goooool, é campeãaaaao”. Lá pelos 49, meu goleiro sobe e intercepta o último cruzamento deles à nossa área. Lá pelos 51 o árbitro encerra o jogo, finda minha ânsia e cerra definitivamente os olhos de seca pimenteira de todos os que não queriam o inexorável, o que agora é eterno para a maioria, uma maioria que tem de tudo, do bandido ao mocinho, mas que tem, principalmente, muita gente humilde, que se por um lado vive à margem do Poder Público, que não consegue lhes dar a dignidade de direito, tem uma instituição que ao menos de 38 em 38 anos lhes permite “sonhar acordado”.
Não é só futebol porque é paixão infinita, incomum porque não se acaba com o passar dos anos. O ser humano é bem diverso em sua individualidade e enquanto uns nutrem paixões por carros, por casas, por homens, por mulheres, por filhos, pelo dinheiro, pelo trabalho, há também quem nutra paixão por uma instituição do mundo do futebol e, diferentemente de futebol, paixão não se discute.
A felicidade hoje deveria ser plena, mas não é. Não há como ser um flamenguista plenamente feliz sabendo que paralelamente à felicidade do título em Lima há algumas famílias que ainda choram a perda dos 10 Meninos do Ninho e seguem discutindo com o clube o valor pecuniário que possa indenizar a dor tão “eterna” quanto “eterno” é o título de sábado.
O Flamengo ainda não pagou a alguns o que pedem porque entende que não deve o tanto quanto pedem, e nisso acredito que tenha razão. Uma consulta à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça mostra que o valor que “alguém” entendeu ser o devido para o caso da tragédia no Ninho do Urubu em 8 de fevereiro de 2019 jamais foi pago por aqui, independentemente da tragédia.
A tragédia foi lastimável, mas nem nós torcedores, nem os jogadores, nem os dirigentes ou funcionários queriam que aquilo tivesse acontecido, jamais, e é daí que o grito de “time assassino” cantado pela torcida rival no último clássico no Maracanã não nos afeta, porque o termo “assassino” guarda em si o peso do dolo, peso que ninguém no Flamengo carrega.
O que o Flamengo ofereceu às famílias das vítimas também é muito mais do que o máximo que os Tribunais Superiores já condenaram alguém a pagar como indenização por evento morte e por isso a diretoria é convicta de que está com a razão, de que quem não está com a razão é quem plantou nas cabeças das famílias que o devido é mais.
Pagar o quanto inventaram (porque não há precedentes para o valor sugerido) ser o devido pode ser entendido por um departamento jurídico como um precedente tão voluntário quanto arriscado, mas risco é palavra inerente à vida e muitas vezes o risco que se corre é apenas o de ser digno além da conta.
Para além de tudo isso, e este é o parágrafo mais importante deste texto, há um sábio ditado popular que diz que mais importante que ter razão é ser feliz.
Não deve o quanto pedem, mas, “Flamengo”, pague o quanto pedem, abdicando da razão e abraçando sem peias o estado de felicidade, para que aquelas famílias tenham paz e para que “todos” os flamenguistas “descansem em paz” na plenitude de sua felicidade.
* O autor é colaborador do Correio9, servidor público “até morrer” Rubro-negro para além
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