Elias de Lemos (Correio9)
A concepção geral da nossa civilização é de que a sociedade humana foi edificada dentro da perspectiva que somos todos humanos. Todos com as mesmas origens. Todos feitos da mesma matéria. Todos dotados de sentimentos. Todos dotados de força. Todos possuidores de fragilidades.
Mas, é claro que no mundo real as pessoas não são iguais. Nem no nascimento e em nenhum momento deste caminho até a morte. Neste sentido a dúvida é: se as pessoas não são iguais, elas deixam de ser humanas?
A desumanização do outro existe desde que o mundo é mundo e é uma ferramenta recorrente do ser humano. Somos acostumados a classificar pessoas dentro de substantivos coletivos e as adjetivamos de forma depreciativa: corja, bando, cambada, entre tantos outros.
Usamos adjetivos substantivados como: os terroristas, os aproveitadores, as putas, os canalhas, os bandidos, os marginais…
Usamos neologismos com o mesmo objetivo, as bichas, os lgbt, os petralhas, os evanjegues, os esquerdopatas… Usamos a língua para julgar e desumanizar pessoas sem conhecê-las, sem viver seus dramas, ignorando suas origens, seus vínculos e sua humanidade.
Usamos chavões: bandido bom é bandido morto; se morreu boa coisa não fez.
Não eram, afinal, seres humanos. Dotados de racionalidade, de sentimentos e de uma história por trás. Não deviam ser entendidos, compreendidos ou mesmo aceitos. O objetivo da desumanização é construir uma barreira psicológica e cultural que impeça que se veja o outro. Que se sinta e entenda o outro. Que busca formas de eliminá-lo, afinal, ele não é humano, portanto, não deve existir.
O nazismo e o fascismo fizeram isto, a história é conhecida, apesar de muitos a negarem.
No Brasil, a palavra da moda é ‘comunista’. Qualquer um que defenda a vida, o direito à dignidade e à integridade física e moral, é classificado como comunista e defensor de bandido é um ‘esquerdopata’. No entanto, o uso do termo ‘comunista’, como vem sendo usado, é uma expressão tola e inócua, dado que o comunismo não existe, nunca existiu e nem nunca vai existir. Ele não passa de uma ideia, uma utopia.
Os anticomunistas defendem o liberalismo e condenam o marxismo. Uma demonstração clara de que ignoram as duas coisas.
O alemão Karl Marx foi um filósofo, sociólogo, historiador, economista, jornalista e revolucionário socialista. Suas obras não tratam exclusivamente de economia, mas procuram explicar como se dão as relações econômicas a partir do instinto natural do homem explorar seu semelhante. Ele é mais sociólogo do que economista.
No vértice oposto está o fundador do liberalismo, o inglês Adam Smith. No entanto, os defensores do capitalismo pregado por ele desconhecem as bases do pensamento capitalista.
O capitalismo nasceu a partir de uma dúvida que movia o pensador inglês; um questionamento que, aparentemente, não tem nada a ver com economia, pois, ele procurava descobrir o caminho da felicidade. Sua investigação foi sobre a condição necessária para o homem ser feliz.
A teoria produzida pela investigação de Smith é dividida em duas explicações. A primeira está no livro Teoria dos Sentimentos Morais (TSM), publicado em 1759; a segunda em dois volumes de A Riqueza das Nações, de 1776.
O primeiro livro trata da descrição do comportamento humano em grupo. Como o indivíduo escolhe a qual grupo pertencer e como ele age na convivência grupal. Para Smith a escolha inicial é baseada na simpatia, a qual se fundamenta no sentimento de aprovação e reprovação. Desse modo, cada indivíduo se identifica com outros que aprovam e reprovam as mesmas coisas que ele.
No entanto, este sentimento é regulado pelo senso de conveniência que leva cada um a agir de acordo com as suas conveniências, as quais se fundam no interesse próprio.
Para ele, a simpatia é o fundamento das relações, pois dela surge o ‘pacto moral’, constituído pelas regras de convivência. Assim, cada grupo possui suas próprias regras, que podem diferir de outros grupos dentro da mesma sociedade. Neste sentido, cada indivíduo deve ser livre para escolher a qual grupo pertencer. Sendo os grupos separados, um não deve interferir nas regras de outro. Para ele o único meio para ser feliz é o homem ser livre.
Já em A Riqueza das Nações ele trata das relações econômicas entre os indivíduos. E, novamente, ele ancora na liberdade de escolha, sem interferências externas nessas relações. É dessa ideia que surge a defesa do “estado mínimo”.
Mas, a história não é bem assim. Ao governo caberia exercer a vigilância para que o pacto moral pudesse ser cumprido. Porém, os defensores do capitalismo e do “estado mínimo”, desconhecem esta parte da filosofia smithiana. O capitalismo foi fundado com base em A Riqueza das Nações, sem considerar a questão moral descrita antes.
Em O Manifesto Comunista (1848), Karl Marx e Friedrich Engels teorizam sobre a exploração do homem pelo homem. Em O Capital (1867), Marx questiona a mais-valia, que redunda na mesma coisa, só que através do sistema produtivo.
Assim, não seria exagero concluir que, feitas as devidas ponderações, tanto Marx, quanto Smith defendiam a mesma coisa: a liberdade e a justiça.
“Há felicidade maior que ser amado e saber que merecemos o amor? Há desgraça maior que ser odiado e saber que merecemos o ódio? (…) Naturalmente o homem não apenas deseja ser amado, mas amável; ou ser objeto natural e apropriado de amor. Naturalmente não apenas teme ser odiado, mas ser odioso: ou ser objeto natural e apropriado de ódio.” TSM, p. 143.
O ódio presente em nossa sociedade não encontra amparo em nenhum dos dois. Quando pessoas comemoraram a morte da ex-primeira-dama, dona Marisa, e do menino Arthur – neto do ex-presidente Lula, uma criança de 7 anos, foi repulsivo.
Agora, recentemente, muitas pessoas comemoraram a morte de 9 jovens no que foi denominado “massacre de Paraisópolis”. Nas redes sociais, internautas (daqui mesmo de Nova Venécia) escreveram: “Ainda matou pouco, devia ter matado mais”. Não se trata de filhos de político, nem de ladrões ou bandidos, seja lá o nome que se dê a isso. Estamos falando de jovens pobres, negros e sem esperança.
Quando pessoas passam a se comportar dessa maneira, elas atingiram a desumanidade; perderam a compaixão e a capacidade de discernimento. Uma coisa é ideologia política, outra muito diferente é não discernir entre o que é certo e o que é errado.
* O autor é economista, professor, jornalista, escritor e editor-chefe do Correio9
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