Elias de Lemos (Correio9)
No último dia 10 de dezembro de 2023, o novo presidente da Argentina tomou posse em uma eleição em que os votantes estavam num beco sem saída. Vivendo sob caos econômico e social, os eleitores foram às urnas em uma situação que pode ser definida como “se ficar, o bicho pega, se correr, o bicho come”.
De um lado estava Sergio Massa, então ministro da economia que conduzira os argentinos ao caos. Como acreditar que sendo presidente, ele resolveria os problemas do país? Do outro, o ultrarradical de direita, Javier Milei, com propostas radicais para debelar a crise.
Milei assumiu um país em grave crise econômica e social, com 40% de sua população na extrema pobreza e uma inflação anual de três dígitos. Suas principais propostas para a economia são a diminuição do Estado; a dolarização da economia, com a extinção do Banco Central e da moeda local; a redução das despesas do Estado; a flexibilização do mercado de trabalho, do setor comercial e financeiro; a privatização de empresas estatais e a redução gradual de benefícios sociais.
A inflação, um dos maiores problemas da Argentina, atingiu 142% nos últimos 12 meses encerrados em outubro de 2023. Cálculos indicam que o déficit fiscal do país será de mais de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2023. O acordo firmado com o Fundo Monetário Internacional (FMI) era de que o buraco nas contas públicas seria de apenas 1,9% neste ano.
As previsões apontam, ainda, uma economia em constante retração. No segundo semestre do ano passado, o PIB da argentina caiu 2,8% em relação ao trimestre anterior, somando 4,9% na comparação anual. Na área cambial o governo desvalorizou o peso aumentando o câmbio oficial em 22%, sendo o dólar vendido a 365 pesos. A moeda paralela, denominada de dólar blue, chegou a ser cotada em mais de mil pesos no começo de outubro.
No campo do emprego, a única taxa razoável é a do desemprego, com 6,9% de mão-de-obra desocupada até a posse de Milei, indicando pouco mais de 900 mil desempregados.
Em outubro o Banco Central elevou a taxa básica de juros em 15%, saltando para 133% ao ano (para se ter uma ideia, no Brasil a taxa básica é de 11,75% ao ano.
O governo Argentino está com uma corda no pescoço e uma faca no peito. A dívida externa chega a U$ 276,2 bilhões, sendo U$ 77,726 bilhões em empréstimos e U$ 84,653 em títulos públicos. Enquanto isso, as reservas cambiais do país estão estimadas em U$ 8 bilhões.
De acordo com especialistas, para dolarizar a economia, serão necessários entre U$ 30 e U$ 50 bilhões, mas, o País tem apenas U$ 8 bilhões. Assim, o complemento viria de empréstimos internacionais.
Dolarizar a economia não se resume à substituição do peso pelo dólar. Com ela, o país abre mão da política monetária, deixando de regular a taxa de juros, passando a depender das decisões do Federal Reserve System (o banco central dos Estados Unidos). Abre mão, também, da taxa de câmbio, afinal, um dólar sempre será igual a um dólar.
A adoção do dólar iguala os preços nacionais aos internacionais. Isso quer dizer que os produtos argentinos passam a concorrer de igual para igual com os importados e com isso, fica menos difícil assegurar a estabilidade dos preços evitando a inflação.
Essa estratégia já foi adotada por outros países do continente americano, como Equador, El Salvador e o Panamá. Mas, os contextos e cenários são diferentes: os dois primeiros tomaram a medida devido às crises inflacionárias que corroíam suas economias. Já o Panamá tomou a decisão em razão do grande fluxo de moeda estrangeira no País.
Pontos favoráveis na dolarização
A crise da economia Argentina tem origem em erros sérios nas políticas fiscal e monetária. O País tem um histórico de inflação alta; isso acontece deste a criação do Peso, há mais de 140 anos. A moeda foi introduzida em 1881 e de lá para cá foram cinco reformas monetárias que levaram ao corte de 13 zeros nas cédulas. Além disso, os argentinos passaram por duas hiperinflações em períodos “normais”, sem existência de guerra.
Olhando para traz, não é difícil entender a desconfiança dos argentinos em sua moeda. Calejados pelo histórico de crises, aqueles que têm dinheiro acumulado preferem guardar no exterior, em moedas mais confiáveis. Em dezembro de 2022 os ‘Hermanos’ possuíam quase U$ 250 bilhões em depósitos no exterior. De acordo com dados oficiais do governo, esse volume corresponde à metade do PIB do País.
O Banco Central argentino não possui independência para agir, sendo subordinado ao Ministério da Economia, o que frequentemente causa intervenções políticas na instituição. Em várias ocasiões, o governo demitiu, sem pestanejar, presidentes do Banco; acessou as reservas e o obrigou a emitir moeda, aprofundando ainda mais as crises.
A raiz do problema é um déficit fiscal crônico que já dura 122 anos: os gastos são maiores do que as despesas. Um déficit persistente como esse precisa de ser debelado. As ferramentas para isto são: corte de despesas, impostos mais altos ou contraindo dívida: todos estes remédios são amargos. Na pior das situações, não sendo possível tomar empréstimos, então o último recurso é imprimir dinheiro. Pode parecer fácil, mas, a impressão de moeda para cobrir rombos orçamentários atinge a todos, especialmente aos mais pobres. É simples: quanto mais dinheiro impresso do nada, maior será a inflação.
De acordo com os entusiastas da dolarização, a adoção do dólar como moeda nacional proporcionaria estabilidade às famílias e empresas para planejar e realizar negócios.
Pontos desfavoráveis na dolarização
Se por um lado há vantagens, por outro existem os riscos. É fundamental que a política econômica tenha controle sobre a moeda, caso contrário, a margem para o governo agir será pequena.
Seja lá o que for: programas sociais, incentivos fiscais, subsídios, educação, saúde ou o cumprimento de compromissos eleitorais, sem uma moeda local (própria) as possibilidades ficam muito reduzidas.
Ademais, situações de crises e recessões seriam muito mais profundas do que agora, dado que o governo teria menos instrumentos para agir e amortecer os impactos do momento. Não teria como desvalorizar a moeda para obter vantagens competitivas que poderiam favorecer os setores exportadores e de turismo.
Os Hermanos parecem terem esquecido a experiência vivida no período de 1991 aa 2001, quando o País atrelou a moeda nacional ao dólar norte-americano com paridade cambial de 1 dólar igual a um peso.
No final daquela década, parceiros comerciais importantes, como México e Brasil foram levados a desvalorizar suas moedas o que tornou os produtos argentinos muito mais caros, perdendo para a concorrência e a economia foi a bancarrota e o regime cambial foi abandonado.
Adotar o dólar significa depender exclusivamente das exportações para garantir o fluxo de dinheiro necessário. No entanto, isso vai depender da capacidade dos produtos argentinos competirem com os importados. Na década de 1990 as importações superaram as exportações e isso minguou a entrada de dólares levando o governo a atingir altos índices de endividamento.
Se, agora, a medida de substituição da moeda acontecer e se repetirem o que aconteceu lá atrás, o resultado será mais desemprego, recessão e a queda rumo ao abismo. É simples: quando as importações são maiores do que as exportações, o país vende menos e por consequência recebe menos, mas, gastando mais para comprar de outros países. Neste caminho (dependendo da duração), vendendo menos dentro e fora do país, os lucros empresariais caem, os investimentos diminuem, o emprego vai junto e só o desemprego sobe.
Diante do exposto, o dólar pode representar a estabilidade e retorno à normalidade como, também, pode ser uma armadilha para a Argentina.
Tratamento de choque
Além disso, na semana passada o presidente, Javier Milei, enviou ao Congresso, um pacotão de medidas com mais de 600 artigos declarando emergência econômica e pública até o ano de 2025. O projeto prevê mais de 300 reformas em uma tacada só, representa o tratamento de choque: a Argentina já fez isso e desceu ladeira abaixo. O Brasil, também, já embarcou em aventuras idênticas e perdeu o rumo. Será que agora vai ser diferente?
O pacote, denominado de “decretaço”, é previsto na Constituição do País e é o equivalente a Medida Provisória no Brasil. No entanto, Milei não tem maioria no Congresso. Ele ameaçou convocar um plebiscito, caso o projeto não seja aprovado. Mas, um referendo, também precisaria de ser aprovado pelo parlamento que está de olho nas ruas. Para completar a tragédia, em 16 dias de mandato a Argentina já enfrenou três protestos nacionais e em menos de um mês, o presidente viu seu governo atingir 63% de rejeição.
Para finalizar, em uma medida desesperada, o presidente autorizou o pagamento de salários em alimentos, ou seja, admitindo a recusa à moeda nacional e a volta ao escambo.
EM TEMPO: logo após este texto ter sido escrito, a justiça Argentina suspendeu a reforma trabalhista que facilitava demissões e bania direitos da classe trabalhadora.
* O autor é economista, professor, jornalista, escritor e editor-chefe do Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
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