OPINIÃO
Roney Marcos Pavani *
Ponto prévio: a deposição do presidente João Goulart (1919-1976), ocorrida entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964 foi um golpe de Estado: um ato arbitrário, fora das regras do jogo constitucional. O regime político de 21 anos instalado em seguida foi uma ditadura militar, responsável por um aparelho repressor que, segundo dados levantados entre 2012 e 2014 pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), produziu 434 mortes oficiais, 243 desaparecimentos, 1843 torturados, além de 6016 denúncias de tortura; cuja tônica cimentava-se na censura a artistas e meios de comunicação, na perseguição implacável a inimigos e na violação sistemática aos direitos humanos. Pouco importa que blogueiros de quinta categoria, influencers digitais sedentos de monetarização, ou correntes de whatsapp embebidas em verde e amarelo digam o contrário.
Tampouco é verdade que o período compreendido entre 1964 e 1985 tenha sido marcado por progressos materiais ou pela ausência de corrupção. O assim chamado Milagre Brasileiro – termo usado para identificar as taxas de crescimento econômico de dois dígitos da época – não alcançou a grande maioria da população, longe disso. Endividamento externo, aumento brutal da desigualdade, e da concentração de renda foram outras heranças malditas de um período para se esquecer. Pensando bem, e considerando-se o Brasil do século XXI, para não se esquecer.
Miseravelmente, aquilo que durante muitos anos somente chafurdara nos bastidores da extrema-direita brasileira e nos setores mais reacionários das Forças Armadas, ganhou força a partir de finais dos anos 2000, graças à apelativa (e silenciosa) parafernália das redes sociais, bem como ao revanchismo ressentido (e escancarado) após a instalação da CNV citada anteriormente. Resultado: hoje a narrativa conhece assento na chefia do Executivo Federal. Desde 2019, ano da chegada de Bolsonaro ao poder, busca-se de todas as formas dar ao 31 de março ares comemorativos e entusiásticos: “a luta do povo brasileiro contra uma satânica Revolução Comunista, que impediu que o Brasil se tornasse uma Cuba de proporções continentais!” Ouve-se continências?
Não que não houvesse quem assim o pensasse na ocasião. No entanto, embora possam caminhar juntas, há uma diferença fundamental entre a memória e a história. Segundo os historiadores franceses Jacques Le Goff e Pierre Nora, a primeira está mais ligada a capacidade de conservar informações, com base em impressões do presente e experiências subjetivas. É por isso que, por exemplo, a memória acerca da nossa infância não é a mesma quando estamos na adolescência, na idade adulta, ou na velhice. Já a segunda é um ramo do conhecimento humano, que se propõe a analisar o passado de forma autônoma e científica, utilizando-se para tal de uma série de fontes documentais (escritas ou não), além de arcabouços teórico-metodológicos.
Sim, história não é palpite, nem permite todo tipo de interpretação ou “opinião”. Ela tem regras e é dotada da capacidade de selecionar algumas teorias, e de, igualmente, descartar outras, de acordo com o seu nível de aproximação para com a realidade empírica. Assim como a medicina usa antibióticos em vez de sangrias no tratamento de infecções, ou como a astronomia moderna entende que a Terra gira ao redor do Sol, e não o contrário. Nesse sentido, faço eco aqui às maiores autoridades vivas no assunto Golpe Militar de 1964: Carlos Fico, Professor Titular de História do Brasil da UFRJ, e Rodrigo Patto Sá Motta, Professor Titular da UFMG. As obras de ambos, além de premiadas e reconhecidas internacionalmente, são frutos de uma vida inteira de dedicação e estudos sérios. Não se tratam de aventureiros ou “papagaios de pirata” a escrever textões (no Facebook) ou textinhos (no Twitter). Muito menos simples “doutrinadores esquerdistas”, como querem os idólatras da ditadura.
Usos e abusos da história são tão antigos quanto o próprio ato de escrever. Desde as damnatio memoriae dos senadores romanos a imperadores que lhes desafiavam, até o ensino nazifascista a serviço do extermínio de grupos supostamente inferiores. Controlar o passado, como ele foi, selecionar seus heróis e vilões, é uma forma bastante eficaz de obter legitimidade para atos no presente. Ou, como diz a epígrafe do célebre romance 1984, de George Orwell (1903-1950): “Quem controla o presente controla o passado; quem controla o passado controla o futuro”.
E é exatamente nisso que Jair Bolsonaro e seus asseclas se espelham. Sua meta é tornarem-se herdeiros do ímpeto salvífico dos militares golpistas – os pretensos paladinos da Nação. Em outras palavras, seu valor agora é preenchido por aquilo que defenderam no passado. “Salvamos o Brasil do comunismo em 64. Salvaremos novamente em 2022.”
Parêntese: tenho quase certeza de que, até outubro, verei essa frase na forma de slogan eleitoral.
Com tamanho desgaste em sua popularidade (as últimas pesquisas apontam uma rejeição de 65%), razão pela qual vem perdendo apoios significativos, somado à crise econômica, acompanhada pela elevação da inflação, o desmonte das políticas sociais dos governos FHC e Lula, bem como sua funesta gestão à frente da pandemia, Bolsonaro precisa perverter a história se quiser se manter no poder.
Mesmo o apoio evangélico, fundamental para a vitória eleitoral em 2018 e responsável por, literalmente, arrebatar o presidente a patamares excelsos, já não é mais tão fiel. Basta uma olhadela rápida nos últimos escândalos no MEC, envolvendo trocas de favores entre pastores, que sequer detinham cargos públicos, e o então ministro da pasta (e também reverendo), Milton Ribeiro. Após pouco mais de uma semana desde a primeira denúncia, Ribeiro pediu demissão. Já é o 4º em pouco mais de 3 anos (Sintomático, não?). Ato contínuo, muitas lideranças religiosas passaram, com um certo atraso, confesso, a desacreditar do governo.
A narrativa messiânica sobre Bolsonaro, ao menos em parte, laicizou-se. O enviado de Jesus Cristo – quem não se lembra do “vá e impeça a guerra, Jair!”, após sucessivas decepções, agora concentra-se em ser o combatente do inimigo vermelho. E, para isso, veja o leitor, caindo como uma luva na narrativa do Golpe como Revolução de 1964, um evento que merece ser celebrado e exaltado. Discurso acompanhado prontamente pelo vice-presidente, Gal. Hamilton Mourão, e pelo futuro candidato a vice-presidente, Gal. Braga Netto. Todos militares/políticos buscando no passado alguma justificativa para as suas pobres vidas eleitoreiras no presente.
E falando em militares/políticos que se bestam a olhar para o passado, chegamos a terras capixabas. Refiro-me ao polêmico deputado estadual Capitão Assumção (PL), que, entre outras absurdidades, já ofereceu da tribuna da Assembleia Legislativa uma recompensa de R$ 10.000,00 para quem trouxesse (vivo ou morto, não importava) o suspeito de cometer um homicídio. Pois é, além de encarnar o xerife do faroeste e emular o discurso do presidente, Assumção também buscou se aventurar pelos mares do revisionismo histórico, e propôs que a mesma ALES, realizasse uma “sessão especial, em alusão aos 58 anos da Revolução de 31 de março de 1964”, ocasião em que haveria “a entrega de honrarias a homenageados”.
A proposta, por si só de se embrulhar o estômago, nos fez vomitar, ao ser ACATADA no dia 8 de fevereiro desse ano – 19 dos 30 deputados da Casa votaram a favor.
Triste e paradoxalmente, a mesma Assembleia, que em 1969 teve 3 dos seus parlamentares cassados pelo famigerado Ato Institucional n.º 5, ou que nos anos 1990 formou uma comissão para ouvir depoimentos de pessoas que foram atingidas pela ditadura (os depoimentos resultaram na produção do livro “Ditaduras não são eternas”, organizado pelo falecido professor da UFES Valter Pires Pereira, de quem fui aluno tanto na graduação quanto no mestrado), estaria se prestando ao papel grosseiro de homenageá-la em seu ato inaugural.
Atrevo-me a pensar no que motivou isso: Desinformação? Negligência? Masoquismo puro e simples?
O fato é que, após requerimentos apresentados no último dia 30, tanto pela OAB-ES quanto pela Deputada Iriny Lopes (PT), bem como por diversas manifestações nas redes sociais, entre as quais a nota de repúdio emitida pela Associação Nacional de História – ES, a sessão foi, felizmente, cancelada. Dos 21 deputados que votaram, 15 optaram por não seguir com o circo dos horrores. Teriam caído em si? Talvez. Pode ser que estivessem só referendando aquilo que lhes é mais conveniente e oportuno no momento, a partir das repercussões negativas da sociedade, nada mais do que isso. É bom lembrar que no final do ano também teremos eleições para a composição do Legislativo Estadual. Não é salutar criar desgastes desnecessários, não é mesmo? Ainda assim, os outros seis foram coerentes e fincaram o pé em heroica e atrevida resistência a favor do Golpe. Além do próprio Assumção, Danilo Bahiense (PL), Theodorico Ferraço (PP), Carlos Von (DC), Torino Marques (PTB) e Marcos Mansur (PSDB).
Por falar em conveniência e oportunismo, um esclarecimento: o autor da proposta que gerou toda a confusão começou a sua vida na política em 2006, inicialmente filiado ao, pasmem, Partido Socialista Brasileiro (PSB). Na época, fez declarações favoráveis ao governo Lula (2003-2010). Entretanto, aproveitou-se da mudança conjuntural e se deslocou gradativamente para a extrema-direita, assim como várias outras figuras. Será que o deputado, uma vez que hoje se apresenta como “perseguidor implacável de esquerdistas”, teria vergonha do seu passado? Será que quer escondê-lo? Talvez esquecê-lo?
Não por coincidência, ainda no ano passado, o mesmíssimo deputado pediu ao Ministério Público do Espírito Santo, que abrisse uma investigação contra “professores” (assim mesmo, no coletivo) que, segundo ele, “interferem e fazem juízo de valor na capacidade crítica do aluno”. O fato de o MPES ter obviamente arquivado o pedido não esconde o desejo do parlamentar de perseguir os profissionais responsáveis por tratar a história de maneira científica e emancipadora, e não com fins antidemocráticos.
São exatamente políticos como esses, e propostas estapafúrdias como essas que, há quase três anos e meio, nos têm violado, dia após dia, o sono, a dignidade, a vergonha, o emprego, até os símbolos nacionais.
Podem seguir tentando, porém, eles jamais lograrão matar a nossa história.
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
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