Camilo Maia Moraes
Apesar de não ser bíblico é muito popular a sentença que diz que “não cai uma folha de uma árvore se não for da vontade de Deus”.
É óbvio que Deus, para quem o concebe como O Criador, não fica diariamente cuidando de cada folha de cada pé de árvore que há, tipo “vocês três amareladas aí do pé de jaca caem agora, já vocês do pé de laranja que ainda estão de verde-amarelo caem depois de amanhã…”
Por isso convém ignorar a literalidade da assertiva para compreender que as leis de Deus estão postas desde sempre, mas de tal modo que não temos condições de compreender inteiramente em razão das nossas evidentes limitações, e uma vez postas elas se operam automaticamente.
Então as folhas sempre caem pela vontade de Deus, que é “pai” não só da própria árvore e de seus frutos, mas que também é pai da noção natural e poética de que “tudo que viceja também pode agonizar e perder seu brilho em poucas semanas”, que também é pai do tempo, que também é pai da lei da gravidade, lei que sempre puxa para baixo, para o chão, e por conta disso tudo as folhas caem, e de fato não caem contra a “vontade” de Deus.
Ao divagar por essas ideias me lembrei do nosso Presidente da República.
Como as leis divinas – que são absolutamente justas – executam-se automaticamente de modo que as folhas caem, sem dúvida executam-se quanto a tudo mais.
Não que Deus tenha escolhido nosso Presidente da República. Ou que Ele tenha deixado de escolher. Acontece que Suas leis se operam e as coisas acontecem.
Em razão das leis divinas eu mesmo não estou aqui, “povo de Bolsonaro”, por acaso, sendo certo que leis postas se operaram para eu estar aqui sob o governo dele.
Aqui e em tudo minha convicção reencarnacionista me leva a pensar assim, a entender assim, colocando o acaso de lado e procurando entender a razão das coisas, sempre pressupondo a perfeição de Deus.
Logo depois de perceber o Presidente da República em meio à reflexão e de perceber minha própria figura como foco da observação, lembrei-me de uma frase pertinente atribuída a Terêncio, poeta romano, que disse que “Nada do que é humano me é estranho”.
Se nada do que é humano me é estranho, se acredito que leis sobre-humanas me fizeram nascer aqui e não no Canadá ou na Noruega, se não é do meu menor interesse, sob hipótese alguma, deixar o Brasil para viver em qualquer outro lugar do mundo, por mais legal que venha a ser esse lugar, então eu tenho a ver com Bolsonaro.
Como tenho certeza de que não sou um ser iluminado, comecei a ponderar que minha “relação” com Bolsonaro precisaria ser repensada, pois Deus, além de absolutamente justo, é absolutamente sábio, de modo que sábias são as Suas leis; então se leis sobre-humanas, justas e sábias me fizeram “povo de Bolsonaro”, certamente não deve ter sido para eu me limitar a repudiar diariamente tudo que vem do mandatário mor desta terra em que fui plantado, como venho fazendo – e sei que não estou sozinho nisso daí.
Compreendi que essa limitada relação que eu venho alimentando de forma cômoda, confortável, é mesmo muito pobre, muito terra-a-terra.
Deve existir, pensei eu, algo a mais no fato de ele estar no controle do país e eu me sentir diariamente incomodado com sua condução, principalmente por já ter ouvido dizer que quando algo nos incomoda precisamos ver melhor.
Foi assim então caindo a ficha de que a sabedoria divina certamente reservou, nessa “crise”, algo além – algo de mais útil, talvez algo de mais doloroso – para mim, para os incomodados.
Daí eu calculei: nada do que é humano me é estranho; nada do que é brasileiro me é estranho; Bolsonaro não pode ser estranho a nós, sejamos nós os que não votamos nele, sejamos nós os que votaram nele. Ou seja, nós (que não votamos), eles (que ainda votariam) e ele mesmo não somos estranhos uns aos outros.
Deus, além de justo e sábio, é também verdadeiramente bom o tempo todo! E é preciso compreender Sua bondade e sabedoria principalmente quando Suas leis se operam e as coisas não saem conforme nossos anseios, ou quando saem justamente às avessas. Em tudo!
Eu me julgo da paz e tenho aversão a armas. Mas eu abriria alguma exceção para pegar em arma? Pegaria em arma não só para me defender, mas em alguma hipótese eu pensaria em pegar para me vingar, por exemplo? Mesmo condenando a política armamentista de Bolsonaro eu, em alguma situação, seria capaz de pegar em armas de Bolsonaro para “fazer justiça”? E assim fazendo em que Bolsonaro me seria estranho? Meu pacifismo já é absoluto, é puro, ou ele ainda é relativo, como Bolsonaro?
Eu lamento seu deboche ao valor dos direitos humanos. Mas eu tenho firme comigo que os direitos humanos devem ser integralmente garantidos até a quem não parece ser humano? Ou às vezes também acho, como muitos, que tem gente que acaba exagerando nessa questão?
Eu recuso seus exemplos machistas, homofóbicos e racistas. Mas eu sempre olho o gay, por exemplo, como alguém que apenas tem uma orientação sexual diferente e em tudo mais é igual a mim? Entendo que lhe devo respeito esteja ele rebolando como se sente melhor ou só quando está “andando direito”? Só quando está sozinho ou também quando passa de mãos dadas com a pessoa que ama, vestindo a roupa que escolheu vestir? Eu tenho plena convicção de que a mulher é tão ou mais capaz que o homem? Ainda acho que há tarefas que são de mulher e tarefas que são de homem? Lavo louças numa boa e numa boa vejo uma mulher na direção de uma instituição, de uma empresa, de um ônibus escolar ou na construção civil, trabalhando com uma colher diferente? Mergulhado no racismo estrutural em que nossa sociedade sempre esteve mergulhada eu cresci totalmente ileso a essa lástima (independentemente de ser eu preto ou branco)?
Eu repudio seu desejo de carta branca à polícia, repudio sua filosofia barata, simplista, de que “bandido bom é bandido morto”, repudio suas lamentáveis loas à violência, à tortura e a torturadores. Mas se a polícia estivesse em condições de agir contra alguém que fizera um mal de verdade às pessoas que me são mais caras nesta existência eu me manteria impassível? Eu me conheço a fundo para, em tal circunstância, garantir que ainda assim eu iria repudiar com veemência a lógica primitiva de Bolsonaro?
Eu reprovo suas intervenções insipientes em assuntos técnicos, reprovo quando ele nomeia quadros técnicos e os destitui quando os mesmos agem tecnicamente. Mas do que eu seria capaz de fazer para atender a minha própria vontade naquilo que está ao meu alcance? Eu sou capaz de ser passional em assunto de razão? Eu romperia com um funcionário na minha casa, na minha empresa, ou “onde mando eu” caso não fosse atendido, ainda que minha vontade fosse questionável? Eu sou capaz de fazer valer a minha vontade em determinadas situações e que coma menos quem não gostar?
Eu pasmo com suas interferências absurdas em órgãos de Estado para proteger filho ou filhos inequivocamente embaraçados. Mas até onde eu mesmo iria para proteger meus filhos? Eu conheço claramente os meus limites? Que tipo de pedido eu seria capaz de fazer em favor de um filho? Eu estou pronto, em razão de compromisso moral, a levar ao conhecimento das autoridades um erro grave que um filho venha a cometer, mas que ninguém além de mim venha a tomar conhecimento? E em caso contrário, onde eu e onde Bolsonaro?
Eu critico todas as suas contradições, critico-o quando ele diz pela manhã o que nega no início da tarde. Mas do que eu seria capaz de fazer para livrar minha pele? Quando erro eu já assumo todas as consequências dos meus erros, eu sou “cabra macho” e pago pelos meus erros ou sou capaz de mentir, de manipular, de dissimular para me safar de uma vergonha, de uma eventual desmoralização importante? Que tipo de aliança eu seria capaz ou incapaz de fazer para ter sobrevida onde me interessa muito tê-la?
Nossa sociedade, e nós todos fazendo necessariamente parte dela, não somos um mar de virtudes e de coerência ao redor de uma ilha chamada Bolsonaro a nos constranger e envergonhar diariamente. Bolsonaro e nós fazemos necessariamente parte de um mesmo tecido social e mais além do que censurarmos, criticarmos, repudiarmos, condenarmos Bolsonaro dia após dia, precisamos também pensar em encarar o Bolsonaro que talvez exista em nós, que certamente há em nós, porque não estamos aqui por acaso e não somos, brasileiros, estranhos uns aos outros.
Que aqueles que continuam declarando apoio incondicional a Bolsonaro se identificam com ele, que não é só questão de combate à corrupção, ao “comunismo”, isso parece uma hipótese clara. O que parece não estar muito claro é o Bolsonaro que pode estar adormecido ou mesmo acordado em nós que nunca votamos nele, ou naqueles que já não votam mais, em nós todos que o negamos todo dia, mas que, diante de determinados fatos da vida – que venham a chacoalhar com alguma contundência nosso subconsciente – eventualmente o traremos ou o trazemos à luz.
Deus é justo, sábio e verdadeiramente bom e toda dificuldade que decorre da execução de Suas leis tem o propósito de contribuir para o nosso próprio crescimento, para o nosso melhoramento, para nossa evolução, e autocrítica bem dosada sempre ajuda.
“Um dia pretendo tentar descobrir por que razão é mais forte quem sabe mentir…” – canta o poeta em “Eu sei”, no álbum “Que País é Este?”, de 1987. E o arremate do poeta em seu verso, arremate que cabe muito bem aqui nesse contexto de Bolsonaro e nós, é de uma sinceridade sempre necessária.
Que possamos todos nós, como tanto prega Bolsonaro, conhecermos a verdade para que a verdade nos liberte. Que nos liberte de tudo, de todas as ilusões, inclusive aquelas que ele tanto dissemina, e de todos os males, principalmente aqueles que ainda estão em nós mesmos.
Mais que isso, que com a ajuda diária de Bolsonaro possamos tentar cumprir o que Sócrates teria preconizado à humanidade desde lá de trás: “conhece-te a ti mesmo”.
P.S. Se ao terminar o “textão” a única pergunta que o leitor consegue se fazer é “mas e o Lula?”, desculpe não ter incluído desde o início um subtítulo com a advertência de que a leitura não tinha a ver com você, que é só “coisa de esquerda”, ou “lacração”, só “bullshit!” como diria Mr. Donald Trump.
* O autor é servidor público e colaborador exclusivo do Correio9
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