O Sistema Único de Saúde (SUS) nasceu com a Constituição de 1988. Ele é resultado da mobilização de vários setores da sociedade por uma reforma sanitária após 21 anos de ditadura no Brasil. Uma das reivindicações desse movimento era a proibição de algo que hoje parece sinônimo de mercado clandestino, mas costumava ser legalizado: o comércio de sangue.
Atualmente, existem bancos de sangue públicos e privados, mas nenhum deles pode remunerar o doador pelo fluido. Antes de 1988, no entanto, a prática não só era autorizada como também era a principal maneira de se obter sangue no Brasil: 70% dos estoques consistiam em sangue comprado.
Os bancos de sangue públicos não pagavam nada ao doador. Eles recolhiam principalmente o sangue de quem tivesse algum parente internado que precisasse da transfusão. Militares e policiais também eram recrutados para doar quando os estoques estavam baixos.
Nos bancos privados era diferente: eles ofereciam uma remuneração em dinheiro. A ideia era manter os estoques sempre em um patamar seguro. Uma oferta que atraía majoritariamente pessoas de baixa renda. “Como é que uma pessoa pobre, mal alimentada, às vezes com doenças que ela nem sabia que tinha, pode vender seu sangue? Era a maneira que eles tinham de viver mais alguns dias”, diz Jairnilson Silva Paim, professor da Universidade Federal da Bahia e especialista no movimento de reforma sanitária brasileiro.
O estereótipo do pobre que vende o sangue nos bancos privados ficou consagrado na cultura popular brasileira. A música “Vai Trabalhar Vagabundo“, lançada por Chico Buarque em 1976 para o filme de mesmo nome, menciona a pessoa que “ganha no banco de sangue pra mais um dia”.
O sangue obtido dessa forma era vendido para os hospitais. Inclusive os públicos – que, na época, atendiam apenas os trabalhadores registrados, que contribuíam com a Previdência Social. “Se aparecesse um acidente ou uma cirurgia, o diretor do hospital ligava pro banco e comprava o sangue. Só que ele era revendido a um preço mais alto”, explica Paim. A justificativa era que eles não estavam cobrando pelo sangue, mas sim pelos serviços, como a compra das seringas e contratação de enfermeiros.
O principal problema, no entanto, é que não havia uma fiscalização rígida da qualidade do sangue coletado. A vigilância sanitária da época era falha e nem sempre os bancos privados faziam os testes laboratoriais para a detecção de doenças. Eram frequentes os relatos de sífilis, hepatite e chagas adquiridos por transfusões.
As infecções decorrentes de bolsas coletadas nos bancos públicos eram consideravelmente menores. “Havia um controle maior. Mesmo que a vigilância sanitária fosse ineficaz, os profissionais que trabalhavam nesses bancos faziam a fiscalização. Eles realizavam uma entrevista com o doador e depois testavam o sangue para as doenças que eram conhecidas na época”, conta Paim, que na época acompanhava o controle das doações de sangue no Hospital das Clínicas da UFBA.
A pandemia
Nada abalou tanto a comercialização de sangue quanto a pandemia de aids nos anos 1980. Imagine uma situação similar ao início do surto de covid-19 na China: um vírus novo, que ninguém sabe ao certo como é transmitido, e é preciso encará-lo com a tecnologia de 40 anos atrás.
O resultado não foi outro: milhares de pacientes contraíram o HIV por meio de transfusões. A situação era especialmente grave para os hemofílicos, que precisavam receber bolsas de sangue periodicamente. Em uma notícia do Jornal do Brasil veiculada em setembro de 1988, a Associação dos Hemofílicos do Brasil afirma que 80% dos pacientes do Rio de Janeiro contraíram aids nas transfusões.
O caso mais marcante envolveu três irmãos célebres da época: o cartunista Henfil, do jornal O Pasquim, o sociólogo Herbert de Souza, mais conhecido como Betinho, e o músico Chico Mário. Todos eram hemofílicos e pegaram aids por meio do tratamento.
Os irmãos eram tão famosos que ficaram eternizados no samba O bêbado e a equilibrista, composto por João Bosco e Aldir Blanc, e interpretado por Elis Regina em 1979. O hino da anistia, como ficou conhecido, pedia a volta do irmão de Henfil, Betinho, que ficou exilado por oito anos devido à perseguição política.
Após finalmente retornar ao Brasil, Betinho contraiu o vírus do HIV durante uma transfusão em 1986. Chico Mário também foi diagnosticado em 1986, e morreu em 1988. Henfil recebeu a transfusão contaminada em 1988 e morreu no mesmo ano.
O sociólogo passou a advogar pela fiscalização e qualidade do sangue. Ele fundou em 1987 a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), que denunciava a omissão do governo com as pessoas que tinham a doença. Foi nesse contexto que surgiu o movimento “Sangue não é mercadoria”, que exigia a criminalização do comércio de sangue.
“O Betinho passou a ser um parceiro nosso no movimento pela reforma sanitária”, lembra Paim. O movimento culminou na Oitava Conferência Nacional de Saúde, que estabeleceu as bases do que viria a ser o Sistema Único de Saúde (SUS).
A Constituinte
A aids politizou o debate da venda de sangue. Havia políticos contrários e favoráveis à proibição. Os que argumentavam contra a proibição diziam que ninguém doaria sangue voluntariamente se não houvesse uma recompensa em dinheiro. Em uma notícia do Jornal da Tarde, o diretor clínico e proprietário do Banco de Sangue Paulista diz não acreditar na capacidade do Estado em arcar com as responsabilidades, e que “em três dias teremos pessoas morrendo por falta de sangue”.
Betinho discursou na Câmara dos Deputados em agosto de 1988 e se manteve firme em sua posição: “A tragédia da aids é a tragédia da morte, que passa por este sistema de saúde marcado pela comercialização, pelo lucro e pela impunidade”.
Na falta de um acordo, a Assembleia Constituinte precisou votar sobre o tema. Numa disputa acirrada, ficou proibida a comercialização de quaisquer tecidos humanos, incluindo o sangue e seus hemoderivados. A decisão está registrada na Constituição, junto aos artigos que definem as diretrizes do SUS.
Hoje, há uma série de regras para a doação de sangue. O doador passa por uma triagem e precisa se enquadrar em diversos requisitos, como não ser usuário de drogas injetáveis e não ter feito tatuagens no último ano. Além disso, todo sangue é testado para o HIV, HTLV, hepatite B e C, sífilis e chagas. A fiscalização e conduta nos hemocentros também é extremamente rígida, de forma a garantir a segurança tanto do doador quanto do paciente.
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