CONTO
Roney Marcos Pavani *
Joana sonhava um sonho cansado e inquieto quando foi despertada por um ruído distante. Abriu os olhos e observou o lustre prateado na penumbra de seu quarto. Endireitou-se na cama e tentou prestar atenção, mexendo os olhos de um lado para o outro, a fim de perceber mais alguma coisa. Estava um pouco confusa pelo sono, e por acordar tão bruscamente, mas não ouviu nada. Depois de um tempo, olhou em direção à janela, que, para a sua surpresa, estava com as cortinas fechadas. Fachos de luz ganhavam o aposento através da porta entreaberta.
Levantou-se, calçou as sandálias que ganhara do marido em seu último aniversário e caminhou pelo assoalho de madeira até o banheiro. Estava suada pelo clima sufocante. Queria lavar o rosto e saber que horas eram. Usava uma camisola branca de algodão, embora um pouco encardida, com detalhes em dourado. Era sua roupa preferida para dormir.
Antes de chegar à porta do lavabo, porém, outro barulho. “- Bobagem”, pensou, “- Não podem ser as crianças”. Joana tinha dois filhos: Pedro, de 8 anos, e Letícia, de 6. Eram seu refúgio: alegres, carinhosos e sempre tiravam boas notas nas provas da escola. Corriam pela casa quase o dia todo e pediam à mãe para fazer o mesmo. Eles a amavam.
Abriu a torneira e molhou a face algumas vezes. Depois se enxugou com uma toalha cor-de-rosa, que nunca tinha visto, e olhou-se no espelho. Apesar das rugas que a incomodavam há tempos, seu rosto era sereno e de belo aspecto. Tinha por hábito escovar os longos cabelos castanhos sempre que acordava, mas dessa vez não encontrou sua escova. Dona Sida, a empregada que a acompanhava desde a gravidez de Pedro, tinha arrumado a suíte e, seguindo um costume que mais a divertia do que irritava, deveria ter trocado o estojo de maquiagem e os demais objetos de lugar pela milésima vez.
Joana agachou-se e fez uma rápida inspeção nos armários, começando pelos lugares preferidos de Dona Sida para o esconde-esconde, mas em vão. Ainda de cócoras, não teve outro remédio senão chamá-la. Porém, o vocativo morreu ainda em sua boca, ao se lembrar de que dera-lhe folga desde o dia anterior. “- Ela às vezes se esquece de me contar onde os colocou. Mas é tão trabalhadora, pobrezinha…”
Pôs de volta todas as coisas no lugar e fechou os armários suavemente, para não afrouxar as dobradiças. Da báscula do banheiro ouvia vozes indistintas, provavelmente os vizinhos conversando ou varrendo a calçada.
Constatou que ainda estava com sono, como se tivesse caminhado à noite toda, e já que o lixeiro só passaria no final da tarde, resolveu deitar-se mais uma vez. Não olhou para o relógio digital, mas supôs que estivesse marcando 7:45h. Fechou os olhos e esperou.
Joana gostava de ler para os filhos. Iniciou o hábito, como fazem os bons pais, para fazê-los dormir. Com o tempo, passou a ler várias vezes em um mesmo dia. Não era raro que repetisse a mesma história. Sua favorita era A Roupa Nova do Imperador, de Andersen – menos um conto de fadas do que uma metáfora sobre as consequências da hipocrisia coletiva – cujo texto já conhecia de cor. Pois foi com a cômica imagem do soberano nu a desfilar pomposamente para o público é que Joana sentiu que alguém a observava. Virou-se em direção à porta e espantou-se ao ver uma criança desconhecida.
Era uma menina e usava um vestidinho vermelho, com detalhes em azul-escuro. Tinha cabelos castanhos e encaracolados. O rosto, repleto de sardas, era gentil. Deveria ter mais ou menos uns 5 anos de idade. Em alguns aspectos, lembrava um pouco sua filha mais nova.
Num reflexo, Joana levantou-se e se cobriu com os lençóis:
─ Olá, mocinha. – disse, recobrando-se do susto.
─ Por que você está no quarto da mamãe?
Joana tentou racionalizar aquela indagação absurda: poderia ser a filha de algum vizinho recém-chegado ao bairro. Estava sozinha, perdida, era muito pequena, e havia entrado na casa por engano. Propositalmente estava a ignorar o fato de que seu marido, sempre que levava os filhos para a escola, nunca deixava a porta destrancada, já que Dona Sida tinha uma cópia da chave. Havia se distraído, então, nada mais.
─ Você se perdeu da sua mãe? – tentou um caminho mais direto.
A pequena não disse nada, aparentemente não compreendera a pergunta. Joana insistiu:
─ Como se chama a sua mãe?
─ Ela diz para eu não falar com gente estranha.
“- Simples e obediente.” – pensou. Joana pôs-se de pé, enrolando-se com os lençóis, e aproximou-se. Teve a impressão de ouvir, novamente, o mesmo barulho que a acordara, mas dessa vez não deu importância. Em seguida, pousou sua mão suavemente sobre a cabecinha curiosa e hesitante.
─ Olha, o meu nome é Joana. Já não sou mais estranha. Eu sou a mãe de duas crianças: um menino chamado Pedro e uma menina chamada Letícia, que, aliás, é muito parecida com você. Será que você os conhece?
─ Não sei.
─ Você não tem amiguinhos na sua escola?
─ Sim, mas só quando tenho aula.
─ Entendi. Você estuda à tarde.
─ Não. De manhã. Não gosto de acordar cedo, mas minha mãe sempre me chama.
─ E por que não foi à aula hoje?
─ Porque quando é férias não tem escola.
Pela primeira vez desde que acordara, Joana sentiu-se realmente perturbada: estava há poucos minutos, em seu próprio quarto, conversando com uma criança que não conhecia, e que involuntariamente invadira a sua casa. Essa mesma criança tinha hábitos escolares incomuns, já que dizia estar de férias. Seria algum tipo de síndrome?
Após outra pausa, reiniciou o diálogo inusitado:
─ Onde fica a sua escola?
─ Na praça. Mamãe diz que só tem essa.
As duas informações eram verdadeiras, era possível constatar. A cidade era pequena, coisa de uns vinte mil habitantes. Não havia outras escolas que não aquela na qual Joana matriculara seus filhos. A menina, definitivamente, morava por perto, e não frequentava instituições para estudantes especiais.
─ Mas as férias não são só perto do Natal?
─ Sim. Eu me comportei o ano todo e ganhei uma bicicleta. O Natal passou, mas ainda é férias. Posso brincar o dia inteiro.
─ Acho que você está se confundindo. – disse-lhe ternamente. ─ Ainda estamos no mês de maio. Faltam muitos meses para o Natal e para as férias.
─ É férias sim. Por isso você está sem roupa de frio. A mamãe me disse que não usamos roupas de frio nas férias. Ela tem uma camisola igual a essa sua.
Era uma típica manhã de janeiro, mas Joana sentiu como se uma mão gelada segurasse seu tornozelo.
Levantou-se e sentou-se na cama mais uma vez. Seu abdome doía, e pressionou os braços contra ele. Mais ruídos indistintos vindos de fora. Pensou em seus filhos e em seu marido. Ele os levara para a escola naquela mesma manhã. Imediatamente, recordou-se de alguma coisa do sonho que tivera: era noite e caminhava sozinha pela cidade. Não sabia por quê, mas estava exausta e procurava um lugar onde pudesse repousar, até que avistou a sua casa. Apressou o passo até a porta e girou a maçaneta. Trancada. Desesperada, tentou forçar a porta com ambas as mãos. Vários baques depois, permanecia fechada. Suas memórias terminavam aí.
Voltou o seu olhar para a criança e pôs-se a fitá-la por um longo tempo. Esforçou-se no sentido de lembrar se já a tinha notado alguma vez na vida, com ou sem o vestido vermelho e detalhes azuis. Foi tomada por um sentimento de repulsa e carência diante do que via. Quem ela era? De repente, rompeu o silêncio:
─ Como entrou aqui?
─ Eu subi a escada.
─ Você conhece essa casa?
─ É a minha casa. Esse é o quarto da minha mãe. O meu é ali do lado, mas às vezes mamãe me deixa dormir aqui.
Os olhos de Joana encheram-se de lágrimas.
─ Você está imaginando coisas, menina.
─ O que é imaginar?
─ É como um faz de conta.
─ É igual às histórias que a minha mãe lê?
─ Exatamente. Você gosta de ouvir histórias?
─ Sim. Mamãe sempre lê para mim antes de dormir e depois do café da manhã. O meu livro de histórias está na cômoda. Eu vim buscar.
Joana olhou de soslaio para o móvel. Era bem-feito, de madeira nobre, e sobre ele repousavam uma luminária branca e uma tela de Santa Catarina de Sena – a teóloga do século XIV que recebeu os estigmas de Cristo. Nunca havia visto aqueles objetos.
─ Viu só? Não há livro nenhum na cômoda. – disse, já em amargos soluços.
─ Ele está na terceira gaveta. Eu consigo alcançar. – a menina correu e abriu a gaveta. Para o pavor de Joana lá estava um bonito tomo, com os dizeres Um tesouro de contos de fadas estampado. Era grande e pesado para uma criança daquele tamanho.
Desolada, Joana não disse mais nada, apenas chorava. Olhou ao seu redor e se sentiu uma estrangeira. Sobre a mesinha de cabeceira, o relógio digital marcava nove horas da manhã do dia 11 de janeiro. Não era 30 de maio, como até então acreditava. A criança inocente tinha razão. Sempre tivera. Sua cabeça agora era um torvelinho: Onde estava a sua família? E Dona Sida? E como viera parar naquele lugar? Ela realmente havia caminhado pela noite, o que explicaria sua camisola manchada, e subido as escadas até o quarto? Como ainda não a haviam notado? Os baques que ouvira com frequência, e que já a aborreciam, voltaram, agora constantes e ritmados. Desejava ardentemente fugir dali. Aquela não era a sua casa.
Enxugou as lágrimas com as mãos. No lugar de seu rosto, apenas um todo vermelho e intumescido. Não era a mesma mulher que despertara e que há pouco escovara os belos cabelos com a escova de uma mulher que nem sequer conhecia.
─ Chame a sua mãe. – ordenou à pequena, que ainda segurava o livro com ambas as mãos.
─ Minha mãe está aqui. – respondeu-lhe ela olhando para fora do quarto.
Uma silhueta de mulher formou-se no corredor. A porta se abriu por completo e a mãe da menininha lhe disse:
─ Outra vez falando sozinha, filha?
E, finalmente, Joana lembrou-se de quem era.
* O autor é mestre em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
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