Elias de Lemos (Correio9)
O título acima é uma fusão de duas declarações feitas por duas personalidades da alta cúpula do governo brasileiro. A primeira foi dita pelo filho do presidente da República, deputado Eduardo Bolsonaro (PSL), o “Zero Três”. A segunda foi pronunciada pelo vice-presidente da República, Hamilton Mourão.
Pois bem, vamos aos fatos: Crispim Terral, 34 anos, é um empresário baiano que foi covardemente agredido em uma agência bancária na frente de sua filha. Em uma rede social, ele escreveu que foi ignorado na agência por dois funcionários, aguardou por horas para resolver um problema e, após cobrar uma solução, levou um ‘mata-leão’ e foi imobilizado pela Polícia Militar, a pedido da gerência.
Depois, Pedro Gonzaga foi estrangulado no supermercado Extra. Em janeiro de 2019, Leonardo Nascimento passou uma semana preso por um crime que não cometeu. Seis meses depois, em novembro do mesmo ano, a advogada Valéria Santos foi arrastada e algemada durante uma audiência.
No início de outubro deste ano, uma menina de 11 anos foi obrigada por um funcionário de uma loja de doces a levantar a blusa e provar que não havia furtado nenhum produto do estabelecimento, localizado no bairro da Penha, na Zona Norte do Rio.
Há alguns dias meu sobrinho viajava de ônibus para Nova Venécia. Em São Domingos do Norte, o ônibus foi abordado por uma viatura policial, os policiais entraram no veículo e ordenaram que ele descesse. Ele desceu e foi revistado, bem como sua mochila.
Ao questionar o motivo, aos policiais, eles responderam que houve uma denúncia de que algum passageiro estaria transportando drogas e ele era um suspeito potencial. No ônibus havia mais de 30 pessoas e ele era o único negro ali dentro.
“A esquerda encontrou seu George Floyd” foi uma declaração do Zero Três. “No Brasil, não existe racismo” é uma constatação do vice-presidente. Ambos se referiam ao espancamento de João Alberto em um supermercado da rede Carrefour, em Porto Alegre.
Assim como João Alberto, assassinado no Rio Grande do Sul, George Perry Floyd Jr. foi um homem negro assassinado em Minneapolis, nos Estados Unidos, no dia 25 de maio de 2020, estrangulado por um policial branco que ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem por supostamente usar uma nota falsificada de vinte dólares em um supermercado.
O espancamento que levou à morte de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, relembra o episódio de violência contra o estudante Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga, de 19 anos, estrangulado no Extra da Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2019. Um ano e nove meses após o crime, os agressores não foram julgados. Os seguranças Davi Ricardo Moreira Amâncio, de 32 anos, e Edmilson Felix Pereira, de 27 — que não teriam impedido a ação do colega — foram denunciados por homicídio doloso e respondem em liberdade.
A declaração do vice-presidente Hamilton Mourão de que “não existe racismo no Brasil” revela o plano do governo brasileiro para a população negra: se não tem racismo, ele não precisa ser combatido, não precisa de cotas nas universidades e as mortes vão continuar. Além disso, ele afronta os brasileiros negros ao dizer este disparate justamente no Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro.
João Alberto Freitas, conhecido como Beto pelos amigos, foi espancado até a morte por 2 homens brancos. O homicídio foi alvo de repúdio de autoridades e manifestações contra a rede de supermercados.
Para o vice-presidente o espancamento foi um fato “lamentável”, ele disse que era um caso de “segurança completamente despreparada para o trabalho que tem que fazer”. Questionado se a morte do homem era indicativo de racismo, Mourão negou: “Para mim, no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar para o Brasil, não existe racismo aqui. Eu digo para você com toda tranquilidade, não tem racismo aqui. Eu morei nos Estados Unidos (EUA), racismo tem lá”.
Questionado sobre os índices de violência policial contra pessoas negras, ele afirmou que não é uma questão de etnia, mas de desigualdade social, como se não existisse brancos pobres no Brasil.
O vice-presidente, também, foi questionado sobre o caso do entregador alvo de ofensas racistas em um bairro de luxo em São Paulo. Ele respondeu: “Isso não é uma coisa estrutural, é uma coisa pessoal”. Como se vê, a retórica de Mourão é afiada e se esmera para negar o óbvio.
O Brasil foi o ultimo país do Ocidente a abolir a escravidão. Demorou demais! As estatísticas divergem, mas indicam que o país teria recebido entre 38% a 44% da quantidade absoluta de africanos obrigados a deixar o continente. E teve escravizados em todo o seu território, diferentemente dos EUA, por exemplo, que no Sul tinha um modelo semelhante ao nosso, mas no Norte tinha outro modelo econômico.
Ao contrário do romantismo se fala da abolição, seu fim foi um processo de luta da sociedade brasileira. Não foi uma lei. Não foi um presente da princesa Isabel, como procuram nos convencer. Muitos setores de classe média e de profissionais liberais aderiram à causa abolicionista, que se transforma em uma causa suprapartidária na década de 1880.
Não se pode tirar o mérito, sobretudo, da atuação dos escravizados, dos negros, dos libertos, que pressionaram muito o tempo todo, seja por insurreições, seja por rebeliões coletivas, rebeliões individuais, suicídios e envenenamentos.
O Estado brasileiro não fez nada mais, nada menos, do que retardar a Lei Áurea a um tal limite que ela acabou custando a própria existência do Império no Brasil. Um ano e meio após a abolição da escravidão, o Império caiu.
No entanto, o fim da escravatura não eliminou a memória escravocrata. A teoria de que não existe racismo no Brasil é defendida por pessoas de diversos segmentos. Desde a sexta-feira, 20, Dia da Consciência Negra, tenho acompanhado comentários contrários à data e alguns chegam a dizer que o racismo começa quando há uma data para lembrar que os “negros são diferentes de brancos”. Não é isso, a data é justamente para lembrar o contrário: “lembrar aos brancos que eles são iguais aos negros”.
Pessoas brancas, de classes privilegiadas, que nasceram e vivem em suas redomas, não deveriam discutir este assunto, deveriam se abrir para ouvir o que nós negros passamos, o que enfrentamos, quantos leões temos de matar por dia para vencer essa barreira.
O racismo está em todos os lugares, e quem nega isso, o faz por ignorância, estupidez ou crueldade. Sou professor e jornalista, e sendo negro, sei o que passei, o que passo e o que, ainda, vou passar por ter nascido assim!
* O autor é economista, professor, jornalista, escritor e editor-chefe do Correio9
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