* Eliana Maria Lemos
Desde que estreou no horário das 21 horas, na Rede Globo, a novela “O Outro Lado do Paraíso”, tem registrado altos índices de audiência. Diariamente milhões de brasileiros esquecem as mazelas do país e seus problemas cotidianos, para acompanhar a saga da mocinha Clara, vivida pela atriz Bianca Bin, em sua vingança contra os algozes que a internaram durante dez anos num hospício para tomar posse de suas minas de esmeraldas. Em sua lista de vingança constam: a ex-sogra Sofia (Marieta Severo), o delegado Vinicius (Flavio Tolezoni), o psiquiatra Samuel (Eriberto Leão) e o juiz Gustavo (Luis Mello). O sucesso da trama, no entanto, é algo difícil de entender. Ao contrário de outros folhetins globais, a história de Walcyr Carrasco é cheia de falhas.
Embora trate de temas importantes como a violência doméstica, racismo e pedofilia, o texto do autor deixa muito a desejar. As falhas vão desde a concepção dos personagens até questões simples como passagem de tempo.
Vejamos: os tipos criados por Walcyr e sua equipe são rasos. A própria protagonista Clara é fraca na sua sede de vingança. De mocinha ingênua criada na roça que se casa com o bonitão rico da cidade grande, e descobre, na lua de mel, que o seu príncipe gentil, na verdade é um homem possessivo e violento, Clara até cresceu como mulher ao se rebelar contra as agressões que sofria e se divorciar de Gael.
Porém, ao ser trancafiada no hospício pela sogra, onde permaneceu por dez longos anos longe de todos – inclusive do filho – e voltar rica e poderosa para Tocantins ela deveria ter sangue nos olhos, ávida por acabar com todos que transformaram a sua vida em um inferno. A começar pela Lívia (Graci Massafera), a cunhada fura-olho que a dopou para que a mãe pudesse por em prática seu plano macabro, e que tomou seu filho. Mas não, a atitude de Clara em relação à Lívia é quase de submissão. Em nenhum momento da trama a neta de Josafá se volta contra ela, mesmo sabendo que Lívia diz na sua cara que Tomás é seu filho e que não vai deixá-la se aproximar dele.
Outra situação incompreensível é em relação a exploração das minas de esmeraldas. Após Clara colocar o terreno em nome do filho, Sofia se apoderou das terras, colocou fogo na casa do seu avô, expulsou o velho de lá com a mão na frente e outra atrás. Pois bem, ao voltar rica e assessorada 24 horas por um advogado renomado, o que se esperava que ela fizesse era embargar o garimpo. Não precisa ser nenhum “às” do direito para entender que mesmo tendo a guarda do menino, a avó não poderia se apossar daquela maneira de seus bens. Legalmente pelo Código Civil, o direito do garoto seria garantido.
Mas, aí você pode dizer que a Sofia comprou o juiz, está certo, mas que mulher milionária é essa? Que sede de vingança é essa que Clara não é capaz de tomar nenhuma atitude a respeito? Outro exemplo, é a vingança dela contra o psiquiatra que assinou o laudo para a sua internação. Ao invés de focar na sua atitude antiética, e buscar meios que o levasse a perder o registro profissional, e evitar que Samuel continuasse exercendo a profissão de forma tão sórdida, o que ela fez? Focou na vida pessoal do cara como se o maior pecado dele fosse ser um gay enrustido.
É uma personagem fraca, mal construída, que, agora, depois de idas e vindas, sem mais nem menos, aceitou se casar com Renato (Rafael Cardozo) porque o filho, às vezes o chamava de pai, sem sequer ter namorado o médico antes. E só não fez por conta dos poderes paranormais da vidente Mercedez (Fernanda Montenegro) que fez com que Clara descobrisse minutos antes de ir para a cerimônia que o Renato na verdade é um crápula que só queria suas esmeraldas.
Mas não é só Clara que sofre desse mal, vários personagens têm o mesmo defeito. A novela trata de temas importantes, mas de forma superficial e até inadequada. A impressão que tenho é que o autor e seus colaboradores têm preguiça de pensar para buscar ideias mais elaboradas para seus personagens. Por exemplo, o caso da Bethe (Glória Pires) muito foi questionado nas redes sociais o absurdo de sua filha Adriana não tê-la reconhecido quando foi designada pelo Patrick para defendê-la da acusação de homicídio. Mas eu imagino que a Adriana não reconhecê-la, não é nada diante do fato da Bethe, uma mãe extremamente amorosa, não se lembrar do rosto da filha, já que quando ela desapareceu a menina já não era mais bebê, era quase uma adolescente e ninguém muda tanto assim, principalmente para uma mãe. E o pior: como é que ela estando presa em nenhum momento soube o nome da advogada? Ou será que de tanto beber gim ela se esqueceu do nome da menina? Muitas falas dos personagens são absolutamente inadmissíveis, levando em conta a profissão, o grau de instrução e a sua função social na trama. É tudo muito grotesco. Por exemplo, num dos capítulos desta semana, a personagem Jô (Barbara Paz) que tinha ido embora para o Rio de Janeiro após o marido Henrique ter pedido a separação, retorna ao Tocantins porque a enteada Adriana foi operada. Ela chega sem mais nem menos destratando todo mundo, mandando a Bethe embora do hospital, como se ela nunca tivesse ido embora. Uma coisa totalmente sem lógica.
Os diálogos beiram ao ridículo, são explicativos demais, às vezes a cena acabou de passar e, em seguida, tá o personagem explicando, a outro, aquilo que acabou de acontecer. Sem falar em atitudes não condizentes com nada. Por exemplo, o médico obstetra que trata da personagem Suzy (Ellen Rocche) é podolatra. Até aí tudo bem, o problema é que ele não tem nenhum senso ético, e fica agarrando os pés da moça durante a consulta, na frente do ex-marido dela que vem a ser o Samuel que é o diretor geral do hospital, em que o médico trabalha, e que nada faz.
Recentemente, outra bola fora do autor, que acabou vazando para a imprensa era a intenção de transformar uma prostituta num homem, o que parece que não vai mais acontecer, não porque ele recuperou o bom senso e sim por causa da avalanche de críticas nas redes sociais, com internautas questionando como a mulher ia virar homem se em cenas anteriores a personagem se consultou com a ginecologista.
Ser autor de uma novela das 21 horas na principal emissora do País não é pra qualquer um. É preciso ter muita bala na agulha para segurar uma trama mais de seis meses, sem deixar a peteca cair. Porém, da safra atual de novelistas, a única que escreve suas tramas, sozinha, é a Glória Peres, os outros autores geralmente contam com uma equipe de colaboradores, na criação da novela que é o maior produto cultural do Brasil. Por isso é difícil engolir as doideiras de Walcyr Carrasco e seus ajudantes.
* A autora é jornalista, roteirista, escritora, pesquisadora do Instituto Ipsos e articulista exclusiva do Jornal Correio9
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