Elias de Lemos (Correio9)
Atenção: contém spoiler
Confinados em uma prisão vertical com 333 níveis (andares), homens e mulheres, completamente isolados do mundo exterior, só têm uma coisa a fazer: esperar o momento das refeições, que dura, apenas, dois minutos. Os alimentos descem por uma plataforma e a saciedade deve ser feita nesse tempo. É proibido guardar qualquer pedaço para depois. Se isso acontecer a temperatura ambiente pode subir ou descer ao ponto de se tornar insuportável.
“Existem três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem”. A enigmática frase que inicia o filme “O Poço” resume todo o enredo do filme. Nestes tempos, em que vivemos com distanciamento social cada vez mais manifesto, não apenas por divergências políticas e religiosas, mas, reconhecidamente pela estrutura socioeconômica que opõe “merecedores” e “desmerecedores”, a Netflix traz um alento com esta obra que expõe nossa composição social, de forma reflexiva, assustadora e tão atual.
A narrativa de “O Poço” se desenrola dentro de uma prisão, com poucos personagens, porém fortes e impactantes. O filme é uma produção espanhola, e o primeiro longa-metragem dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, protagonizado por Goreng (Ivan Massagué), com atuação impecável, tendo como coadjuvante Trimagasi (Zorion Eguileor), seu companheiro de cela.
Diferentes motivos levam os prisioneiros para lá, sendo que cada um vai em razão de uma prisão própria, particular, da qual precisam sair. Tal prisão pode ser por imposição social, ou pessoal. Goreng foi por escolha própria com a intenção de parar de fumar (prisão ao vício), enquanto Trimagasi paga por um crime que cometeu. Certo dia, ele jogou uma televisão pela janela de seu apartamento, o aparelho caiu sobre a cabeça de um homem, levando-o à morte.
Em cada nível da prisão há dois presos, cada um fica de um lado do poço, por onde desce a plataforma com os alimentos. Lá, o jovem Goreng recém-chegado e o ancião Trimagasi, veterano no confinamento, se conhecem. Ao chegar, o novato recebe de seu companheiro de cela a explicação de como funciona o dia a dia: não se vê a luz do sol e não há nenhuma possibilidade de saída em nenhum momento. O passatempo, o tempo todo, é a espera pela chegada da plataforma de comida que se move para baixo entre os andares todos os dias.
A plataforma é o centro do drama dos personagens. Goreng e Trimagasi estão no nível 48 do Poço, assim eles precisam aguardar que os dois presos em cada um dos 47 níveis acima se alimentem até que os restos cheguem ao seu andar. “Restos” esse é o foco do sadismo que envolve a trama.

As refeições são preparadas em uma majestosa cozinha, com equipe requintada e um chef exigente. O banquete é luxuoso e começa a ser servido no nível “zero”, onde, assim como nos demais níveis, permanece por dois minutos, esgotado esse tempo, ela desce para o próximo.
Trimagasi explica a Goreng que o banquete é um só, para todos os prisioneiros; que o banquete é servido no alto do poço e o que sobra vai descendo, desse modo nem sempre eles terão com o que se alimentar, pois os presos dos andares de cima pouco se importam com quem está abaixo. Goreng se impressiona ao saber que a maioria se alimenta de restos e sugere que precisa haver mudança, que eles precisam falar com a administração.
O ancião rechaça e afirma que a administração não tem consciência. Então o jovem propõe conversar com os que estão acima, quando ouve que os de cima não se importam com quem está abaixo.
O único fio de esperança, e que pode ser, também, de desalento dos prisioneiros, é que a cada 30 dias as duplas trocam de lugar aleatoriamente. Por exemplo, quem está no nível um pode ir parar no 200, e quem está no 200 pode ir para o nível um. Essa mudança leva os presos a passarem por diferentes situações, de acordo com o nível onde vão parar. Essa dinâmica em alguns casos leva ao limite que um ser humano pode chegar ao tentar manter a sanidade passando fome e sem saber o seu próximo destino.
Com uma narrativa que usa elementos de filme de suspense, horror e filosofia, “O Poço” retrata a estrutura socioeconômica da sociedade capitalista em que vivemos, onde cada indivíduo é colocado em um lugar na pirâmide social. Ele usa uma metáfora para apresentar os terrores desse sistema, onde alguns indivíduos se sentem confortáveis no topo, enquanto outros, invisíveis, se confrontam, se enfrentam e se comem (literalmente) vivos.
Cada um desfruta da situação em que se encontra no poço, mesmo que ninguém seja beneficiado. Uma vez que a plataforma fica disponível por, apenas, dois minutos e ninguém pode guardar (acumular) alimento para depois, cada indivíduo é levado a comer o máximo que puder. No entanto, na medida em que ela vai descendo, os alimentos (restos) ficam cada vez mais escassos, sem chegar aos níveis mais baixos, onde os presos passam fome e morrem. Isso não acontece quando eles se comem vivos. Isso mesmo, prisioneiros tornam seus companheiros reféns, os amarram e vão comendo seus corpos aos poucos (nesse ponto é preciso ter estômago para continuar assistindo).
Em dado momento uma mulher desce na plataforma, ela é Miharu (Alexandra Masangkay), que foi para a prisão em busca de sua filha. Ao se deparar com ela, Goreng tenta saber quem é e se precisa de ajuda, ela o repele. E graças a essa mulher, ele escapa de ser comido pelo companheiro de cela.
Em seguida, surge Imoguiri (Antonia San Juan), a nova companheira dele no poço. Ela explica ao protagonista que naquele caos “somente uma solidariedade espontânea pode trazer mudanças”. Se todos se alimentassem com o que apenas foi reservado para si, haveria comida para todos. Mas, como fazer essa mensagem ser notada quando quem tem em abundância apenas quer mais, enquanto os que têm pouco, ou nada, vão se transformando em canibais?
Goreng muda de nível, e mesmo assim, não desiste de tentar a mudança, ele decide descer e tentar fazer a mensagem – “Somente uma solidariedade espontânea pode trazer mudanças” – chegar aos outros níveis. Sua decisão lhe custa caro, afinal, por que se preocupar com quem está abaixo?
A metáfora do filme “O Poço” espelha a sociedade em que vivemos: a administração (governo) não tem consciência, quem está acima (os mais ricos), não se importam com quem está abaixo, e quem está abaixo (os mais pobres), não tem vez. A questão é: como fazer chegar a todos a mensagem de que é possível dividir melhor, de forma que todos possam ter sua parte?
O final do filme é ambíguo, com várias interpretações possíveis: qual o destino do personagem? Qual a verdadeira mensagem, a menina ou a panacota? A menina existe ou é, apenas, mais uma imaginação do protagonista?
* O autor é economista, professor, jornalista, escritor e editor-chefe do Correio9
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