
Elias de Lemos (Correio9)
Meritocracia é uma palavra de origem grega, formada por “mereo” (que significa digno, ser merecedor) mais o sufixo “kratos” (poder, força). O termo trata-se do alcance do poder por meio do merecimento. De acordo com esse pensamento, os objetivos individuais são alcançados por aqueles que se dedicam e se esforçam e, portanto, merecem o sucesso.
Os defensores da meritocracia não levam em conta as desigualdades de condições. Defendem o estado mínimo, são amantes de privatizações, são contrários às políticas de cotas nas universidades e torcem o nariz quando o assunto é política social. Tudo isso fez parte do discurso liberal proferido durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro. São liberais, mas, vivem de influências dentro do setor público.
Filho, filha, irmã, genro, cunhado… Pelo menos oito pessoas da família de Michelle e Jair Bolsonaro estão na mamata das tetas públicas com salários bem obesos. Todos foram empregados por aliados do ex-presidente.
A ex-primeira-dama que é filiada ao PL (ironicamente: Partido Liberal), é presidente do PL Mulher com salário de R$ 41,6 mil. Uma parte do dinheiro dos partidos provém de doações, mas, a maior fatia é proveniente de dinheiro público, do escandaloso Fundo Eleitoral.
Além de sua filha mais velha, Letícia Firmino, que recebeu um cargo de confiança no governo de Santa Catarina, com salário de R$ 13 mil, dois irmãos de Michelle e seu genro, também, ocupam cargos políticos. Os salários acumulados superam R$ 42 mil.
Letícia Firmino tem 20 anos, cursou dois períodos de Direito e agora faz um curso de Gestão Pública, portanto, sem concurso e sem formação, recebe R$ 13 mil, apenas pela influência familiar, pelo nome que possui. Onde está a meritocracia?
O irmão de Michelle, Diego Torres, foi o primeiro a puxar a fila do “mérito familiar”. Em janeiro de 2023, ele foi nomeado para o cargo de “Assessor Especial do Governador I”, no governo de Tarcísio de Freitas (PL-SP).
Para o exercício da função no governo de São Paulo, o cunhado de Bolsonaro recebe salário de R$ 24 mil. Antes disso, ao longo do governo do seu cunhado, ele foi assistente do Ministério da Defesa, outro posto de confiança no qual recebia R$ 5,6 mil mensais.
Além dele, a meia-irmã de Michelle, Geovanna Kathleen, foi contemplada com o cargo de “ajudante parlamentar pleno”, no gabinete da senadora e ex-ministra de Bolsonaro, Damares Alves (Republicanos-DF). Geovanna tem 24 anos, ela e Michelle são filhas da mesma mãe, mas têm pais diferentes. O salário que recebe pelo cargo no gabinete de Damares é de R$ 4.094,27 mil. Onde está a meritocracia?
Também no Senado Federal, o namorado de Leticia Firmo, o militar Igor Matheus Modtkowski, está lotado no gabinete de Jorge Seif (PL-SC), onde foi nomeado motorista; outro cargo de confiança pelo qual recebe R$ 4.768,03.
O gabinete do senador Jorge Seif emprega, ainda, o enteado de Michelle, o filho 04 do ex-presidente, Jair Renan Bolsonaro com remuneração de R$ 9.536,08, mais auxílio alimentação de R$ 1.331,00 (o auxílio é maior do que um salário mínimo de R$ 1.320,00). Onde está a meritocracia?
O ex-presidente Jair Bolsonaro é um privatista, defensor ferrenho do liberalismo e um meritocrata. Mas ele, que foi expulso do Exército por planejar um atentado à bomba para pressionar por maiores salários e foi para a reserva, recebe R$ 11.945,49 pela aposentadoria forçada. Jair recebe outros R$ 41,6 mil de aposentadoria como deputado federal. Para completar a mamata do ex-mandatário, ele recebe R$ 39,2 mil do PL. Somando tudo isso, Bolsonaro embolsa, mensalmente, R$ 92.745,49.
Tem mais! Carlos Bolsonaro, filho do ex-presidente, é vereador da cidade do Rio de Janeiro. Em 2020 ele foi eleito para o sexto mandato, mesmo tendo ficado quatro anos sem fazer nada na Câmara, apenas atazanando a vida dos desafetos do pai. Como vereador, o salário base é de R$ 18,9 mil fora todos os demais benefícios.
Outros dois filhos, Eduardo e Flávio Bolsonaro exercem os mandatos de deputado federal e de senador, respectivamente. Cada um com um salário de R$ 41.650,92.
A conta não inclui nenhum outro benefício, como transporte, auxílio alimentação (a exceção de Renan) entre outros.
Em seu nascedouro, a meritocracia fazia sentido: ela derrubou o sistema aristocrático predominante na maior parte da história da humanidade, com privilégios herdados e passados de geração em geração. Agora, no século XXI ela perpetua mitos e a desigualdade ao mesmo tempo em que retoma e disfarça a sociedade dos privilégios.
No Brasil, quem chega a certa posição socioeconômica mais elevada consegue reconhecimento social, salário acima da média e um patrimônio que a maioria nunca vai ter, se reconhece como bem-sucedido; pensa que foi exclusivamente por seus próprios méritos. No entanto, como se vê, é possível que não tenha sido bem assim.
Na trajetória de vida de cada um o esforço conta, e muito, como é natural desde que o homem surgiu na terra. Mas, o esforço, por si, é apenas mais um fator que precisa ser analisado junto a outros que escapam à vontade e o desejo de vencer de cada um: o berço, o nome, a sorte e o talento. A vida é uma loteria, mas, também, tem muito a ver com herança e influência.
* O autor é economista, professor, jornalista, escritor e editor-chefe do Correio9
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