Roney Marcos Pavani
No século das Luzes, o velho desejo milenarista de construir um Paraíso na Terra ganhou novos ares. Deus saiu de cena e deu lugar à Razão, ao progresso, ao esclarecimento. Os revolucionários de Paris seguiram à risca a cartilha de Voltaire (1694-1778), Rousseau (1712-1778) e companhia. Tomaram o poder sob o lema tríplice – Liberté, Egalité, Fraternité, e propuseram um governo racional, chefiado por homens ilustrados e preparados, cuja missão sublime seria levar a França (e o Mundo) a um Estado perfeito. Porém, o resultado da empreitada foi grotesco e melancólico: décadas de guerra e violência, o Terror jacobino, a ditadura de Napoleão (1769-1821). O fim do sonho.
Nem tanto. Cerca de cem anos depois, especialmente no período 1870-1914, a Belle Époque, não somente a França, mas também Grã-Bretanha, Alemanha, Bélgica, Holanda lançaram seus tentáculos imperialistas em direção à África, à Ásia e à Oceania. Eram potências rivais, mas unidas pelo ideal de levar a Civilização aos povos selvagens e atrasados. As leis da natureza estariam ao lado dos vencedores e não haveria o que temer. Um mundo perfeito, dominado por europeus caucasianos, estava ao alcance. No entanto, o que conseguiram em poucas décadas? Exploração, genocídio e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Já no começo do século XX, e como reação ao conflito citado, dois novos sonhos: um igualitário e universal, o outro hierárquico e nacionalista. Comunismo e Nazismo eram inimigos mortais, mas tinham, cada qual à sua maneira, a mesmíssima ambição: construir um mundo perfeito, sem inimigos, em nome do proletariado ou da raça ariana; bem como o mesmíssimo ódio: à modernidade e à democracia liberal. O resultado de ambas experiências pode ser definido como as maiores máquinas de matar de toda a história da humanidade, seja em campos de concentração, pelotões de fuzilamento ou valas comuns.
O sentimento de que é possível construir um paraíso na Terra é, sem dúvida, fascinante e hipnótico. Em todos os casos, uma constante: a política não é vista como a construção de uma ordem e do bem comum, mas como uma missão religiosa, um ritual. E estes, por sua natureza, exigem sacrifícios expiatórios. Em outras palavras, a morte não é somente inevitável, é necessária. No final, o grupo dos eleitos será redimido e viverá feliz para sempre. Por essa linha de raciocínio, utopias conduzem necessariamente a catástrofes. Os romances 1984, de George Orwell (1903-1950), e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1894-1963) têm muito a dizer sobre isso.
Mesmo assim, as vontades humanas não nos cansam de surpreender. Embora a crença em grandes narrativas tenha morrido (e tenha sido substituída pela crença em qualquer coisa), o sentimento utópico permaneceu vivo. Sorrateiro, ardiloso, mas vivo. E tomou forma na incapacidade das democracias e do Estado de Bem-estar Social em dar conta das múltiplas mazelas da sociedade. Aqui já falo especificamente do Brasil. Sim, temos uma utopia tupiniquim no século XXI. De face teocrática, evangélica, pentecostal e neopentecostal – embora conte com adeptos em outras denominações.
Esse sonho, é claro, não foi construído da noite para o dia. Foi gestado, ainda nos anos 1980, com a presença evangélica nas telecomunicações. Slogans apelativos como “Pare de sofrer”, “Fala, que eu te escuto”, ou o “Show da fé” tornaram-se a tônica em programas de audiência crescente. O caso mais claro foi o de Edir Macedo, o aiatolá da Igreja Universal do Reino de Deus e, hoje, dono de um império chamado Rede Record. Não só. RR Soares, Silas Malafaia e Valdomiro Santiago, e tantos outros também passaram a fazer uso desses recursos. Todos propagadores de uma teologia vergonhosa, que faria Agostinho de Hipona (354-430) ou Tomás de Aquino (1225-1274) se remoerem em seus túmulos, mas de apelo comunicacional impecável: a promessa sistemática de dias melhores para seus fiéis (ou seriam consumidores?). No Céu? No fim dos tempos? Que nada! Isso é cristianismo ultrapassado. Pelo preço certo, o caminho da redenção (sobretudo financeira) passou a ser aqui e agora.
Nas décadas seguintes deu-se um passo adiante, com a invenção de um monstrengo cognitivo, o pastor/político; primeiro nos municípios, daí para os estados e, finalmente para o Congresso Nacional. Em seguida, a formação de bancadas fixas e organizadas em todas as casas legislativas do país. Parêntese: não estou a afirmar que pessoas religiosas não possam exercer cargos públicos, o que seria antidemocrático. A aberração está em se utilizar da religião como critério para a escolha do candidato em questão. Dito de outra maneira, o palanque e o plenário tornam-se púlpito, e vice-versa. Os oposicionistas viram filisteus. A lei sacra confunde-se com a lei civil, e o Estado não passa de um comitê para gerir os negócios das igrejas.
Com o tempo, a mesma religião do homem que disse “o meu Reino não é deste mundo” era agora plenamente mundana. Ou ainda: “Dai a César o que é de César” passou a ser lido como: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de César também”. E, como para essas lideranças, a Bíblia é uma espécie de Manual dos Escoteiros Mirins, nada que um punhado de versículos decorados e desconexos não possa fazer para corroborar o que se deseja: “orar pelas autoridades constituídas” (1Tm 2,1-2); “não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13,1-2). Nesse sentido, não é de se estranhar que Jesus Cristo, que entrou em Jerusalém montado em um jumento, mal seja citado. Para seu lugar, há personagens mais apropriados: me refiro à dupla Davi e Salomão. Reis, ricos, poderosos, bem-sucedidos, donos de exércitos.
(Aliás, o Templo de Salomão não foi recentemente reconstruído em São Paulo?)
Mea culpa: nos acostumamos passivamente a confundir pregações de quinta categoria, daquelas de ouvir em ônibus às seis horas da manhã, com discursos de campanha. Cada vez mais estridentes e agressivas. Todas de caráter destrutivo e sectário. Projetos para o país, apenas um: o de extirpar os inimigos (gays, adeptos das religiões de matriz africana, a esquerda, a Rede Globo, depende da ocasião) da face da Terra. A teologia da prosperidade (econômica) caminhava a passos largos para a teologia do domínio (político).
Depois de integrar a base aliada e compor ministérios nos dois governos petistas (a quem depois passaram a confundir com Satanás), restava aos teocratas subir um último degrau: a chefia do Executivo Federal. Tentaram a empreitada com figuras (não só eleitoralmente) desprezíveis, como Levy Fidélix (2010 e 2014) e Pastor Everaldo (2014). Sem sucesso. Contudo, adveio o pleito de 2018, e eis que se apresentou um Messias – literalmente.
Supostamente outsider, mas que estava já há 30 anos no Parlamento. “Cristão”, mas cujo símbolo maior era uma arma de fogo. “Honesto”, mas repleto de denúncias e casos de peculato em seu gabinete, e no de seus 3 filhos políticos. “Humilde”, mas que nunca abrira mão de seus privilégios de deputado. Supostamente “Representante da Ordem”, mas que fora afastado do Exército com desonra. “Defensor da família e das criancinhas”, porém tosco, bronco, grosseiro, mal educado, boca suja, violento.
O que é a lógica elementar quando se tem fé verdadeira, não é mesmo?
“Deus escolheu as coisas loucas, escolheu as coisas fracas, escolheu as coisas desprezíveis, por isso ele escolheu você!”, urrou o supracitado Silas Malafaia diante de uma plateia enfeitiçada. Em outras palavras, Deus escreve certo por linhas tortas. Deus promove a guerra para trazer a paz. O atentado – ah, maldito atentado – do dia 6 de setembro de 2018 consolidou o protótipo de salvador como um mártir completo. Alguém que as hordas do Inferno quiseram silenciar. Ato contínuo, como abutres na carniça, os oportunistas de plantão já se fizeram presentes para abençoá-lo.
Aleluia! Eis que veio a vitória! O triunfo do Messias na presidência, acompanhado de seus apóstolos espalhados em estados e municípios. Momento de receber a coroa da justiça das mãos do Senhor, o justo juiz. Em termos práticos: cargos no governo (Damares Alves e Milton Ribeiro em ministérios, André Mendonça na AGU, etc.), a promessa de um membro “terrivelmente evangélico” para o STF, ou o perdão de dívidas bilionárias a igrejas. Para os televangelistas, aqueles lá do início, o merecido galardão: mais de R$ 30 milhões – esse é o valor que a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) gastou em campanhas veiculadas em rádios e TVs de líderes religiosos que apoiam Jair Bolsonaro. Eita, glória!
Entretanto, conforme já dissemos, o potencial de destruição dos discursos utópicos é imenso. Quase dois anos e meio de governo do Ungido do Senhor em terras brasileiras, e o que temos? 14,5% de desempregados, inflação galopante (especialmente de alimentos), perda de investimentos estrangeiros, isolamento ante a Comunidade Internacional, servidores públicos molestados por suas críticas ao governo, desgastes com as Forças Armadas, queda abrupta de investimentos em educação, ciência e tecnologia. Sem falar nos incontáveis e sistemáticos ataques às instituições democráticas e à Constituição. E, é claro: uma pandemia descontrolada. Pilhas e pilhas de cadáveres. Uma média assustadora de 3.500 mortos por dia, e um número total de 360 mil desde o primeiro caso. Uma distopia, sem dúvida. Os religiosos (chamar de “cristãos” me embrulha o estômago) que deram o seu apoio a Bolsonaro deveriam se sentir envergonhados ou decepcionados com esse pesadelo distópico.
Talvez não. Talvez a conclusão possa ser ainda mais macabra e mais cruel. O que vemos não é um “desvio”, e sim um plano. Também não dissemos lá atrás que a morte não é somente inevitável, como necessária nas utopias? Foi pensado para ser assim, só era preciso um vírus de proporções globais e de potencial avassalador para servir de instrumento à sua concretização. Caso contrário, como entender o percentual resoluto de 25% que considera o governo ótimo e bom?
Eis a resposta: tal qual o Anjo Exterminador do Livro do Êxodo, na mente de boa parte dos teocratas, o Covid-19 é um sinal divino – uma arma do Cristo Vingador para punir os maus e preservar os eleitos. O que explica igualmente a insistência em se manter os templos religiosos abertos. “Morrerão pessoas? Sim! E daí? Essas não terão fé suficiente! Porventura, algum mal haveria de bater à tenda do servo de Deus?” É compreensível: como a esmagadora maioria das vítimas são pobres, negros, indígenas, velhos, enfim, tanto melhor. A riqueza material, em um cambalacho interpretativo das ideias de João Calvino (1509-1564), não é vista como sinal da Graça Divina? O joio é extirpado do trigo. O País é higienizado. É uma coisa só.
Para que perder tempo se preparando PARA o Juízo Final se é possível preparar O Juízo Final?
* O autor é mestre em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
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