Roney Marcos Pavani
Era noite quando Alexandre destrancou a porta que conduzia à câmara subterrânea. Ela se abriu com um rangido alto. Do interior exalava mofo e velhice. Como carregasse uma lanterna, pode contemplar dezenas de estantes de madeira, abarrotadas de pergaminhos, códices e mapas, além de instrumentos de ciência, como esquadros e compassos. Havia teias de aranha e pilhas de poeira por toda a parte, a confundirem-se com as sombras bruxuleantes projetadas por todo o aposento. Diversas escrivaninhas, sobre as quais manuscritos deixados incompletos há muito tempo. Frascos de tinta e borrões por sobre pedaços apodrecidos de papel. Um olhar mais atento denunciava também algumas iluminuras. Silêncio.
Tratava-se de uma visão impressionante, sem dúvida. Mas, após um momento de hesitação, Alexandre cruzou os umbrais da porta com passos firmes. Em absoluto, não eram livros que lhe interessavam, ainda que estes fossem os mais raros que pudesse encontrar. Esteve na companhia de livros desde que era um aprendiz de escriba. Lia e escrevia textos como um urso que sente o cheiro do sangue da caça. Amava as letras e lhes fazia guerra. Dia e noite. Página por página dos tomos de gramática, retórica e lógica; música, geometria e astronomia; poesia e história.
Com vida tão ascética, não era de se estranhar que vivesse só. E foi graças à solidão que concluiu que o Espelho dos Mil Sábios – um artefato de enorme poder, capaz de revelar o passado e o futuro – não era uma lenda.
Não foram poucos os mestres que o desencorajaram, que o negligenciaram, que ignoraram seus estudos e o acusaram de loucura. Todos tolos. Todos mortos. Foi pensando nisso, ao passar por livros de anatomia, que já atingira a metade do aposento de teto alto e abobadado. E foi dali que viu, no extremo oposto da sala, uma estrutura circular, do tamanho de um homem, coberta inteiramente por um véu. A luz da lanterna revelou um tom arroxeado. Alexandre suava.
Aproximou-se. Pôs-se a contemplar o pano à sua frente – perceptivelmente o único objeto limpo do lugar. Um tecido simples, de linho, roxo (como já havia notado), mas pontilhado com incontáveis marcas brancas. Havia também, postos de alto a baixo, alguns dizeres com caracteres arcanos, que ele pode decifrar com facilidade: “uma vez que o tenha, não lhe pode ser tirado”. Sorriu um sorriso zombeteiro, e sussurrou: “o conhecimento”. Quantas vezes já não lera citações semelhantes? Não restava nenhuma dúvida, o Espelho dos Mil Sábios abrigava-se ali, diante dele, e ele o havia encontrado. Todo o conhecimento humano e aquilo que dá existência a todas as coisas ao seu alcance. Só era preciso desnudá-lo.
Repousou sua lanterna no chão frio de pedra. O barulho ecoou, rasgando o silêncio por alguns instantes. Perto dele mapas do mundo conhecido, e de mundos desconhecidos, mas não lhes deu atenção. Pôs as mãos sobre o tecido e o puxou, não de modo reverente, mas com força. Tudo estava consumado. E ele olhou para si mesmo.
Estava em seu escritório, e era jovem. Viu o afinco em estudar e aprender com voracidade, mas também os mestres que desobedeceu e as amizades que nunca quis fazer. E como a lenda do Espelho havia se tornado uma obsessão. Era ele mesmo, ambicioso, com sede de saber, cuja impetuosidade da juventude fora gradativamente suplantada pela resolução da maturidade. Viu-se a rir na imagem, e sem saber por quê, fez o mesmo.
Várias horas se passaram, muitas imagens e memórias se sucederam, e a luz da lanterna já estava fraca.
Aproximou-se do espelho. Já podia sentir o cheiro do aço que o emoldurava. Assim, mais de perto, olhando fixamente, viu algo novo. Eram visões de um passado recente, das conclusões as quais havia chegado no último ano: a localização da câmara, a forma de abri-la de a hora exata de o fazer. Também viu as pessoas que enganou, os guardas que subornou e o comerciante que envenenou. Não sentiu remorso.
Viu a si mesmo destrancando a porta, e o rangido exato que fizera. Estantes, pergaminhos, mofo e pó. A caminhada até o véu arroxeado. A leitura das inscrições. A revelação. E, novamente, olhou para si mesmo no espelho, estava em seu escritório, e era jovem…
E Alexandre gritou de horror em meio à escuridão.
Desde então, a lenda do Espelho dos Mil sábios passou a ser conhecida como a lenda do Espelho dos Mil e Um Sábios.
* O autor é mestre em História pela UFES e professor do IFES de Nova Venécia
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