Roney Marcos Pavani
O formalismo característico das decisões judiciais, aos olhos do cidadão comum, costuma ser irritante. Porém, às vezes chega a atingir o nível do cinismo. Até mesmo do grotesco. Explico: por 4 votos a 1, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) aprovou, no último dia 17, um recurso da Advocacia-Geral da União (AGU), que defendia o direito do Ministério da Defesa de promover atividades em alusão ao Golpe de 64. Todo mundo já conhece a paródia travestida de história: “no dia 31 de março daquele ano, as Forças Armadas, atendendo a um chamamento visceral do povo brasileiro, puseram seus tanques nas ruas e depuseram o asqueroso presidente João Goulart (1919-1976) – um claro instrumento do movimento comunista internacional, que maquiavelicamente almejava transformar o Brasil em uma república sindicalista. Uma Cuba de proporções continentais. Não foi um golpe. Foi uma REVOLUÇÃO (a própria Brigitte Bardot o reconheceu certa vez, e com efusividade)! Garantiu-se a normalidade democrática e, parafraseando D. Pedro I, o bem de todos e a felicidade geral da Nação”.
Desconfio que ouvir isso, sobretudo ao som do Hino Nacional, ainda pode produzir sentimentos orgásmicos em certas pessoas…
Seja como for, durante muitos anos, esse amontoado de palavras (chamá-lo de “versão” é uma impropriedade, como veremos adiante) somente circulara entre setores militares ou no submundo da extrema-direita brasileira.
Porém, com o advento das redes sociais, versões mais ou menos sofisticadas do conto de fadas (ou seria “de fardas”) ganharam notoriedade por meio de escritores embusteiros, como Olavo de Carvalho, ou de grupos pretensamente intelectuais que cresceram à sua sombra e que, por isso, devem-lhe lealdade canina. Refiro-me ao Instituto Borborema, ao Canal Terça Livre, à produtora audiovisual Brasil Paralelo, dentre outros.
As imprecisões históricas subjacentes a essa narrativa são infindáveis, motivo pelo qual não perderemos tempo discutindo-as. (Um dos meus professores sempre dizia que criticar alguém é conferir-lhe importância. Obviamente, não é esse o caso). Além disso, as universidades brasileiras, malgrado todos os recentes esforços para silenciá-las, estão repleta de autores – da História à Ciência Política – que, graças ao trabalho de uma vida inteira, trouxeram ótimas contribuições ao estudo do Golpe Militar e da Ditadura (1964-1985) que lhe sucedeu. O que vimos anteriormente não possui, sequer, coerência interna. E é isso o que pretendemos demonstrar.
Dizem que a omissão é mais perversa (já que mais eficiente) do que a mentira pura e simples. Pois bem, dois dias após a intervenção do general Olímpio Mourão Filho, em uma sessão conjunta (e sinistra) do Congresso Nacional, foi declarada a vacância da presidência da República. O Poder Judiciário, vejam só, calou-se. Ora, Jango, que naquele mesmo instante voava de Brasília para Porto Alegre, ainda estava em território nacional. Quebra nas regras do jogo. Golpe. Prossigo: se o cargo estivesse realmente vago, pela Constituição de 1946, caberia a chefia do Executivo ao presidente da Câmara dos Deputados – Ranieri Mazzilli (1910-1975), o que formalmente ocorreu.
No entanto, o poder decisório, de fato, não estava em Brasília, e sim no autoproclamado Comando Supremo da Revolução – um triunvirato militar, chefiado pelo general Artur da Costa e Silva (1899-1969). Foi ele, não o Parlamento, o responsável pelo primeiro dos muitos Atos Institucionais. Outra quebra. Outro golpe. Ato contínuo: mandatos foram cassados, direitos políticos foram suspensos, convocou-se uma eleição indireta (11 de abril) para a presidência. Dela saiu vencedor, quase como candidato único, o também general Humberto de Alencar Castello Branco (1897-1967). Enquanto isso, nas ruas, a violência policial ganhava novos ares.
Na escalada das omissões, Castello subiu ao poder já no dia 14 e prometeu eleições diretas para o mês de outubro de 1965. O pleito colocaria, frente a frente, os dois principais líderes populares do país: Juscelino Kubitschek (1902-1976), do PSD, e Carlos Lacerda (1914-1977), da UDN. Ótimo. Quer dizer que após uma intervenção “cirúrgica”, similar à deposição de Vargas, em 1946, haveria um presidente civil em janeiro de 1966? Errado. O que se seguiu foi o aumento das cassações e da repressão – prisão, tortura, morte; além de expurgos dentro das próprias Forças Armadas (o que mostra que não eram, em absoluto, um bloco homogêneo), e a prorrogação do mandato do general/presidente até março de 1967. Estava claro: não obstante as justificativas, o novo regime não era capaz de seguir as próprias regras que criara.
Nesse cenário de arbitrariedades, e como reação à vitória do PSD nas eleições para os governos dos estados, foi baixado o Ato Institucional n.º 2. Seu conteúdo extinguia os partidos políticos existentes, estabelecia eleições indiretas para a escolha do sucessor de Castello Branco, e permitia o fechamento do Congresso e a decretação sumária de Estado de Sítio. Entrementes, foram promulgadas uma nova Constituição (21/01/67) e uma nova Lei de Segurança Nacional (13/03/67). Quando o próximo general/presidente – o já citado Costa e Silva – finalmente assumiu o poder, em 15 de março, a faca e o queijo do aparato repressor estavam em suas mãos. O que fora apresentado como uma ação pontual dos militares, uma “Revolução Democrática”, revelava-se uma sombra crescente e monstruosa, sem previsão para terminar.
Nos anos que se seguiram (1968-1978), como é sabido, a Ditadura conheceu o seu período mais perverso. E aqui até mesmo os bolsonaristas se dividem. Alguns, como o próprio presidente, dirão que “foi necessário”; outros, como a já citada Brasil Paralelo, que os militares “enfiaram os pés pelas mãos”. Seja como for, é dessa época o famigerado Ato Institucional n.º 5. O instrumento de repressão mais brutal de toda a história republicana, que, miséria das misérias, voltou à cena política na forma de manifestações pró-Bolsonaro. Exigi-lo significa, naquela época e hoje, fechar o Congresso Nacional, cassar ministros do STF, dar plenos poderes ao presidente, etc. Mas, igualmente, suspender o Habeas Corpus, e prescrever tortura e Pena de Morte para crimes políticos. Ora, não sejamos ingênuos. Em um regime de exceção, crimes políticos e crimes comuns se confundem. Quer uma prova?
A Lei de Segurança Nacional (LSN) de 1969, ainda mais agressiva do que a de 67, possuía 107 artigos. O substantivo morte constava do texto nada menos que em 32 oportunidades! É compreensível: todo aquele que não é espelho das minhas convicções é um inimigo interno. E todo inimigo, interno ou externo, merece morrer.
Em outras palavras, defender o AI-5 ou celebrar o 31 de março é prestar culto ao arbítrio. À morte.
No entanto, voltemos ao presente. Em sua defesa, a AGU argumenta: “o que a presente demanda procura fazer é negar a discussão sobre qualquer perspectiva da história do Brasil, o que seria um contrassenso em ambientes democráticos, visto que o Estado democrático de Direito (artigo 1º, caput, Constituição da República) pressupõe o pluralismo de ideais e projetos”. Parece uma piada de mal gosto, mas não. É apenas a Advocacia-Geral da União do Governo Bolsonaro em ação. Sofistas! Contrassenso é invocar o Estado Democrático de Direito para defender, como se diz, um “ideal” ou “projeto” que implicaria, ao fim e ao cabo, na destruição desse mesmo Estado. Por essa lógica tosca, um indivíduo tem o direito de defender as ideias que quiser, inclusive a ideia que outras pessoas não devam ter direitos. Uma maneira rebuscada de impor a vitória do mais forte, simples assim.
E, por fim: “Querer que não haja a efeméride para o dia 31 de março de 1964, representa impor somente um tipo de projeto para a sociedade brasileira, sem possibilitar a discussão das visões dos fatos do passado — ainda que para a sua refutação”. Ridículo! Em primeiro lugar, como já mencionado, existem na Academia várias visões para o Golpe, não uma só. Por exemplo, Carlos Fico, Élio Gaspari, Jorge Ferreira, Ângela de Castro, Marcos Napolitano, Daniel Aarão Reis Filho, cada qual à sua maneira, e sob perspectivas distintas, analisam as condições que permitiram a eclosão do movimento golpista. O papel de Jango e das esquerdas, tão demonizadas pelos governistas, em cada um desses autores é completamente diferente. Da mesma forma, a importância das elites, da sociedade civil e dos próprios militares. Há discussão e debate, como nunca houve durante a Ditadura. Mas não é isso o que quer a AGU ou os incontáveis militares presentes no governo. Querem é ter o direito de dizer que tudo aquilo não foi um golpe. Que foi um movimento legítimo, dentro das regras.
Mutatis mutandis, é dar razão aos nazistas julgados em Nuremberg (1946), sob o argumento de que “só estavam cumprindo ordens”.
Volto a dizer: por não apresentarem um mínimo de coerência, os defensores do Golpe não possuem uma “visão” dos fatos do passado. Quando muito uma visão de si mesmos, de seu pretenso heroísmo na luta contra o comunismo demoníaco. Um sonho. Um delírio.
Não obstante, é ainda mais espantosa a decisão do TRF-5: o texto não “ofende os postulados do Estado democrático de Direito nem os valores constitucionais da separação dos Poderes ou da liberdade, de modo a ensejar a interferência do Judiciário em sede de ação popular”.
57 anos depois, o Poder Judiciário, vejam só, (novamente) calou-se.
Confesso: exigir conhecimento histórico elementar de certos setores da elite brasileira, a despeito de serem letrados, é como pregar no deserto. Todavia, garantir ao governo o direito de comemorar o 31 de março de maneira legítima, não só é uma irresponsabilidade. É uma desfaçatez. É cuspir no rosto daqueles que lutaram para que esse mesmo regime democrático pudesse existir. É ser conivente com aqueles que advogam pela destruição das instituições, pelo excludente de ilicitude, entre outros absurdos. Como constam na LSN de 1969.
Não por coincidência, as mesmíssimas pessoas que celebram esse tipo de memória contribuíram (e ainda contribuem) para que o mês de março de 2021 fosse o mais mortífero da nossa história. Sim, o dia 31 encerra o mês em que a pandemia do COVID-19 atingiu, no Brasil, a marca assustadora de 300.000 óbitos. O número de mortos diários é igualmente expressivo, e cruzou a marca dos 3.500.
O Sr. Presidente da República, cuja visão de mundo foi moldada pela supracitada Lei de Segurança Nacional, disse, ainda em 1999, algo muito oportuno de se lembrar. Para o Brasil melhorar, e se tivesse a chance, faria “o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil (…). Se vai [sic] morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”
Por negligência, imprudência ou imperícia, já conseguiu 10 vezes mais do que o vaticinado.
Comemoremos, portanto.
Viva o 31 de março.
Viva o horror.
* O autor é mestre em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
** OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
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