Camilo Maia Moraes
Filhos frequentemente demandam benevolência dos pais, seja em razão de sua insipiência, de sua imaturidade, seja por conta da noção que se tem de que crescimento e aprendizado são conquistas que se adquirem muitas vezes em meio ao próprio erro, em meio à falha.
De tempos em tempos, contudo, o dever de correção se impõe e então os pais se dispõem com determinação à tarefa que lhes compete. E quando agem com sabedoria, colocam a advertência antes da censura: se não ocorrer isto também não vai acontecer aquilo; ou vai acontecer aquilo outro.
Muitas vezes, tendo em conta todos os momentos de benevolência já vividos, ou mesmo pela rebeldia inerente à condição de infante, os filhos folgam e não cumprem conforme o determinado, atraindo assim a inevitável consequência: “não vai” ou “não vai e ponto final”.
Quem é pai também já foi filho e não é difícil lembrar a dureza deste básico aprendizado: é de pequeno que se aprende, ou pelo menos que se deveria aprender, que liberdade pressupõe responsabilidade.
Ampliando-se os horizontes da reflexão, não é difícil também notar que a humanidade por séculos e séculos não vem sendo responsável como se espera que ela seja.
É certo que se trata de criança já crescida, que já evoluiu um tanto. O uso da força, que no começo da caminhada era a regra geral, hoje já não é mais. Barbaridades mais remotas como as das crucificações (notadamente a de Jesus Cristo) e das execuções nos circos romanos, e barbaridades mais recentes, como as das cruzadas; a escravidão; as sessões oficiais de enforcamento e decapitação em praça pública então vigentes na Inglaterra e na França, por exemplo; ou barbaridades como aquelas do holocausto, que Spielberg tão bem retratou em “A Lista de Schindler”, são “artes” que a humanidade de hoje espera ter ficado em seu passado e que não se repitam no futuro, apesar de todas as recaídas que ocorrem com quem se encontra em progresso permanente (embora muitos ainda achem que estamos degenerando).
Apesar de estarmos, regra geral, caminhando no sentido de não mais nos comportarmos como bestas, nossa irresponsabilidade, mormente nossa irresponsabilidade social, talhada na desigualdade que ainda impera no mundo moderno (onde de um lado é carnaval e de outro é fome total / onde ostentação e miséria convivem “naturalmente”), evidencia o quanto ainda há por caminhar, por aprender, por crescer coletivamente.
De tempos em tempos, e das mais variadas formas, somos chamados, como crianças, a pensarmos sobre crescer; e desta vez estamos sendo forçados a ficar em casa, com tempo para pensar, já que nosso atarefado cotidiano não vinha permitindo reflexão.
O que todos queríamos nesta Páscoa era justamente estarmos de preferência em família, celebrando a vida, a liberdade, mas a vida parece estar tentando nos lembrar daquela lição básica que se deveria aprender de pequeno – liberdade pressupõe responsabilidade.
Em um ano de pandemia ainda não aprendemos a usar máscara corretamente, algo simples, mas que exige certa disciplina com a qual não estamos acostumados, principalmente nós brasileiros, que damos jeitinho em tudo. Como haveria de ser diferente com a máscara?
Então ela vai ao bolso, ela vai pendurada na orelha, ela vai amarrotada no pescoço, ou esticada no queixo, ou nem vai. A mão também segue sendo lavada de qualquer jeito, ou até não sendo lavada. E a gente segue se aglomerando como é de nossa cultura calorosa, de estarmos reunidos como nos convém.
Daí os números explodem, vem um lockdown, a gente se revolta, critica as autoridades públicas, critica o presidente da república, critica o governador do estado, critica o prefeito municipal, e clamamos até a Deus pelo porquê para pelo menos entendermos as coisas… E sem nada podermos fazer, esperamos o fim do lockdown para sairmos à rua… talvez de máscara no queixo.
Mesmo com mortes e mortes, mesmo passando os últimos meses na situação em que nos encontramos, continuamos irresponsáveis ante o flagelo que nos consome. E qual crianças, mesmo não fazendo nossa parte, queremos nossa liberdade irrestrita, queremos nosso ovo de Páscoa para comê-lo inteiro e depois lamber os dedos, tudo como estamos acostumados a fazer.
Não são todos. Há muita gente que leva a sério. Mas também aprendemos ainda pequenos que “os justos pagam pelos pecadores” (muito embora seja difícil acreditar em algum de nós 100% “justo” durante os últimos 12 meses em relação a todos os cuidados cabíveis, o tempo todo). Mas a questão é que quarentena que dá em Chico verdadeiramente dá em Francisco. Na pandemia somos todos iguais, justos ou pecadores. Tudo bem, uns mais iguais que os outros, quando se pode ir ao Einstein ou ao Sírio Libanês. Mas, regra geral, todos iguais.
No Brasil aprendemos logo cedo essas duras lições de que liberdade pressupõe responsabilidade, de que justos pagam por pecadores. Mas por aqui também aprendemos ainda na infância conceitos sublimes e inspiradores, como o de que o tempo de Páscoa significa tempo de renascimento, isso independentemente de credo ou até mesmo de descrença. Independentemente de qualquer coisa, Páscoa é renascimento.
Que nesta Páscoa – que coincidentemente precede a mitigação do lockdown capixaba, momento em que ainda nos encontramos impossibilitados de nos abraçarmos, beijarmos, de nos aglomerarmos em família, privados (não sem razão) da nossa costumeira liberdade – possamos todos nós pensarmos um pouco em renascer.
Ideal seria pensar em renascer já amanhã sem todo esse nosso ódio moderno, essa nossa intolerância diária, sem nosso egoísmo, mesmo sabendo que esse renascimento não é fácil. Mas se pelo menos conseguirmos pensar em renascer na segunda-feira, dia 5, todos usando corretamente nossas máscaras no rosto (não no bolso, amarrotada no pescoço, esticada no queixo, pendurada na orelha), se pudermos pensar em renascer já amanhã com a devida atenção à higiene das mãos, com o compromisso de não nos aglomerarmos neste momento, com o dever de guardarmos distância de quem vem atrás e de quem segue à frente, quem sabe não estaremos demonstrando também a responsabilidade que nos fará merecedores de um futuro próximo um pouco mais livre, mais leve, sem lockdown?
Boa Páscoa!
* O autor é servidor público e colaborador do Jornal Correio9
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