Elias de Lemos (Correio9)
Ao ouvir sobre a história da menina de dez anos, que sofreu abusos, foi ameaçada e estuprada, desde os seis anos de idade, e que ficou grávida já causa repugnância e revolta. Ao adicionar que tudo isso foi praticado pelo próprio tio da criança vem a nauseante sensação de perplexidade. Tanto é que o assunto teve repercussão mundial e chamou a atenção até do papa Francisco. No Brasil, o vice-presidente Hamiltom Mourão repudiou o fato. A ministra da Mulher e Direitos Humanos, Damares Alves, também se pronunciou.
No entanto, esta história chama a atenção por outro viés: o da politização social vigente no Brasil a partir de 2018, como resultado de uma doutrinação ideológica que tirou o senso de Justiça (com J maiúsculo) de muitos brasileiros. Parece que perdemos o sentido de vida em sociedade.
Primeiro, um grupo de pessoas que se intitulam cristãs, protestou em frente à casa da criança, em São Mateus. Um pré-candidato (que não diz a qual cargo pretende concorrer) invadiu a casa da menina e foi posto para fora aos empurrões.
Depois, ao chegar ao centro médico, onde foi realizar a interrupção da gravidez – autorizada pela Justiça, os “cristãos” estavam na porta da unidade médica. Lá, a menina e a avó que a acompanha, foram hostilizadas e xingadas. Em coro, os manifestantes chamavam a garota de assassina! Assassina!
Mas, não bastou só isso! Os “cristãos”, que, também, definem a conduta pessoal como: “gente de bem”, estão espalhados pelo Brasil, e opinam sobre tudo na internet. Falam o que pensam sem pestanejar. E foi nas redes sociais que eles despejaram a maior quantidade de suas sentenças. O debate acalorado,teve defesa e condenação! Não em relação à violência cometida contra a garota. A sequência de violência e tortura de todos os tipos, que ela passou dos seis aos dez anos foi esquecida. O estuprador ficou limitado à preocupação da polícia. É como se ele não tivesse feito nada!
Os que condenaram o aborto empunharam a Bíblia, ignorando completamente a situação da menina e da avó. Um fato curioso é que os contrários eram formados por evangélicos e católicos, os quais estão, quase sempre, em lados opostos.
Uma professora da educação básica, da rede estadual, foi demitida pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo após comentar na internet que a menina de 10 anos, estuprada pelo tio, “tinha vida sexual há quatro anos” e que o caso não se trata de “violência”.
“Ela já tinha vida sexual há quatro anos com esse homem. Deve ter sido bem paga”, disse Eliana Nuci de Oliveira. Em outro comentário, ela afirmou: “Criança se defende chorando para a mãe. Esta menina nunca chorou porquê?”.
Outro indivíduo escreveu “eu defendo esse tio, a gente tem que fazer o que dá prazer; eu faço tudo o que eu quero!”.
Carolline Lemos escreveu: “Na minha opinião, era para ela ter o filho… esperar ela ficar de maior e o rapaz deveria ter um compromisso na justiça de casar com a menina já de maior, porque, querendo ou não, eles já formaram uma família e em hipótese alguma, Deus gosta de ver uma família desfeita, por mais que seja assim, um caso meio diferente. Pelo bem da criança, ela deveria viver com o pai e a mãe, conforme Deus ordenou. Nossas opiniões não valem nada diante das ordens divinas. Ordem de Deus não é para se discutir!”, este comentário, assim como os demais foram reproduzidos, na íntegra, tais quais foram publicados.
Houve, também, opiniões sobre como tratar o problema depois do ocorrido; Joselaine Souza apresentou duas opções: “Não temos pena de morte e nem prisão perpétua no Brasil e sabemos de antemão que ele não irá cumprir a totalidade da pena, aí o cara sai e vira evangélico estuprador, e depois pastor estuprador, igualzinho o Pádua, se a sociedade der uma ‘camaçada de pau’, é crime, se a sociedade o matar é crime, então a prisão perpétua deveria ser implantada no Brasil, mas até isso acontecer ele já estará livre, fazendo outras vítimas, mas a mão do Universo e da lei do retorno poderiam dar uma “mãozinha” ou melhor, dar um “empurrãozinho” para ele sofrer um acidente, tipo cair de um prédio mega alto e morrer ou ser atropelado por um caminhão e morrer!”
Karen Furuzawa respondeu à Joselaine: “Sou a favor do aborto. Mas tenho uma opinião mais radical que a sua em relação à pena para o criminoso. Estuprador não é o tipo de criminoso recuperável, bastante tempo não basta, quando sair ele irá estuprar de novo, e de novo, e de novo! Estuprador a meu ver ou é pena de morte, ou prisão perpétua. Contudo não vivo numa utopia e sei que no nosso país a pena de morte é perigosa por conta do sistema corrupto e racista, o risco de morte de inocentes seria absurdo. Então no nosso contexto, na minha visão, o ideal seria prisão perpétua”.
Vera Duque tem o problema como resolvido: “Um estuprador na cadeia, chega a pedir pra morrer, então, basta manter preso. A população carcerária se encarrega. Sou a favor do aborto! Uma mulher que não quer gerar, não quer um filho, seja lá pelas razões que forem, se não tiver atendimento da saúde pública, vai tentar de outras formas, muitas vezes deixando outros filhos desamparados, morrendo em procedimentos desesperados, ou com profissionais não habilitados em locais sem a menor condição de higiene. Cabe à mulher resolver, é o corpo dela! Não é a igreja, o homem, o governo quem decide sobre seu útero, sobre seu corpo, cabe a ela decidir! No estupro, é inadmissível que se sugira à mulher manter uma gravidez proveniente de um estupro, é desumano!
Há centenas de exemplos, mas, nenhum se compara ao do Tiago Henrique Alves de Andrade. Ele apresentou uma solução engenhosa, que resolveria todo o problema: “Seria mais justo a vítima ter a criança e um auxílio generoso e vitalício do governo, confisca a criança e cuida com todos os privilégios, e pena de morte ao acusado”.
Ewerton Lima respondeu ao Tiago: “O justo é dar liberdade de escolha para a mulher, e nesse caso, que essa criança de apenas dez anos de idade, que há quatro anos era abusada pelo tio, escolheu o aborto por direito e sua decisão deve ser respeitada”.
Porém, na varredura que fiz, não encontrei nenhum comentário sobre como combater a ocorrência, recorrente, de abusos infantis. Algo comum e que é de responsabilidade de todos.
A criança, que foi chamada de assassina aos dez anos, depois de ter passado por tanta coisa, morreu. Ela morreu antes do feto! O que ela procurava naquele centro não era interromper a sua gravidez, resultado de uma concepção horrenda!
O que aquela menina de dez anos procurava era uma oportunidade de uma nova criança nascer. Ela já carrega traumas demais! Ela quer renascer! E ela, a avó, a Justiça e o médico, que realizou o procedimento, entenderam que ela merecia essa chance.
Há um ditado popular que diz: “A vida possui razões que a nossa razão desconhece”.
* O autor é economista, professor, jornalista, escritor e editor-chefe do Correio9
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