* Camilo Maia Moraes
Via de regra lacrar significa fechar, de modo que “lacração” poderia simplesmente sugerir a ideia de fechamento.
No Brasil contemporâneo, todavia, o termo “lacração” se transformou mais recentemente em expressão pejorativa em voga para se desmerecer manifestações de pensamento que, regra geral, venham a se alinhar com o que se considera ser “politicamente correto”.
Nessa linha de conveniência, para muitos brasileiros a quem o “politicamente correto” acabe incomodando em determinado contexto, mandar um “lacração!” virou remédio, antídoto, solução para alívio de (in) consciência.
No último dia 16, o Governo do Estado do Espírito Santo anunciou, à guisa de “quarentena”, uma série de medidas restritivas de circulação de pessoas a fim de se conter a contaminação da população pelo novo coronavírus, levando-se para tanto em conta que a taxa de ocupação dos hospitais passou de 90% – indicando seu colapso. E no último dia 25, o governador Renato Casagrande surpreendeu com o recrudescimento e a extensão das medidas pelo menos para até o fim da Páscoa, proibindo inclusive os serviços de transporte público intermunicipal e interestadual.
Para muita gente o governador “lacrou” e por isso passou a ser chamado de nomes cujos mais bonitos pareciam ser comunista e até mesmo nazista.
No Brasil contemporâneo espanta como o errado vira certo e o certo vira errado.
Impressiona como o politicamente correto (tudo aquilo que se fundamente no máximo respeito ao próximo) passa a ser atacado com o rótulo infantil da “lacração”, assim como impressiona como uma medida inexorável, inadiável, irremediável, ainda que amarga, passa a ser apedrejada como se fosse um crime hediondo, uma heresia.
Não é o Espírito Santo. Ou não é só o Espírito Santo. O Brasil todo parece um carro trafegando em boa velocidade contra um muro logo ali e o que alguns estão a pedir é que o motorista não seja um “marica” e mantenha a marcha, sem talvez considerarem que manter a marcha poderia significar, em 15 ou 20 dias, talvez até menos, o leitor levar a própria mãe já com dificuldade de respiração ao Hospital São Marcos, em Nova Venécia, e não poder sequer entrar porque não haveria espaço para ela morrer lá dentro. Ou conseguir a última vaga do São Marcos para a mãe, mas não conseguir um leito no Hospital Roberto Silvares ou no Meridional, em São Mateus, para o pai ou o irmão, ou para o filho, já que as novas variantes do vírus não estão distinguindo idade. E isso não é drama. Não é “mimimi” (um “primo primeiro” da lacração – mas isso fica para outro dia). É um cenário possível, previsível, um cenário ao qual o negacionismo infelizmente nos trouxe. E como disse subliminarmente nesta semana o nosso próprio vice-presidente Hamilton Mourão, o negacionismo já ultrapassou todos os seus limites no Brasil.
Ninguém ignora que as medidas do Governo do Estado são drásticas para muitos concidadãos. Tendo por propósito evitar um colapso geral, essas medidas acabam por efetivar vários e lamentáveis dramas individuais, já que entra em caos a vida de quem é impedido de trabalhar, de auferir renda. E por conta disso é compreensível e triste o desespero de quem é obrigado a se imolar, a se sacrificar para “redimir” a todos nós.
Um governador de Estado sem dúvida não ignora tudo isso. Mas quando a urgência não permite outra opção, a única opção que se mostre possível só pode ser a correta.
Não há outra medida a ser tomada imediatamente para se evitar um trágico colapso geral que não passe por restringir a circulação de pessoas e, para tanto, a restrição de atividades sociais, profissionais, comerciais, etc. E isso não é invenção doméstica do Palácio Anchieta. É internacional.
Também não é difícil compreender que quando se classifica determinada atividade como “essencial” para se ressalvar sua manutenção não se está com isso afirmando que as outras atividades não excepcionadas não seriam “essenciais”. Ninguém ignora que tudo é essencial. “Essencial” numa linguagem de pandemia é apenas um termo convencional para se referir aos serviços gerais que precisam ser mantidos para a gente continuar vivendo, como o fornecimento de comida por supermercados e de medicamento pelas farmácias, por exemplo. Mas até o “essencial” virou polêmica, virou argumento “político” num país dividido por quem deveria uni-lo.
Por conta de tudo isso, o capixaba pode discutir à vontade o que o governador Renato Casagrande fez ou o que ele deveria e deixou de fazer desde março passado; pode discutir seus erros e acertos; pode e deve cobrá-lo e questioná-lo sobre tudo, sobre hospitais de campanha, sobre o que quiser, mas atacá-lo no cenário atual em razão de sua “lacração”, de sua “quarentena”, de seu “lockdown”, pouco importa o nome que se queira dar, parece ser um equívoco, pois ele pode ter seus erros e seus defeitos, mas sem dúvida não é um negacionista ou um irresponsável.
Para além de um mero equívoco, em muitos casos pode evidenciar aberrante incoerência, pois muitas das execrações dirigidas a Casagrande vêm de gente que não diz um “a” sobre a conduta de um presidente da República que em março passado chamou a covid de gripezinha (só nessa sexta-feira, 26, foram 3.600 mortes – novo recorde); que indagado sobre as mortes num passado recente disse que não era coveiro; que não usa máscara (sem aspas), não dando o mínimo exemplo de um líder; que estimula aglomerações; que disse que não compraria vacina da China para imunizar sua população; que só passou a pensar em vacinas quando se viu pressionado pelas iniciativas do Governo do Estado de São Paulo; que brinca com vacinas e jacarés; que gastou milhões na aquisição de medicamento sabidamente ineficaz e que preconiza, ou preconizava até dia desses, o uso de medicamento sabidamente ineficaz; que trocou um ministro de Saúde técnico por outro ministro de Saúde técnico para logo depois trocar o segundo por um terceiro ministro de Saúde leigo, para muito tempo depois trocar o leigo por outro médico, mas sem dar qualquer explicação aceitável a respeito, tudo isso durante a pior crise sanitária mundial. E isso é fatal!
* O autor é servidor público e colaborador do Jornal Correio9
** OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
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