OPINIÃO
* Jaime Bernardo Neto
A Ucrânia está novamente sob os holofotes do mundo. Pela segunda vez em menos de um decênio, o território do Estado da Ucrânia está sendo invadido por tropas da Rússia (em 2014 o exército russo havia invadido e anexado a província da Crimeia). De fato, não são dois eventos independentes. São antes dois momentos de um mesmo fenômeno: a tentativa ucraniana de adentrar na União Europeia e, por corolário, se afastar da Rússia, seu algoz histórico. E sobre esse fato não têm faltado análises parciais e insensíveis de diversos sujeitos no Brasil e na América Latina. E aqui, devo enfatizar, essas narrativas em que transbordam falta de empatia e desinformação, buscando “passar pano” para essa ação violenta e injustificável da Rússia de Putin, têm vindo de todos os espectros políticos.
Não obstante, aquelas que vêm da esquerda têm me incomodado muito mais, por razões óbvias. Afinal, não me causa nenhum espanto que a direita mais liberal apoie os Estados Unidos e qualquer coisa que eles venham a fazer, de forma quase incondicional, haja vista a imagem romantizada dos EUA nutrida por boa parte daqueles que se identificam com essa corrente, segundo a qual esse país seria o bastião da “liberdade” (que, sob este prisma, seria o neoliberalismo que eles tanto defendem). Tampouco me causa espanto que a extrema direita bolsonarista sinta alguma simpatia por Putin, uma vez que o governante russo é o que essa corrente política sempre idolatrou: homem, branco, homofóbico, autocrata (antidemocrático), que se diz cristão, mas – contrariando as premissas mais básicas da doutrina cristã – tem a violência praticamente como parte de seu ethos (basta lembrar que aqueles que se opõem a ele são sistematicamente presos ou “desaparecem”…). Todavia, é bastante contraditório que aqueles dizem se situar a esquerda do espectro político e que costumam ecoar aos sete cantos que (por uma questão axiológica) se opõem a toda forma de opressão estejam fazendo apologias à invasão russa à Ucrânia. Trata-se de uma postura que além de demasiado contraditória soa negacionista, conspiratória, quase na mesma vibe do bolsonarismo, porém com teor de esquerda.
A tese de muitos colegas de esquerda é que a culpa é, de alguma forma, dos Estados Unidos e da OTAN (ao buscar a integração da Ucrânia à essa aliança militar) e não da Rússia, o que chega a me lembrar dos casos recorrentes aqui no país em que, no auge do nosso machismo e misoginia, a vítima de estupro é apontada como culpada por usar “roupas provocantes”. E além de usarem essa retórica enlatada, muitos setores da esquerda brasileira têm sido extremamente desastrados em suas exposições, com análises que tratam tudo com se fosse um mero jogo de tabuleiro (raciocínio muito parecido com o raciocínio dos donos do poder que eles tanto dizem criticar…), quase sempre fazendo parecer que demonstrar empatia para com essas pessoas na Ucrânia é um problema, quando o problema de fato é a falta de empatia com pessoas que vivem em territórios igualmente sujeitos à violência imperialista, porém praticada pelos Estados Unidos, como têm sido os casos recentes do Iraque, Afeganistão, Somália etc.
Creio que esse prisma seja corolário de uma visão maniqueísta sobre geopolítica construída a partir da América Latina, sobretudo nos tempos da Guerra Fria. Aqui, sem dúvidas, ao longo de todo o século XX e ainda agora no início do século XXI, os EUA têm sido nossos algozes. E isso, de certa forma, fez com que boa parte dos militantes de esquerda no Brasil sentisse certa simpatia pela União Soviética e pelo bloco socialista, uma vez que era à URSS e à nossa vizinha Cuba (que recebia vastos recursos da União Soviétia e funcionava geopoliticamente como seu entreposto latino-americano) que os movimentos latino-americanos de resistência às ditaduras civil-militares implantadas e/ou apoiadas pelos EUA (como a brasileira, por exemplo) buscavam amparo. E é fácil entender o porquê de agirem assim, já que desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em termos de poder bélico/militar, EUA e URSS (e atualmente a Rússia, sua principal herdeira) estão em um patamar que era (e ainda é) só seu e não tem equivalência em nenhum outro país. Por isso, aqueles que entravam em litígio com um das duas superpotências militares rapidamente chagavam a conclusão que precisavam do apoio da outra superpotência nessa querela para terem de fato alguma chance de êxito. Essa realidade corroborou a construção de uma leitura bastante maniqueísta da geopolítica a partir das esquerdas latino-americanas, que demonizavam os EUA e santificavam a União Soviética e o regime cubano.
Todavia, maniqueísmo não combina com ciência, tampouco com criticidade. Por isso esse prisma é claramente parcial e acrítico, uma vez que essa mesma esquerda ignora que a Rússia – seja durante o Império Czarista, durante a existência da União Soviética ou agora no pós-Guerra Fria – historicamente teve para com o leste europeu o mesmo tipo de relação que os EUA sempre tiveram com a América Latina. Essa sempre foi sua área de influência, seu “quintal” geopolítico, onde sempre dominou e subjugou muitos outros povos, por vezes resultando em genocídios na casa de milhões de pessoas (como foi o caso da Ucrânia nos anos de 1930, no episódio conhecido como “Holodomor”).
No caso específico da Ucrânia, ela já estava subjugada pelo Império Russo desde antes do século XX e passou a fazer parte da União Soviética desde a consolidação da Revolução Bolchevique de 1917. A princípio, a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – em detrimento de simplesmente continuar chamando o país de “Rússia” – foi uma forma encontrada pelos bolcheviques (partido que liderou a revolução “socialista” de 1917) para aglutinar forças com intuito de consolidar a revolução, uma típica atitude pragmática e inteligente de Lenin. Todavia, com a morte de Lenin e ascensão de Stalin ao comando da União Soviética, as coisas mudaram. Formalmente a federação se manteve, mas as repúblicas perderam muito de sua autonomia e de sua voz e, não obstante o alto escalão do governo fosse de fato multinacional, a repressão centralizadora russo-soviética se manteve sempre implacável. A possibilidade de uma autonomia real, de alguma soberania de fato, veio apenas com a crise do Estado Soviético e seu enfraquecimento a partir do fim dos anos de 1980, culminando com sua dissolução e a independência, no início dos anos de 1990, das repúblicas que outrora a compunham, dentre elas a Ucrânia.
Apesar do reconhecimento da independência das diversas ex-repúblicas soviéticas, a Rússia buscou preservar sua influência sobre as mesmas nos anos seguintes por meio da criação da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), uma espécie de bloco de cooperação econômica entre essas ex-repúblicas soviéticas, cujas economias tinham de fato um considerável grau de complementaridade em função dos cerca de setenta anos de livre intercâmbio entre elas quando compunham a URSS, cuja perda traria – e de fato trouxe – uma grande entropia às suas economias. Mas para além da dimensão econômica, a Rússia não demorou a utilizar as mesmas estratégias imperialistas que seus outrora arqui-inimigos EUA sempre usaram.
Inicialmente a Rússia esteve ocupada demais olhando para si mesma e tentando resolver seus graves problemas econômicos domésticos, fruto do fim do estatismo soviético e da adoção de uma economia de mercado. Demoraria ao menos um decênio para que essas aspectos internos estivessem mais ou menos sob controle. Foi então a partir dos anos 2000 que a Rússia voltou a ser a potência agressiva e intervencionista/imperialista que sempre foi. E a primeira região do globo para a qual o Estado da Rússia voltou a olhar com atenção foi exatamente seu tradicional “quintal geopolítico”: o leste europeu; e particularmente as ex-repúblicas soviéticas, como a Ucrânia.
A preocupação geopolítica da Rússa, nesse contexto, é de fácil compreensão, pois os anos 2000 marcam o ingresso de boa parte dos países do leste Europeu (que outrora compunham o bloco “socialista” liderado pela URSS) e de três ex-repúblicas soviéticas na União Europeia. Em 2004 ingressam no bloco Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Eslovênia, Hungria, além das três ex-repúblicas soviéticas mencionadas (Estônia, Letônia e Lituânia). Três anos depois, em 2007, Romênia e Bulgária também entram no bloco europeu. Em menos de quatro anos, portanto, a Rússia havia perdido cerca de metade de seu “quintal” geopolítico e, reativamente, começa a se esforçar – pelos meios sórdidos já descritos – para impedir novas “perdas” dentro daquela região do globo que historicamente havia sido sua área imediata de influência.
Ao contrário do que as teorias da conspiração de esquerda têm vociferado por aí recentemente, não era preciso influência dos EUA e ações da CIA para que a maioria dos ucranianos ansiasse pelo ingresso de seu país na União Europeia. Bastava-lhes olhar para seus vizinhos do leste europeu recém-ingressados no bloco. Quanto mais os benefícios socioeconômicos do ingresso na União Europeia se evidenciavam nos referidos países, maior era o anseio da opinião pública ucraniana pelo ingresso também da Ucrânia no bloco europeu. E é exatamente depois do ingresso dos mencionados países no bloco europeu nos anos 2000 que a intervenção russa começa a se explicitar na Ucrânia. Um dos primeiros episódios que evidenciam isso foi a tentativa de assassinato por envenenamento do então presidente ucraniano Viktor Yushchenko, em 2009.
No ano seguinte Viktor Ianukovytch é eleito presidente da Ucrânia e, apesar de seu histórico pró-Rússia, o então candidato reafirma em sua campanha suas intenções de atender aos anseios da maior parte dos ucranianos e buscar a adesão à União Europeia, já que sem isso provavelmente não se elegeria. Todavia, em 2013 fica claro que isso não passava de demagogia e Ianukovytch comete um grande estelionato eleitoral: aos quarenta e cinco do segundo tempo (como nós brasileiros costumamos dizer, como nossas metáforas futebolísticas) o então presidente rejeita o ingresso na União Europeia e assina uma série de tratados que reaproximam a Ucrânia da Rússia.
A reação pública a esse estelionato foi contundente, dando início ao episódio que ficou conhecido como Euromaidan. Mais e mais cidadãos ucranianos passaram a se concentrar na Praça Maidan a partir de novembro de 2013, saindo de poucas dezenas nos primeiros dias e chegando rapidamente ao patamar de milhares de pessoas. É provável que os EUA tenham colaborado de alguma forma com esse movimento? Sim, muito provável. Isso o torna menos legítimo? Não. Os grupos políticos anti-Rússia da Ucrânia provavelmente recorreram ao apoio dos EUA tais quais os grupos políticos que lutaram e ainda lutam contra o imperialismo estadunidense na América Latina costumavam recorrer à URSS (e hoje em dia à Rússia) ou a Cuba para fazer frente à superpotência ianque.
Também é importante ressaltar que não foi preciso nenhuma grande atuação dos Estados Unidos e da CIA (o serviço de inteligência dos EUA) para derrubar Ianukovytch. Politicamente ele havia cavado sua própria cova quando cometeu o referido estelionato eleitoral e, posteriormente, jogou a última pá de cal sobre seu cadáver político quando recorreu à repressão policial e das forças armadas para tentar dissipar as manifestações do Euromaidan, matando mais de cem civis entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2014, conforme relatórios de organizações como a Human Rights Watch. Cada manifestante morto fazia outras centenas (quiçá milhares) se juntarem ao movimento. O Euromaidan, portanto, crescia como uma hidra (criatura da mitologia grega que possuía várias cabeças que, quando decepadas, originavam duas novas no lugar daquela que fora perdida) e após um ultimato dos manifestantes, temendo que as forças armadas não os fossem conseguir conter por muito mais tempo, o então presidente fugiu da Ucrânia e foi viver exilado na Rússia, país ao qual fora subserviente e cujos interesses ele havia colocado acima dos da própria Ucrânia.
Deposto o governante pró-Rússia Ianukovytch, a reação de Putin foi rápida. No mesmo ano de 2014 o exército russo invade a anexa a Crimeia, situado no Sudeste Ucraniano, e passa a fomentar com muito mais ímpeto os movimentos separatistas nas províncias do leste ucraniano, onde uma parte da população se identifica etnicamente como russa, o que explica também o crescimento dos episódios de intolerância para com esse mesmos segmento da população, que seria um das supostas causas, no discurso russo, que legitimariam sua invasão à Ucrânia (como se um autocrata e ex-assassino da KGB como Putin tivesse alguma preocupação humanitária…). Coincidência ou não, a Criméia e o leste Ucraniano são também regiões de grande importância logística para o transporte do gás natural russo (um de seus principais produtos de exportação) rumo à Europa Ocidental, seu principal comprador, por isso estão sempre sob os holofotes geopolíticos.
A movimentação pró-União Europeia se manteve no governo seguinte de Petro Porochenko e no atual mandato de Volodymyr Zelenskvy. Ante as crescentes tensões com a Rússia, sobretudo após a invasão e anexação da Criméia, a opção por tentar ingressar na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) também se mostra bastante compreensível e óbvia, não sendo necessária nenhuma grande movimentação da CIA e dos EUA para que os gestores e estrategistas militares ucranianos rapidamente tomassem essa possibilidade como a melhor maneira de se proteger de agressões vindas da Rússia, da mesma forma que muitos grupos políticos latino-americanos se aproximavam da URSS como estratégia de resistência contra os Estados Unidos.
O que houve de fato, nos últimos anos, foi uma coincidência entre os interesses geopolíticos dos EUA e OTAN na região (cujo foco, claramente, é a contenção da influência russa), da União Europeia (interessada em incluir no bloco um país com uma população de mais de quarenta milhões de pessoas e que é um dos maiores produtores de grãos do planeta) e da grande maioria da opinião pública e dos gestores ucranianos. Afinal, o que vocês acham que os ucranianos prefeririam? A democracia liberal e as melhorias socioeconômicas decorrentes do ingresso na União Europeia ou viver sob o eterno porrete da Rússia, em um país governado por um fantoche de Putin? Levar a sério essa teoria da conspiração de que tudo foi uma manobra dos EUA reproduzida nos dogmas de grande parte da esquerda brasileira e latino-americana sobre o caso chega a ser ofensivo à inteligência e mesmo aos sentimentos de qualquer ucraniano. Assim como são fantasiosas e ofensivas à nossa inteligência as supostas justificativas da invasão russa, como a já mencionada suposta preocupação com a população de origem e língua russa que vive na Ucrânia ou o suposto “dever histórico” de conter a extrema direita e dos grupos neonazistas quer cresceram por lá nos últimos anos (nós temos passado por algo parecido desde que elegemos Bolsonaro e nem por isso ficamos sob os radares russos…) ou a suposta ameaça representada pelo ingresso da Ucrânia na OTAN (como se alguém fosse atacar o país com maior arsenal nuclear do mundo…).
Por tudo isso, no fim das contas, esses setores de esquerda que acusam a mídia de estar sendo parcial em sua abordagem sobre a invasão do exército russo à Ucrânia reverberam uma retórica que além de ser tão parcial quanto, se mostra cruel, desumana e ofensiva com as pessoas que vivem na Ucrânia, as quais não tem nenhuma relação com as intrigas políticas entre a Rússia e os Estados Unidos, tampouco são culpadas pela negligência com que a mídia trata as intervenções dos EUA em outras partes do mundo. São pessoas que, como a grande maioria das outras, querem basicamente o que todos querem: ter meios de prover suas famílias, ter onde morar/viver, estarem próximos àqueles que amam, no seu lugar/território. Foram esses anseios que os levaram a se inclinar ao ingresso na União Europeia, como teriam nos levado também se estivéssemos no lugar deles. E esses mesmos anseios estão sendo destruídos a cada dia em que a ação russa prossegue, deixando milhares de mortos, famílias destruídas, muitas tendo que deixar sua terra Natal, a única parte do mundo que até hoje puderam chamar de lar.
Opor-se à guerra é algo que não demanda erudição ou formação acadêmica. Basta empatia, sensibilidade. Afinal, se ainda é difícil saber que será o vencedor geopolítico desse episódio (Rússia ou EUA/Ocidente), é fácil saber quem são os perdedores: todas as pessoas que vivem (ou vivam…) na Ucrânia. A realidade não é um jogo de tabuleiro. É intolerável o que a Rússia tem feito e é igualmente intolerável que a esquerda brasileira e latino-americana, incluindo governantes que se dizem de esquerda e se apresentam como verdadeiros “guerreiros na luta contra o imperialismo”, tenham se posicionado a favor da Rússia. Uma prática realmente libertadora, como já nos ensinou Paulo Freire, demanda que nos oponhamos a toda forma de opressão, a tudo o que impede os sujeitos de “ser mais”, como ele costumava dizer. Não pode haver seletividade quanto a isso.
Em geopolítica, portanto, é preciso condenar e se opor ao imperialismo russo com a mesma veemência com que condenamos e nos opomos ao imperialismo estadunidense ou europeu. A mídia não está errada em mostrar o sofrimento das pessoas que vivem na Ucrânia. É o que ela sempre devia fazer em episódios como esse. O erro está em não mostrar o mesmo sofrimento de outros povos, sobretudo aqueles que são vítimas do imperialismo dos EUA. Então vamos criticá-la pelo que ela faz errado, não por seus acertos, sobretudo porque a forma como isso tem sido feito por alguns setores da esquerda tem sido de extrema insensibilidade, quase tão boçal quanto o bolsonarismo. A única diferença é que os apoiadores do atual presidente, quando não têm mais argumentos, bravejam “E o Lula!?”, enquanto esses setores da esquerda, quando se trata da invasão russa à Ucrânia, bravejam: “E os Estados Unidos!?”
* O autor é Doutor em Geografia, professor do IFES (campus Nova Venécia) e colaborador do Correio9
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