OPINIÃO
* Jaime Bernardo Neto
Não sou um fanático por futebol. Difiro do estereótipo do brasileiro “padrão” quanto a isso. Mas gosto de assistir a este esporte em determinadas situações. Gosto de futebol como gosto de café: apenas do tipo exportação. Não acho prazeroso assistir, por exemplo, a um jogo entre Botafogo e Cabofriense pelo campeonato carioca, disputado em um estádio vazio num fim de noite de quarta-feira que faz até os narradores e comentaristas terem dificuldades em disfarçar seu tédio. Mas boa parte dos brasileiros (quiçá a maioria…) assistiria a essa partida de bom grado (os botafoguenses para torcer pelo seu time, os demais para torcer pela derrota do botafogo para depois “zoarem” seus amigos torcedores do alvinegro carioca). Mas adoro assistir a competições de alto nível, como uma Copa do Mundo, Mundial de Clubes, Eurocopa e, às vezes, a Copa América. Mas, quanto a este último torneio, especificamente, não o acompanhei este ano em virtude de ser contra sua realização por razões óbvias pra quem tem um mínimo de bom senso e respeito às centenas de milhares de famílias que enterraram seus entes queridos em função da pandemia, cujos efeitos trágicos foram catalisados por um mar de irresponsabilidade, insensibilidade e falta de caráter e de humanidade de muitas autoridades brasileiras (se disponibilizar a sediar uma Copa América no Brasil em meio a essa situação caótica e dramática é, precisamente, um exemplo claro de tudo isso).
Mas, não bastassem todas essas circunstâncias trágicas, adversas, fruto não apenas da pandemia do novo coronavirus em si, mas também (e sobretudo) da conduta dolosa das nossas autoridades (o Executivo Federal, especialmente), essa semana ainda tivemos que ouvir o “craque” da Seleção Brasileira de futebol expor sua visão estúpida sobre o que seria patriotismo, praticamente reduzindo-o ao ato de torcer pela seleção nacional de futebol.
Que lástima! Esse mesmo craque que não abriu a boca para falar dos mais de meio milhão de mortos no último um ano e meio, bem como da conduta lastimável das autoridades brasileiras nesse contexto de pandemia, sobretudo por parte do Governo Federal, que na estrutura centralizadora do Estado Brasileiro, é quem concentra a maior parte do orçamento público do país e, portanto, é quem tem maior autonomia política e financeira para atuar em situações como essa que estamos a passar em função da pandemia.
O “craque” em questão não disse uma palavra sobre essa conduta irresponsável e criminosa do Estado Brasileiro e, particularmente, aos atuais ocupantes do Executivo Federal. O que uma figura púbica como ele nos ofereceu foi seu silêncio sobre um governo que no ano passado se recusou a comprar vacinas a preços bem mais baixos que os atuais, as quais poderiam ter salvado milhares de vidas (uma vez que poderíamos ter imunizado os idosos mais cedo), e agora ainda enfrenta acusações sobre compras de imunizantes, que além de tardias, apresentam indícios de terem sido superfaturadas; seu silêncio sobre um Presidente da República que estimulou o não cumprimento de medidas sanitárias recomendadas por todos órgãos nacionais e internacionais referências em ciência e saúde pública, as quais poderiam ter diminuído o ímpeto da propagação do vírus e salvo muitas vidas; seu silêncio sobre a lastimável postura da autoridade máxima do país, que dissemina o obscurantismo de suas crenças lunáticas e sociopatas em detrimento da ciência e dos valore democráticos; seu silêncio sobre a desumanidade de um eterno aspirante a ditador que acha graça em imitar, em tom jocoso, a asfixia decorrente da infecção por Covid-19 que fez mais de meio milhão de brasileiros sucumbiram à doença, muitos dos quais tiveram que ser enterrados por seus entes queridos sem ao menos ter o rito de despedida que mereciam, sendo enterrados em valas coletivas, com caixão fechado e sem velório. Silêncio total do “craque” quanto a isso.
Essa mesma figura, agora, resolve nos ensinar o que é patriotismo: na versão “neymarsiana”, ser patriota não é almejar o melhor para o seu país e o seu povo, é torcer pela seleção de futebol. Afinal, se ele compartilhasse também da primeira definição de patriotismo, teria oferecido aos brasileiros algo mais do que seu lastimável silêncio em meio a esse genocídio e sofrimento de seu povo. Para aqueles que acreditam em Karma, acho que é fácil entender porque ele nunca foi (e provavelmente nunca será) agraciado com o prêmio de melhor jogador do mundo pela Fifa, e nunca foi e nunca será um líder de verdade, dentro ou fora do campo. O que suas atitudes demonstraram até o momento foi uma postura egoísta e individualista em todos os espaços, tanto nos gramados quanto na vida pública. E quem se comporta assim, não pode e não deve ser uma liderança – e sabemos bem disso, na prática, em virtude do presidente que temos.
Muito diferente do “craque” brasileiro, dentro e fora dos gramados, são figuras como, por exemplo, Cristiano Ronaldo e Lionel Messi. Dentro dos gramados, eles além de serem os melhores que o mundo viu nos últimos decênios, são realmente líderes. Messi é aquele tipo de líder que fala pouco, mas quando fala todos ouvem e se sentem motivados, engajados. Sua postura me lembra a descrição que o antropólogo Pierre Clastres faz do papel dos “chefes” das etnias indígenas que ele estudou aqui na América do Sul: sua posição é fruto do prestígio, de sua capacidade de ouvir e se fazer ouvir. Cristiano também é um grande líder, com seu estilo mais aguerrido de ser. Quantas vezes já não vimos esse cidadão português, após ter sido substituído ou não ter sido escalado por lesões ou algo assim, fazer questão de estar lá no gramado, junto ao banco de reservas e à sua comissão técnica, gritando palavras de incentivo e organização aos seus colegas em campo, conversando com seus patrícios (como eles costumam dizer em Portugal) um a um antes de uma disputa de pênaltis em uma competição importante, ou se emprenhando em consolá-los quando a derrota foi inevitável.
Dentro de campo, com a bola dos pés (ou buscando-a nos pés do adversário) a situação é semelhante. É difícil descrever Messi. A leveza e extrema habilidade dão um ar de arte, de magia. E Cristiano não é apenas o cara que faz gols, é também o cara que marca, que dá o sangue dentro de campo (como se costuma dizer). Um jogador completo. Nosso craque, por sua vez, é extremamente habilidoso, mas é também um “pipoqueiro” nato, a ponto de às vezes me deixar com vergonha quando estou a assistir a jogos em que essas recorrentes simulações de falta beiram o ridículo, além de já ter deixado claro em várias ocasiões, em seus clubes e também na seleção, que não é tão bom sem a bola nos pés e que não possui muito espírito de equipe.
Fora de campo, as comparações com Cristiano Ronaldo e Messi evidenciam ainda mais a pequenez de Neymar. Enquanto o “craque” brasileiro combina seu silêncio sobre a morte e sofrimento de seu povo com sua badalada rotina de playboy hedonista, que vive o paraíso em sua bolha, o craque argentino é embaixador do Unicef, a Fundação das Nações Unidas para Infância e Juventude, e além do aporte financeiro, doa sua imagem e seu tempo em prol dessa causa. E não é algo meramente formal. Ele realmente atua nesse sentido, inclusive dentro do futebol. Os fanáticos por futebol certamente se lembram do cancelamento de um amistoso entre as seleções de futebol da Argentina e Israel em 2018. A causa? Messi se recusou a jogar. O motivo? A violência do Estado de Israel contra a população palestina na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, onde milhares de crianças são mortas todos os anos em função das ações militares diretas de Israel (sob justificativa de combater o “terrorismo” de grupos como o Hamas…) e também das ações indiretas, já que o isolamento ao qual submetem a população árabe desses territórios os priva de insumos básicos, como, por exemplo, comida e medicamentos, indispensáveis à saúde de todos, e também, portanto, às crianças. O craque argentino elegantemente se recusou a jogar sob alegação que isso seria incompatível com seus valores e sua posição de embaixador do Unicef.
Mais distante no tempo e com menor repercussão na mídia foi a recusa de Cristiano Ronaldo em vestir a camisa da seleção israelense de futebol após um jogo entre as seleções de Portugal e Israel pelas Eliminatórias da Copa do Mundo na Europa em 2013 (sim, a seleção israelense participa dos torneios europeus em vez dos torneios do Oriente Médio, em função da belicosidade de suas relações com todos os países vizinhos). Ele simplesmente deixou o campo após o término do jogo (com vitória de Portugal) e se recusou a fazer a tradicional troca de camisas com o jogador israelense que o abordou com esse fim após o apito final. Um colega de seleção, que supostamente teria ouvido o diálogo, publicou algum tempo depois em uma rede social que o craque português teria dito de forma seca e ríspida que “não veste a camisa de assassinos”. Pouco depois, descobriu-se que ele já havia doado milhões de Euros a projetos sociais voltados às crianças palestinas que sofrem com as ações israelenses na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Também se descobriu, pelos relatos de seus colegas, que nos vestiários ele entregou sua camisa ao jogador israelense, deixando claro que se importava com a pessoa daquele jogador, mas que não faria nenhum tipo de publicidade favorável ao Estado de Israel, como seria o caso das fotografias usando a camisa do adversário se ele a tivesse aceito dentro de campo, naquele momento.
Pois é, leitor. Seja a julgar pelo que ocorre dentro de campo quanto fora dela, quando comparamos esses craques com o nosso suposto “craque” Neymar dá até tristeza, não dá? Mas para nosso alento, entretanto, temos um cara chamado Richarlison na seleção. Nosso conterrâneo é, inquestionavelmente, um grande jogador em campo. E com todo talento e raça que ele demonstra durante os jogos, pode ser difícil acreditar que ultimamente ele tenha sido ainda maior e mais importante fora dos gramados do que ele o é em suas participações mais decisivas na seleção.
Por que afirmo isso? Porque, até o momento, ele de fato tem se mostrado alguém que não vive em uma bolha, que demonstra empatia e preocupação com o próximo e usa sua posição de pessoa pública para atuar em prol dessa causa. Ele tem sido alguém em quem as crianças podem se espelhar não apenas em seu sonho de um dia serem estrelas do futebol, mas em que tipo de pessoa, de ser humano, de cidadão brasileiro virão a ser no futuro. Ele tem sido algo que o suposto “craque” Neymar não tem sido: um patriota de verdade, alguém que se preocupa com seu povo. Seja ante o apagão de Rondônia, a crise do oxigênio em Manaus, ou a constante postura negacionista e irresponsável do Governo Federal, Richarlison não tem se omitido. De fato, tanto em suas falas como em suas práticas, ele tem se transformado em uma espécie de embaixador do futebol pela ciência e pela educação, como nós aqui de Nova Venécia sabemos bem.
Mais do que doar dinheiro a essas causas, o que por si só já é algo de extrema importância, Richarlison tem doado sua imagem em prol da dignidade de seus compatriotas. Mesmo sabendo que ao assumir uma posição clara quanto a tópicos como esses ele correria o risco de perder uma parte de seus fãs (composta por eventuais simpatizantes desse negacionismo obscurantista que cresceu nos últimos anos) e, consequentemente, do poder de venda da sua imagem, ele não hesitou em se pronunciar, em se posicionar, provavelmente sob o raciocínio – coerente e humano – de que a eventual perda de popularidade e/ou de contratos de publicidade é algo pouco relevante ante as centenas de milhares de mortos e todo o sofrimento das famílias que enterraram seus entes queridos e/ou que estão enfrentando a penúria – como há muito não se via no país – em função da recessão econômica que tem marcado esse contexto de pandemia, a qual também se agravou e se prolongou em função da má condução da crise pelo Governo Federal, já que resulta de um impedimento ao retorno pleno da dinâmica econômica do país, o qual somente ocorrerá de fato com a vacinação em massa e respeito aos protocolos sanitários, medidas que vêm sendo implantadas “a passos de formiga e sem vontade”, como diria a conhecida música de Lulu Santos.
Ouso dizer que não jogar a Copa América deve ter sido algo que passou pela cabeça de Richarlison, mas era uma opção que, se levada a cabo apenas por ele ou por uma parcela pequena de seus colegas convocados, poderia significar o fim de suas carreiras na seleção, haja visto o conhecido caráter pessoal, patrimonialista e antidemocrático com que instituições como a CBF são geridas. Mas não tenho dúvidas de que ele tenha colocado isso em pauta com o restante do elenco, mas creio que a proposta não recebeu adesão suficiente por parte dos demais jogadores para ser efetivada sem colocar em risco o futuro deles na seleção e na vida profissional, o que significaria o próprio declínio de sua visibilidade e, consequentemente, do poder que suas palavras e atitudes tendem a ter. Por isso, considerando a importância dessas palavras e atitudes, atualmente, fico feliz, mesmo sendo contrário à realização do referido torneio nessas circunstâncias, pela decisão que ele tomou,
O suposto “craque” que leva vida sua vida playboy alheia ao sofrimento do povo é bom em campo, sem dúvidas (não obstante seja inegavelmente pipoqueiro, como já dito). Mas não há nada relevante nele além das quatro linhas que seja digna de uma imagem de ídolo, de herói, de patriota, de exemplo para tantas crianças e jovens.
Por isso, se à semelhança do bordão de que “cada povo tem o governo que merece” seja válido dizer que “cada povo tem o craque que merece”, espero que escolhamos quem defenda a educação e a vida, quem tenha a sensibilidade e empatia necessárias para ser um exemplo para seu povo. Por isso, espero que Richarlison, não Neymar, seja o nosso craque.
* O autor é professor de Geografia no campus do IFES em Nova Venécia
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