Elias de Lemos (Correio9)
Dois vídeos mostrando abusos e violências policiais chocaram o Brasil esta semana. No primeiro um policial aborda dois jovens em Salvador. O caso foi filmado por um morador, sem que os policiais percebessem. A atitude do policial leva a confundi-lo com um marginal. No vídeo, o militar é visto dando chutes e socos em um rapaz, um adolescente de 16 anos. Qual crime ele cometeu? O jovem é negro e usa cabelo black power.
A truculência do militar é assustadora. O PM retira a boina do jovem e a joga no chão. O rapaz diz que é trabalhador, mas, o PM não quer saber, afinal, o jovem é negro usa um estilo de cabelo que o PM reprova e é favelado. Então, ele retruca: “Você para mim é ladrão, você é vagabundo. Olha essa desgraça desse cabelo aqui. Tire aí vá, essa desgraça desse cabelo aqui. Você é o quê? Você é trabalhador, viado? É?”, grita o policial, no momento em que puxa a boina.
O segundo vídeo foi gravado na cidade de São José do Rio Preto, no interior do Estado de São Paulo. Na ocorrência, o policial militar aborda uma mulher grávida de cinco meses. Ele a joga no chão e põe um dos joelhos sobre a barriga da mulher e dá um tapa forte no rosto dela.
Em outro momento, o PM segura o pescoço da mulher e a sufoca. Muitas pessoas assistiam e gravavam a cena. Elas alertam ao policial sobre a condição da mulher, mas, do mesmo modo que o PM baiano, ele não interrompe as agressões, afinal, ela é pobre e favelada.
São dois casos, mas, não estão isolados. A violência policial, que sempre existiu, agora está generalizada. A polícia brasileira encarnou de corpo e alma a violência defendida pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), um ferrenho defensor da tortura e condenador dos direitos humanos.
No Estado do Rio de Janeiro, a polícia nunca matou tanta gente. Lá, a população negra, pobre e favelada está vivendo clima de terror com a política de violência do governador Wilson Witzel, do (PSC) Partido Social Cristão. Isso mesmo, “cristão”!
Nas favelas cariocas, onde as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) foram extintas, as mortes provocadas por policiais saltaram de 22, em 2018, para 48, em 2019. No mesmo período as apreensões de drogas despencaram de 215 para 96.
Em apenas duas favelas foram registradas mais da metade das mortes pela polícia. Na Vila Kennedy, foram 18 casos no primeiro semestre de 2019. No mesmo período do ano anterior, a favela – batizada de “laboratório da intervenção federal” – registrou apenas uma ocorrência. A UPP da Vila Kennedy encerrou suas atividades em junho de 2018.
Já no conjunto Fallet, Fogueteiro e Coroa, a quantidade de casos pulou de um no primeiro semestre de 2018 para 13 no mesmo período de 2019. A UPP que englobava as três favelas foi extinta em dezembro de 2018. A única favela que ficou na contramão foi a Cidade de Deus, que registrou queda de mortes decorrente de intervenção policial no período: foram 11 casos em 2018 em 2019.
Com a extinção das UPPs, não há mais um efetivo fixo responsável pela ocupação e patrulhamento das favelas, como havia antes. A política adotada pelo governador carioca não é de ocupação, é de invasão e extermínio. Assim, de tempos em tempos a polícia invade as favelas partindo do pressuposto de que todos os que vivem ali são marginais. Só quem já viu isso sabe o que é uma incursão policial em uma favela. Só quem vive sabe o terror que é.
No entanto, a violência policial no Brasil não se resume à hecatombe praticada pela polícia carioca, nem aos atos de desumanidade dos policiais paulista e baiano, que foram expostos em vídeo. O desprezo pela vida e dignidade humanas. O desrespeito com cidadãos, trabalhadores comuns, por parte da polícia se tornou regra.
Os vídeos – que circularam esta semana nas redes sociais – são apenas o começo de muitos que ainda vão aparecer.
Questionado, o comando da PM baiana fez questão de dizer que aquele policial não representa a corporação, que a instituição não é isso. Será? A PM paulista fez declaração semelhante. Será?
Na prática, e com a experiência que tive nos 20 anos que morei no Rio, não vejo a polícia como a imprensa tradicional, a corporação e o Estado veem. A polícia carioca não é o que dizem. Para saber o que ela de fato é, é preciso ouvir quem mora na favela, quem já foi abordado na rua e já passou pela tortura física e psicológica que é estar nas mãos de um policial carioca.
Eu mesmo já passei por isso, e não foi só quando estive na favela.
A frase: “Bandido bom é bandido morto”, é deliberadamente pronunciada pelo mandatário da nação. Pois bem, está frase demonstra, perfeitamente, como estão deturpados os valores da sociedade brasileira.
Mais triste ainda é saber que essa linha de pensamento é compartilhada por grande parte de nossa sociedade, e isso só faz aumentar, ainda mais, os nossos enormes índices de violência. Pensamentos deste tipo advêm da ilusão de que violência se combate com violência. Apesar de parecer utópica, a frase “violência só gera violência” é, a cada dia que se passa, ainda mais verdadeira.
A violência não está na sociedade, está dentro de cada um. Diariamente recebo vídeos de todo tipo de violência: mortes, pessoas agonizando, sessões de espancamento e tortura. Quem nunca leu no celular: “CPF cancelado com sucesso?”. Como qualificar quem se diverte com esse tipo de coisa?
Mudar esse pensamento é tarefa de todos que desejam harmonia social e Justiça, pois, de acordo com a criminologia, qualquer um de nós está sujeito a praticar crimes, já que, para cometê-los, não é necessário pré-disposição e sim motivação, especialmente para o homicídio.
No entanto, quem nunca viveu o desprazer que é ser humilhado e agredido por algum policial, quem se julga gente de bem acredita que está imune. Ledo engano! Não está.
* O autor é economista, professor, jornalista, escritor e editor-chefe do Correio9
Comente este post