Bruno Gaburro (Correio9)
No último sábado (12), a turma de Geografia Humana e Cultural do Brasil, do curso de Licenciatura em Geografia do Ifes de Nova Venécia, foi à cidade de São Mateus para uma viagem de campo. Os acadêmicos foram acompanhados pelo coordenador do curso, professor Jaime Bernardo Neto.
A disciplina objetiva a aproximação dos estudantes com um passado muito escondido, uma história que muitas vezes não foi contada, que sempre foi vista como algo proibido: a escravidão dos povos da África. Durante os meses anteriores à visita, os alunos vinham tomando conhecimento da história escravocrata no Brasil, história essa, que é tida como certo “tabu” nas escolas de ensino básico.
Como os alunos estão fazendo um curso de licenciatura, e estão se preparando para serem professores, este lado da história é parte importante para a formação. Foi pensando nisso que o professor decidiu levar seus alunos para conhecer um dos únicos Museus do Brasil que conta as realidades vividas por escravos na região Norte do Espírito Santo, e, também, em todo o Brasil, além de apresentar aspectos culturais muito específicos dos povos africanos.
A visita começou pelo Porto de São Mateus, local muito importante para entender a dinâmica socioeconômica da região, já que foi um dos lugares mais importantes na colonização do Norte capixaba.
Durante todos os anos do regime servil, muitos negros foram contrabandeados de suas terras e trazidos para o Brasil, servindo como mão-de-obra para os senhores. O Porto de São Mateus é um dos locais onde mais se desembarcava os navios negreiros. Porém, há um fato muito interessante nessa história.
A Inglaterra, durante muitos anos foi a maior interessada na questão da escravidão, mas com o passar dos tempos, e principalmente por conta da Revolução Industrial, da qual foi protagonista, os interesses mudaram. Assim, o tráfico de africanos começou a ser visto com maus olhos pela grande potência do séc. XIV. Afinal, escravo não recebe salário, e sem salários, não poderiam comprar os produtos, agora, produzidos em larga escala em terras inglesas. A partir disso, medidas começaram a ser implantadas em todo o mundo para dar fim à escravidão.
Portugal, que era um grande negociador de escravos não aceitou as medidas impostas pela grande potência da época, e assim, foi travada uma disputa de anos, para conseguir a abolição. Depois que o tráfico foi institucionalmente proibido pela Inglaterra, ela começa a fiscalizar de forma mais rígida qualquer navio que se aproximasse da costa brasileira, muitas vezes, quando suspeitavam que se tratava de um navio negreiro, sem piedade alguma, alvejavam as embarcações portuguesas e assim, afundavam-na com toda “carga”.
Para desviar a atenção e conseguir passar pela frota inglesa, traficantes começaram a usar uma rota menos conhecida, um porto um pouco mais escondido. Um dos locais escolhidos, foi justamente o Porto de São Mateus. Por ali, desembarcaram milhares de negros, trazidos contra sua vontade de sua terra natal, para sofrer em uma vida dura de trabalho sem recompensa e regido à tortura.
Visita ao passado
A herança desse momento histórico é bastante nítida nos dias de hoje no município de São Mateus. Uma destas características é o fato de a população ser de maioria negra. Muitos registros da época foram guardados como itens da história de um povo esquecido, e assim, o Museu Intercontinental África Brasil começou a tomar forma. O Museu se situa a poucos metros do atracadouro do porto. A arquitetura do local é bem marcante, e leva o visitante diretamente àquele tempo, trazendo uma real sensação de estar em um local muito importante na história brasileira.
O guia da visita foi o fundador e mantenedor do Museu, Maciel de Aguiar, renomado escritor e historiador e símbolo de resistência cultural. Ao entrar no Museu, o primeiro olhar é de encanto. Nas paredes do primeiro piso estão diversas fotografias, que registram episódios culturais muito importantes na cultura afro-brasileira.
Já no segundo piso, a coisa começa a ficar mais “carregada”, objetos utilizados na tortura de escravos estão expostos, como por exemplo, cintas de castidade, que foram utilizadas na época em que a Lei do Ventre Livre foi assinada. A lei dizia que os filhos dos escravos nascidos a partir de setembro de 1871, seriam livres, porém, somente seriam libertados após a maioridade, enquanto isso, o dono dos escravos teria que alimentar esses “filhos livres”, além de não poderem ser comercializados no futuro, tornando um inconveniente para o senhor. Assim, objetos foram criados a fim de impedir a reprodução sexual.
A exposição tem dois tipos de cintas de castidade, a feminina, que devido ao material ferroso e às pequenas aberturas nas partes íntimas, tornavam o sexo impraticável, e também, a masculina, onde há uma estrutura protuberante, também ferrosa, na qual, o órgão sexual masculino era colocado, impedindo o ato sexual. Além desses, estão expostos outros objetos utilizados para tortura.
Uma das surpresas, do Museu, está guardada no terceiro piso, onde encontram-se diversas esculturas produzidas pelo escultor Jonas Conceição, com personagens que, de uma forma ou de outra, se tornaram heróis para esse povo. E cada escultura representa uma história, retratada por Maciel de Aguiar em sua série de livros, que enaltecem a cultura e a história esquecida pela grande nação brasileira.
O escritor parece ter “intimidade” com aqueles personagens: ele se aproxima de certa escultura e rapidamente, conta a história daquela figura especial. São histórias inspiradoras, que ajudam a entender a força da resistência carregada pelos negros até hoje. Seus antepassados diretos são ícones de força, luta e resistência.
Já são quarenta volumes escritos através da oralidade. Maciel, orientado pelo antropólogo Darcy Ribeiro e o romancista Jorge Amado, foi atrás de relatos onde poucos vão, foi nas comunidades mais esquecidas e afastadas, onde encontrou uma rica e valiosa fonte de informações para seus escritos, que contam de forma heroica acontecimentos que não são de conhecimento comum, já que muitas vezes são histórias que são passadas de geração em geração através de relatos falados. O Museu também resgata peças muito importantes da cultura africana como máscaras, peças de artesanato entre outras.
Fragilidades da resistência
Porém, a visita também mostrou fragilidades neste processo de resistência cultural. O Museu não recebe nenhuma ajuda financeira governamental, inclusive, muitas das peças que faziam parte do Museu, já não se encontram mais lá, e sim, em outras exposições, já que o África Brasil acabou sendo deixado de lado pelo poder público e por muitos anos, foi financiado pelo próprio fundador.
Outro fato intrigante é a repulsa do povo local ao Museu. Maciel conta que os pastores evangélicos da região não conhecem o conteúdo histórico, por isso, difamam o local propagando entendimentos enganosos, e isso se reflete nos fiéis, que rejeitam a ideia, por entenderem que é a “casa do demônio”.
O Porto de São Mateus é um lugar esquecido do município, o tráfico de drogas tomou conta do local, nem mesmo a polícia desce as ladeiras, e isso acabou afastando os visitantes, que temem pela insegurança. O Museu encontra-se com as paredes pichadas, janelas quebradas e diversas manifestações de reprovação, por parte da comunidade local. Até mesmo a fiação precisa ser trocada constantemente, já que é alvo de ladrões. Ao chegar ao terceiro piso, uma coisa chamou a atenção de todos: as janelas quebradas, não são trocadas, as pedras jogadas, não são retiradas, segundo Maciel, tudo isso faz parte do Museu, que desde a sua fundação, tem a natureza da “resistência”. Todo esse ódio que a população sente em relação ao Museu é um reflexo de toda a história que foi esquecida e menosprezada durante todos esses anos. E isso é somente um produto dessa relação, o que torna a visita ainda mais emocionante, pois, saber que, em uma cidade majoritariamente negra, a história do negro ser rejeitada, deixa bem claro o tipo de cultura que é vista como boa e cultuada: a do homem branco.
Hoje, por falta de um subsídio governamental, o Museu encontra-se fechado para visitas convencionais e gratuitas, porém, existe a possibilidade de agendamentos para grupos e escolas, com uma taxa de R$ 10, por pessoa, que são destinados às despesas de manutenção. Além disso, Maciel ainda disponibiliza exemplares de seus livros para venda no local, a grande maioria não ultrapassa o valor de R$ 20. Para entrar em contato com o historiador o telefone é: (27) 99988-1257, ou também, pelo e-mail museuafricabrasil@yahoo.com.br.
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