* Roney Marcos Pavani
A disputa eleitoral ao Palácio do Planalto teve dois importantes termômetros divulgados na última semana: as pesquisas Ipec e Datafolha, realizadas na modalidade presencial e publicadas na segunda-feira (15) e na quinta-feira (18), respectivamente. Estas apontam, como já dissemos em textos anteriores, a continuidade da polarização entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL).
Na pesquisa Ipec, Lula registrou 44% das intenções de voto contra 32% de Bolsonaro no 1º turno. Ciro Gomes (PDT) ficou com 6%, seguido de Simone Tebet (MDB), com 2%, e Vera Lúcia (PSTU), com 1%. Já o Datafolha registrou uma distância no 1º turno de 15 pontos entre Lula, com 47%, e Bolsonaro, que teve 32%. No levantamento anterior, essa distância era de 18 pontos. Ou seja, tudo dentro da margem de erro. Em seguida, aparecem Ciro Gomes, com 7%, Simone Tebet, com 2%, e Vera Lúcia, com 1%. Outros candidatos também não pontuaram. Para ambos os institutos, Lula vence Bolsonaro facilmente em um eventual segundo turno.
As pesquisas vêm na esteira do início de pagamentos de benefícios pelo governo federal, como o Auxílio Brasil de R$ 600 e os auxílios para taxistas e caminhoneiros. A campanha de Bolsonaro, contra todas as suas expectativas tacanhas, não viu o presidente deslanchar e ficar próximo a Lula em consequência direta do impacto dos benefícios. Sim, em países onde a reeleição existe institucionalmente, é esperado (embora se trate de um vício) que o candidato já no cargo utilize de todo o aparato governamental, desde multiplicação de obras, passando por tempo de televisão, até a distribuição de dinheiro, no intuito de obtê-la. No Brasil não é diferente.
Embora, de certa forma, trate-se de algo recente (a reeleição para cargos do Poder Executivo é uma invenção dos tempos de Fernando Henrique que, aliás, aproveitou o ensejo para se beneficiar dela), todos os presidentes assim o fizeram: além do próprio FHC (1998), Lula (2006) e Dilma Rousseff (2014). Michel Temer, embora presidente em 2018, não concorreu à reeleição. Preferiu apoiar o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, que, na ocasião, obteve pouco mais do que 1% dos votos. Excetuando-se esse caso, e, se graças aos poderes conferidos pelo cargo ou não, todos que se candidataram venceram, seja em primeiro turno (FHC), seja em segundo (Lula e Dilma).
Nesse sentido, é compreensível a perplexidade do atual presidente e de sua equipe. Nunca um pleiteante à reeleição fracassou. E mais, faltando cerca de 1 mês e meio para o pleito, nunca apresentou um percentual de intenção de votos tão baixo. O que está havendo? Por que os planos não funcionam? A despeito de todo o seu poder, que se manifesta no pagamento de auxílios aos mais pobres e a setores chaves da população, o retorno de seus investimentos financeiros, ou melhor, o aumento nas pesquisas simplesmente não aparece. Parêntese: Jair Bolsonaro, em toda a sua longeva e desprezível carreira como parlamentar, SEMPRE desdenhou de programas de distribuição de renda.
Certa vez, ainda no início de seu mandato, afirmou que: “filhos de beneficiários do Bolsa Família tinham menor desenvolvimento intelectual”. Já em 2015, ele foi filmado para um documentário e comentou o que considerava falta de planejamento familiar de beneficiários do programa: “O cara [sic] tem 3, 4, 5, 10 filhos e é problema do Estado. Ele já vai viver de Bolsa Família, não vai fazer nada. Não produz bens nem serviços, não colabora com o PIB, não produz nada”. A cena em questão não chegou a entrar no filme, mas foi divulgada em agosto de 2020, por Carlos Juliano Barros, diretor de “Entre os homens de bem”. Numa entrevista à Record News, em 2012, disse: “O Bolsa Família é uma mentira, você não consegue uma pessoa no Nordeste para trabalhar na sua casa. Porque se for trabalhar, perde o Bolsa Família”. Em 2011, quando buscava a Presidência da Câmara, o deputado defendeu o fim dos pagamentos, indicando que a manutenção do programa levaria a uma “ditadura do proletariado”. Já pré-candidato à Presidência da República, Bolsonaro visitou, em 2017, a Festa do Peão, em Barretos (SP), e disse que não seria “com caridade” que o Brasil sairia da situação crítica, referindo-se ao programa. “Quem quiser ampliação do programa, que vote em outro candidato”. Enfim, segundo um levantamento feito pelo UOL em 2019, exemplos como esses passam dos 40.
Via de regra, o chamado eleitorado “de direita” no Brasil (do tipo que votou em Fernando Collor, FHC, José Serra, Aécio Neves e ainda manifesta voto em Bolsonaro) é alguém, no mínimo, desconfiado (no máximo, tem pavor) de ações do governo voltadas à população mais pobre (a começar pelo Bolsa-Família) ou a minorias de um modo geral (tal qual a política de cotas). Podemos dividi-lo em dois grandes grupos: o primeiro, de linha mais intelectualizada (como era o PSDB antes de implodir, ou o PFL antes de mudar de nome, e ainda são os principais veículos de comunicação do país), traz o argumento de que tais ações são um desperdício de dinheiro público e que é preciso “manter as contas em ordem”, ou que “não são eficazes a longo prazo”, ou ainda que “viciam a população”, um “voto-de-cabresto versão 2.0” ou que “é preciso não dar o peixe, mas ensinar a pescá-lo”.
Questionável, é claro. Mas com um quê de racional. (Obviamente, depois que essa gente passou a ter acesso às ideias requentadas de Von Mises e Milton Friedman, pela boca de intelectualóides ditos liberais de YouTube e Facebook, nem tão racional assim. Afinal, pode haver coisa mais irracional que os tais anarco-capitalistas?)
Já os segundos, por sua vez, mais broncos e de viés autoritário, argumentam que não há argumentos. “Pobreza é algo que sempre existiu e que sempre existirá”. “O abismo entre ricos e pobres não é um problema, é um fato”.
“Uns nascem para tostão, outros para centavo”. Não pergunte por quê, as coisas são o que são. Logo, é uma grande perda de tempo cobrar do Estado o penoso dever de mudar a natureza. Ilustra bem essa questão um discurso proferido em 1966, pelo então candidato à presidência Gal. Costa e Silva (o segundo da Ditadura Militar e responsável pelo AI-5), para quem o seu ideal era “estabelecer uma nova filosofia nas relações entre patrões e empregados, abrindo caminho para se atingirem no Brasil as igualdades humanas que permitam aos ricos serem mais ricos e, graças a eles, os pobres se tornarem menos pobres”.
Diante dos últimos acontecimentos, com Bolsonaro (como é do seu feitio) rompendo todos os limites impostos pelas leis eleitorais, e enfiando dinheiro goela abaixo na “gentalha”, esses mesmos eleitores devem estar pasmados, quando não decepcionados com o seu mito. Como pode, um homem que sempre falou de forma aberta e autêntica tudo o que eles pensam às escondidas sobre a pobreza, ter se transformado em uma cria do sistema? Ou, na expressão que ganhou amplos holofotes há poucos dias, uma “tchutchuca do Centrão”? Será que a pose de homem piedoso e cristão (um disfarce útil, é claro) teria lhe subido à cabeça, a ponto de se preocupar com a miséria alheia?
Não. Para alívio de seus apoiadores, o presidente não mudou de ideia com relação aos mais vulneráveis. Ele ainda os considera “pobres coitados”, “ignorantes” e “sem cultura” e, exatamente por isso, crê que é possível comprá-los, aproveitando-se de seu estado de fragilidade (que, aliás, ele mesmo ajudou a criar com um governo catastrófico), manifesto em desemprego, falta de moradia e insegurança alimentar. Para se reeleger, é preciso deles, ainda que ele não os conheça. Também pudera: 30 anos vivendo em uma redoma de vidro no Parlamento (haja cartões corporativos!), mais 3 anos e meio perdidos entre Jet-Skis e motociatas, não há muito tempo para lidar com eles. E antes que me acusem de romântico, não espero que Bolsonaro (nem que nenhum outro político ou membro do Judiciário) se comporte como um homem do populacho. Ele não o é, nem o deve ser. Somente que procure, como é a sua obrigação constitucional, ser um homem a favor dessas pessoas (o seu salário e todos os benefícios que a ele competem, diga-se de passagem, vem também delas). No fim das contas, a visão que Bolsonaro tem do pobre é a mesma que se manifesta em seus ensaios teatralizados: refastelando-se em um prato de frango com farofa, usando relógios G-Shock nas transmissões ao vivo, e assinando decretos com canetas Bic. Para muitos, o cinismo não conhece limites. Ou seja, ser pobre é ser porco, rude, simplório. Portanto, facilmente manipulável.
Contudo, a coisa não é tão simples. A ralé brasileira não é uma turba irracional, movida por apetites incontroláveis. Não por acaso, Bolsonaro tem pouquíssimos eleitores entre aqueles que se consideram pretos (19%) e pardos (33%), ou que somente concluíram o ensino fundamental (24%), como afirmam os mesmos Datafolha e Ipec, exatamente os maiores beneficiários de suas políticas assistenciais. É como bem diz o sociólogo brasileiro Jessé Souza em sua obra A Elite do Atraso: se a única classe social com consciência de seus privilégios (e que, portanto, sempre luta para mantê-los) é a elite endinheirada, a classe mais racional é aquela formada pelos pobres. Ao contrário, por exemplo, da classe média, que pensa ser dona do próprio nariz, mas que vota mais pelo medo e pelo ressentimento, os pobres são resolutos, frios e calculistas. Eles sabem que estão longe das grandes decisões e dos debates políticos intermináveis, isto é, que estão fora do sistema. A discussão ideológica lhes escapa, e, por isso mesmo, pouco lhes interessa. Eles observam o cenário com atenção, e escolhem, entre as opções possíveis, quem lhes oferece a maior parte das sobras.
Nesse sentido, como votar em alguém que, ao longo de quase 1 mandato inteiro, minou seus direitos, reteve seus empregos, corroeu sua renda, obrigou-os a trabalhar em tempos pandêmicos, fez troça de seus mortos, retirou seus filhos das escolas, acostumou-os a comprar carcaça e pele de galinha no mercado, etc., para ganhar uns trocados pouco tempo antes da eleição?
Não é assim tão difícil entender, é?
* O autor é mestre e doutorando em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
OS TEXTOS ASSINADOS NÃO REFLETEM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO CORREIO9
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