* Roney Marcos Pavani
Prezado leitor, permita-me lhe propor um exercício lúdico: ao sair para trabalhar, como, aliás, faz todos os dias, você é surpreendido por uma situação, digamos, incômoda – há um enorme buraco na rua, bem em frente à porta de sua casa. Não se sabe o que provocou a avaria, tampouco há quanto tempo ela ali está. Estranho. Buracos iam e viam, mas, exceto por uma ou outra costumeira rachadura, parecia não haver nada semelhante no dia anterior. Você coça a cabeça, procura explicações razoáveis para o infortúnio, mas sem sucesso. Decide, então, levar suas indagações aos outros moradores, afinal de contas, assim como você, eles não poderão sair de casa e o dia de trabalho de todos estará perdido.
Em pouco tempo, a vizinhança se reúne. Entre burburinhos e exaltações, mais do que explicar o buraco, é preciso cobri-lo, passar uma nova camada asfáltica na via, pintar as faixas de sinalização e voltar à normalidade. Ato contínuo: começam a acorrer para o local um número grande de tapadores de buracos, desses que faz 20 ou 30 anos são especialistas em obras dessa natureza. Eles se dividem em vários grupos, mais do que suas parcas ideias parecem sugerir, cada qual com a sua proposta para a famigerada tapagem do buraco. Algumas soluções são antigas e enfadonhas, outras são novas e extravagantes. Seja como for, os moradores da rua já as conhecem muito bem.
Via de regra, existem dois projetos principais: de um lado, os defensores do uso de dinheiro público para a obra – cada morador será obrigado a pagar uma pequena taxa (embutida no salário ou no consumo das mercadorias), e o montante agregado cobrirá os custos de reparo e subsequente manutenção da via pública. De outro, há aqueles que fazem o perfil “empresarial” – a rua deverá ser entregue à administração de uma entidade particular, que se encarregará de tapar não somente este, mas também os demais buracos que surgirem daqui para a frente, desde que se pague um pedágio sempre que a via for utilizada.
O debate se inicia e, como de hábito, surgem trocas de insultos (sobretudo “corrupto” e termos correlatos), denúncias e pequenas agressões. Nenhuma novidade. Porém, antes que a coisa desbanque para socos e pontapés, algo, ou melhor, alguém, chama a atenção ao dobrar a esquina. Uma figura, para falar a verdade, exótica.
E, no entanto, o buraco continua lá.
Boa parte dos tapadores de buracos que ali estão já viram o recém-chegado alguma vez na vida. Contudo, só de passagem. Ninguém o conhece de fato. Ele se apresenta de modo peculiar: veste trajes militares surrados e usa uma maquiagem de palhaço no rosto. Usa um vernáculo arcaico, quase ininteligível. De cada dez palavras, nove são impropérios (a décima não é propriamente uma palavra, mas uma expressão interrogativa: “tá o.k.?”). Na mão direita traz consigo, em uma coleira tríplice, três cães babosos; cada qual portando no pescoço uma plaquinha de chumbo com os algarismos: “01”, “02” e “03”, respectivamente. Como se percebe, o histrionismo do personagem é proporcional à sua falta de criatividade para nomes de mascotes. Debaixo do braço esquerdo ele carrega dois livros (novos, ainda no plástico, diga-se): uma Bíblia, daquelas de zíper, e outro cuja lombada diz apenas “IDIOTA”. Uma (auto) biografia, seria? Às costas, por fim, um rifle de brinquedo, cor de laranja fosforescente. Cheira mal.
De repente, um dos moradores lhe dirige a palavra: “Com licença, o senhor também veio trazer uma solução para o problema do buraco?” A resposta do homem é espantosa: “Que buraco?” Pausa. Outros vizinhos insistem: “Como assim, senhor? Este buraco! Não está vendo este buraco?” Todos os apelos são inúteis. Ele é irredutível. “Vocês todos enlouqueceram!”, brada depois de largo silêncio. “Não existe nenhum buraco aqui e eu posso provar! Nada disso é real! É uma ilusão, uma invenção do grande Movimento Internacional dos Canhotos!”
Outra pausa para digerir a informação sem sentir azia. Trocas nervosas de olhares entre os presentes.
(Nesse momento, um quarto cão, esse bem pequeno, chega atrasado. No pescoço, tal qual os outros, uma chapa: “04”).
O sujeito prossegue, em tom profético: “Esse movimento está espalhado por várias ruas da cidade! Seus agentes conseguiram se infiltrar nas empresas, nas escolas, nos jornais! Em tudo quanto é lugar! É uma verdadeira enxurrada de enganações! Uma lavagem cerebral para incutir medo em todos vocês e, assim, destruir suas casas, suas famílias, a rua, o bairro todo!”
Os quatro cães latem sincronicamente, finalizando a misteriosa revelação.
E, no entanto, o buraco continua lá.
Por incrível que pareça, em meio a gargalhadas e comentários jocosos, uns três ou quatro vizinhos param para ouvir o estranho. Descobre-se o seu nome: “Salvador”. Bastante frustrados com os tapadores de buracos de sempre (e consigo próprios, por que não?) deduzem que os problemas da rua podem ser, de fato, frutos de uma grande e secreta conspiração. Imediatamente, filmam e fotografam o discurso. Em seguida, enviam as informações para amigos e parentes que moram em outras ruas, através de um aplicativo de mensagens. Pasmem: os envios mal acontecem, e logo vêm as respostas do outro lado, cujo conteúdo é similar: “o buraco não existe”; “você está sendo enganado”; “mídia lixo”; “os Canhotos estão por toda parte”. Tudo em letras garrafais, recheadas de pontos de exclamação. O que antes era uma somente uma meia dúzia de entusiastas e curiosos, logo se transforma em um grupo maior, capaz de fazer algum barulho.
E, no entanto, o buraco continua lá.
Salvador prossegue, e, dessa vez, eleva o tom, ao nomear diretamente os responsáveis pelo buraco ilusório – os professores. Sim! Conscientes ou não, eles têm se convertido, já há algum tempo, em mestres da magia e da imaginação. Pois, em vez de ensinarem às crianças como a rua é “de verdade”, postam-se a gastar o tempo com bobagens. São os doutrinadores buracais em ação constante. “Vagabundos! Pervertidos!” A fala reverbera, afinal o ensino e a aprendizagem na sua rua apresentam inúmeros problemas. O fracasso escolar de muitos estudantes salta aos olhos, e os vizinhos que têm filhos sabem disso. Ora, por que perder tempo a pensar na estrutura física das escolas, na insegurança, na falta de condições mínimas de trabalho ou de planos de carreira, nas salas de aula quase sempre lotadas, nas bibliotecas inexistentes ou sem pessoal qualificado? Culpabilizar os pérfidos docentes (sobretudo de Humanas) é a saída mais rápida e mais óbvia. Tão claro como água, cochicha o vizinho ao seu lado: “por que o meu filho não conseguiu um emprego? Porque está aprendendo sobre buracos na rua, veja só! É, esse sujeito é esquisito, mas tem razão!”
E, no entanto, o buraco continua lá.
A seguir, vêm os meios de comunicação e a imprensa de um modo geral. “Mentirosos! Vendidos! Só mostram um lado da notícia e geralmente defendem gente criminosa! Enganam as pessoas faz décadas com esse buraco de araque!” O homem parece possesso. Num rompante de fúria psicótica, não deixa de mencionar um suposto passado da vizinhança: “Coisa que esquecem de noticiar é que se não fossem as pessoas como eu, que usam um uniforme como esse, lá atrás, a derrotar os Canhotos, haveria hoje, aqui nessa mesma rua, um buraco de verdade. Um buraco muito maior!” O público, então, é levado a crer que os jornalistas estão mancomunados com os professores/feiticeiros, e com gente que tapa buraco. Os mesmos que sempre propuseram soluções mais ou menos convincentes para os buracos que já apareceram na sua rua e que, por isso mesmo, caíram no descrédito. Sim, é confuso mesmo. O buraco não existe, mas poderia ser maior…
Nesse momento, o alvoroço já está instalado. As mensagens nos aplicativos de celular fervilham exponencialmente. A semente da dúvida foi plantada e ninguém mais tem certeza de nada. Os apoiadores da tese “não há buraco” formam uma turba organizada, e começam a intimidar os demais vizinhos – inclusive você – a seguir o exemplo. Em meio a gritos, xingamentos, empurrões, outras mágoas vão sendo reveladas. Velhos ódios, que pareciam enterrados há tempos, voltam à tona de forma assombrosa. Da mesma forma, também emergem dos esgotos da viela, atraídas pelo mau cheiro de Salvador, dezenas de ratazanas raivosas. Muitos moradores fogem assustados, mas alguns, para o seu horror, se identificam com elas. O medo está em todo lugar.
No fim da tarde, Salvador está embebido em suor, rodeado de roedores e de seus leais cães. Sua maquiagem pálida escorre aos poucos pela face. O rifle de brinquedo é apontado pra cima, demonstrando, ao mesmo tempo, ameaça e triunfo. Os adeptos (ou melhor, lacaios) crescem, em número e furor, e passam a chamá-lo de Lenda. Os opositores são postos pra fora da rua. Outros, como você, preferem assistir ao desfecho de tudo aquilo, só que à distância.
E, no entanto, o buraco continua lá.
Finalmente, Salvador, a Lenda, ganha a concessão para administrar o projeto de tapagem do buraco. O mesmíssimo buraco que afirma categoricamente não existir e que, àquela altura e com a falta de manutenção corretiva no tempo certo, já ganhara dimensões colossais. Uma cratera. Você, por outro lado, não tem outra opção se não voltar para dentro de casa e esperar que, sob nova direção, a avaria seja reparada.
No dia seguinte, você olha pela janela da sala e encontra uma rua vazia – e esburacada. Em outros tempos, daqueles dos tapadores de buracos, já estariam por ali operários, material e maquinário. De um jeito ou de outro, de forma mais lenta ou mais rápida, aborrecida ou prática, os buracos eram cobertos. Não parece ser esse o caso. Você pega o telefone e procura ligar para os vizinhos, em busca de conforto. Contudo, ao olhar para a interface do aparelho, percebe que foi inserido em uns 37 grupos de mensagens, quase todos intitulados: “Rua acima de tudo! Buraco abaixo de todos!” As mensagens, prolixas e monótonas, são todas muito estranhas. Contêm palavras de ordem e insistem que se tome cuidado com fake news sobre buracos imaginários.
Você se espanta com tudo aquilo e resolve tratar do assunto a pé mesmo. Como não é possível mais atravessar a rua, só lhe resta conversar com os vizinhos que moram do seu lado da calçada. O resultado dos diálogos é, convenhamos, devastador: um vizinho lhe diz que o buraco não existe. Afinal, a Lenda havia dito isso, e muitas pessoas supostamente o confirmaram; outro morador, mais exaltado e que gosta de ir à igreja, diz que o buraco “até existe”, mas “você não deve se concentrar em coisas negativas, querido”; outro ainda diz que o buraco existe, que precisa ser reparado com urgência. Contudo, e para isso ele eleva a voz, os antigos tapadores de buracos eram demasiadamente perversos, e haviam desviado muito dinheiro nas empreitadas anteriores. Logo, não é possível resolver o problema facilmente. Era preciso dar um tempo à Lenda. Outro vizinho, por fim, que gosta de ler livros indicados pelo Salvador, afirma que o buraco existe, e que só não fora tampado ainda porque o Movimento Mundial dos Canhotos luta diuturnamente, nas quatro esquinas da rua, para que tal fato não fosse levado a cabo.
Entretanto, a maior parte dos vizinhos, ao ser confrontada com o assunto, procura disfarçar ou responde de modo evasivo: “Viu como o Salvador fala a língua da vizinhança? Ele é como nós, só diz verdades, e denuncia aqueles que nos querem enganar – especialmente a mídia e os professores doutrinadores. Aliás, vou até fundar um movimento: o Escola Sem Buraco, o que acha?” O último deles é bem direto: “Para me informar das notícias da rua, não vou mais recorrer a esses mentirosos. Prefiro o celular – é muito mais rápido, prático e, bem, tem de tudo, né?”
Como se vê, a sua iniciativa não é lá muito feliz. Languidamente, você volta para casa. Está confuso. Também tem receio de tocar no assunto novamente e ser confundido com um dos tais agentes do movimento canhoto. Finalmente, para em frente ao portão e lança um olhar melancólico sobre a sua rua. No entanto, o buraco continua lá.
Agora não mais vazio.
Há corpos dentro dele.
Você sufoca um grito de horror, enquanto um último pensamento lhe passa pela cabeça: “nenhum buraco existe. Acaso existirão os cadáveres?”
(…)
Eu sei, leitor, eu sei. Vou parar por aqui. O exercício de imaginação ficou por demais macabro.
Pode respirar aliviado.
Cá estamos nós, sãos e salvos no mundo real.
* O autor é mestre em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Correio9
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