Roney Marcos Pavani
Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792) nasceu na Fazenda de Pombal, então Capitania das Minas Gerais. Era o quarto filho (de um total de nove) de Domingos da Silva Xavier, o proprietário do lugar, e Maria Paula da Encarnação Xavier. Aos 11 anos, ficou órfão de pai e mãe, e passou a ser criado por um tio, que exercia o ofício de dentista. A fazenda e demais bens da família foram perdidos para pagar dívidas.
A partir daí, trabalhou como mascate e minerador, até ingressar na Tropa dos Dragões da Cavalaria Real, em 1781. Parêntese: Os dragões constituíam um dos mais prestigiados tipos de tropas no Brasil colonial, e desempenhavam tanto missões militares de defesa externa como missões de segurança interna. Nas primeiras décadas do século XVIII, chegaram a Minas duas companhias de Dragões enviadas de Lisboa. A sua missão principal era a garantia da segurança dos distritos mineradores e seus caminhos, funcionando como uma espécie de polícia militar montada. Embora tenha atingido relativo sucesso no regimento, alcançando a patente de alferes (equivalente a segundo-tenente), Xavier pediu licença após seis anos de serviço. A razão mais provável é que estivesse descontente com o soldo e demais condições da carreira militar.
Alguns anos mais tarde, fez parte de um movimento aliado a clérigos, profissionais liberais e militares, além de membros da elite mineira, como Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), antigo secretário de governo; Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), ex-ouvidor da comarca; e Inácio José de Alvarenga Peixoto (1742-1793), minerador e grande proprietário de terras na Comarca do Rio das Mortes. O grupo ganhou força com a independência das Treze Colônias britânicas e a formação dos Estados Unidos da América (1776-1783), a primeira república federalista do Mundo. Além disso, à época, oito em cada dez estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra eram oriundos de Minas, o que permitiu à elite regional acesso aos ideais liberais e iluministas que circulavam na Europa. Eram leitores vorazes de John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755) e Voltaire (1694-1778).
Basicamente, os integrantes da Conjuração (o termo Inconfidência, que significa “traição”, é pejorativo) manifestavam um profundo descontentamento para com a Coroa. Desde 1702, com a criação da chamada Intendência das Minas, o peso da fiscalização e dos impostos sobre os colonos só fez aumentar. O reino de Portugal, que àquela altura já entrara na zona de dependência econômica inglesa (da qual nunca mais saiu), viu na exploração dos recursos minerais do Brasil a sua tábua de salvação. Para tanto, estabeleceu a cobrança de 20% sobre toda produção de ouro – o chamado Quinto, e combateu o contrabando por meio das Casas de fundição, onde o minério era transformado em barras e selado com as armas portuguesas. Com a instauração da chamada Derrama (ou Devassa), em 1751, a exploração atingiu níveis assustadores. Pela medida, era permitido às tropas reais invadirem casas em busca de objetos de ouro e prata, caso a produção anual não atingisse o valor de 100 arrobas. Embora só uma Derrama tenha sido efetivamente promulgada, em 1763, como uma resposta aos prejuízos colossais causados pelo famoso Terremoto de Lisboa, a queda nas reservas de ouro, as dívidas gerais e as falências anunciavam um cenário propício à contestação.
Em 1789, mesmo ano em que os revolucionários parisienses tomaram a Bastilha, esperava-se uma nova Derrama por parte do governador de Minas Gerais – o Visconde de Barbacena (1754-1830). O plano dos conjurados, Xavier incluso, era aproveitar-se do decreto e contarem com a fúria das massas populares. Em linhas gerais, pretendiam tomar a sede do governo e, a partir daí, proclamar a independência da Capitania e instaurar um governo republicano. Ponto prévio: falar em “Independência do Brasil” seria não só absurdo, como impossível, já que não havia, naqueles tempos, senso de nacionalidade. Do que viria depois pouco se sabe. Tal qual ocorrera nos EUA, a questão da escravidão não era essencial. Seria um contrassenso eliminá-la, uma vez que a maioria dos envolvidos eram proprietários de escravos. Entretanto, nada disso ocorreu. A conspiração foi desmantelada, com a ajuda de três de seus integrantes – Joaquim Silvério dos Reis (1756-1819), Inácio Correia de Pamplona (1731-1810) e Basílio de Brito Malheiro do Lago. Estes traíram o movimento em troca do perdão de suas dívidas junto à Coroa (muito antes da Operação Lava Jato, foi a primeira Delação Premiada da história).
A prisão e o posterior julgamento dos envolvidos, já em 1792, culminou em várias condenações. As penas variavam, e iam desde trabalhos forçados, ao degredo e à morte por enforcamento. Quanto aos condenados à pena capital, todos conseguiram comutá-la, exceto o ex-alferes Xavier. Contudo, houve outras quatro mortes: três padres e o já citado Cláudio Manuel da Costa, que sequer foram julgados e morreram na prisão.
A execução de Joaquim José da Silva Xavier foi um verdadeiro espetáculo. Era um sábado, 21 de abril, entre 11 horas e o meio-dia. Sinos dobravam. Para dar maior visibilidade ao evento, o condenado – de barba e cabelos raspados, condição para que se garantisse a sua autenticidade – partiu em cortejo da antiga Rua da Cadeia (poeticamente a atual Assembleia Legislativa do Estado do Rio), atravessou as principais ruas do centro da cidade com destino final ao tão conhecido Largo ou Campo da Lampadosa. O patíbulo ficou onde hoje é a esquina da Avenida Passos e a Rua Senhor dos Passos (antiga Rua da Forca). No dia seguinte seu corpo foi esquartejado, salgado e enviado para diversas paragens do caminho entre o Rio e a antiga cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto). Ali foi elevado um poste, no qual ficou exposta a sua cabeça.
Pelos anos que se seguiram, a figura do infame alferes morto pelo crime de lesa-majestade foi praticamente esquecida. Não sem razão. O Brasil, não só Minas Gerais, havia se tornado independente, mas o regime instalado não era uma república. Além disso, os chefes da Nação (inicialmente D. Pedro I e, a seguir, D. Pedro II) eram descendentes diretos da rainha – D.ª Maria, a louca, sob a qual se dera a sua condenação. Somente na segunda metade do século XIX, sobretudo após a Guerra do Paraguai (1864-1870), momento da promulgação do Manifesto Republicano (1870) e da fundação do Partido Republicano Paulista (1873), é que seu nome seria recuperado. Como símbolo, obviamente. Símbolo de um republicano que quis emancipar-se da monarquia chefiada por um Bragança. O mesmo que desejavam figuras como Quintino Bocaiúva (1836-1912) e Joaquim Saldanha Marinho (1816-1895). Em outras palavras, o movimento republicano nascente carecia de legitimidade. E nada melhor do que recorrer à história em busca de exemplos para justificar a sua existência. Como diria a escritora Marguerite Yourcenar (1903-1987), “cada época escolhe o seu passado”.
E a monarquia, de fato, foi derrubada. A partir de 1889 foi instalado no Brasil um novo regime e uma nova ordem política. Para tanto, seria necessário construir uma nova identidade nacional, elencar novos símbolos (hino, bandeira, brasão de armas, datas comemorativas, etc.) e novos heróis. A obra A formação das almas, de José Murilo de Carvalho, é seminal nesse sentido. Tal qual os santos da Igreja Católica, os donos do poder sempre souberam que a população comum necessita de bons exemplos. De nomes poderosos que poderiam inspirá-las (e torná-las obedientes a quem está no andar de cima). A referência à religiosidade não é vã, pois foi a partir desse momento que deu-se início à construção de Tiradentes como uma espécie de “Jesus Cristo” cívico. Isto é, alguém que, a exemplo do Mestre de Nazaré, padeceu injustamente e foi sacrificado para “salvar” o seu povo da opressão. (A narrativa ganhava ainda mais força, já que não havia um só Judas, mas três). Por tabela, era militar, como aqueles que haviam proclamado a República no 15 de novembro. Arquétipo melhor impossível.
Não por coincidência, começaram a pulular pinturas (historicamente falsas) do alferes, no momento da condenação, de barba e cabelos compridos – a silhueta clássica do Cristo. Não raro acompanhado de um crucifixo. O quadro clássico de Pedro Américo (pintado em 1893), muito comum em repartições públicas brasileiras até os anos 1990, espantava por retratar o corpo de Tiradentes, ainda no patíbulo, já esquartejado (o que também é historicamente falso). Uma grotesca, porém eficiente máquina de propaganda. Na mesma linha, Campos Sales (1841-1913), primeiro Ministro da Justiça e quarto presidente da República, chegou a sugerir a troca de D. Pedro I por Tiradentes como o Patrono da Independência. A maioria, claro está, considerou a iniciativa um exagero.
Ao longo do século XX, o Tiradentes mítico ganhou força, seja em livros didáticos, cartilhas escolares, músicas infantis, obras cinematográficas e mesmo no imaginário popular. Sobretudo nos dois momentos mais autoritários de nossa história recente: o Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1985), momento em que a data de sua execução (21 de abril) foi, finalmente, transformada em feriado nacional, pela Lei n.º 4.897, de 09/12/65. A ditadura, que se apresentava como revolucionária, também precisava de seus próprios heróis. Criaria alguns e consolidaria outros, como o alferes dentista. Pouco importava se o que aquele personagem fez ou deixou de fazer era real. Funcionava como uma prova de que os militares eram confiáveis, e sempre mereceriam aplausos por suas ações.
Por essas e outras, é verdadeira a frase do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956): “infeliz a nação que precisa de heróis”.
* O autor é mestre em História pela UFES, professor do IFES de Nova Venécia e colaborador do Jornal Correio9
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