Bruno Gaburro (Correio9)
Nesta terça-feira (5) foi promovido o Dia Mundial da Internet Segura, com a união de mais de 140 países para mobilizar usuários e instituições em torno da data, a fim de estimular o uso consciente, seguro, ético, responsável e livre da internet. Segundo dados da Unicef, o Brasil tem hoje 23,4 milhões de crianças e adolescentes de 9 a 17 anos que têm acesso à internet. Porém, o acesso se dá, essencialmente, de maneira autônoma, sem nenhuma mediação dos responsáveis, e 85% destes, utilizam a internet através dos celulares.
Outra pesquisa, realizada recentemente, pela instituição, mostra que 35% das 14 mil meninas entrevistadas pela entidade, com idades entre treze e dezoito anos já mandaram fotos ou vídeos íntimos, e mais de 70% já receberam alguma imagem sem pedir; 80% já receberam pedidos de alguém para compartilhar fotos íntimas. O mais preocupante desses dados é que 80% das meninas sentiram-se culpadas, somente 16% chegaram a conversar com alguém da família e apenas 2% falaram com professores na escola.
É preciso entender que a sociedade evolui junto com a tecnologia, e mudanças no estilo de vida das pessoas vão acontecendo de acordo com o aprimoramento da ciência e suas aplicações. Há muitos anos, antes da máquina fotográfica ser inventada, o corpo nu só era exibido na intimidade dos casais. Mais tarde, as câmeras fotográficas começaram a se popularizar em todo o mundo, trazendo praticidade e propiciando novas possibilidades. Tornou-se possível registrar um momento que jamais poderia se repetir e eternizá-lo. Para isso, bastava apertar um botãozinho e pronto, estava guardado para sempre; mas para poder contemplar a figura em questão, era necessário primeiro passar pela revelação. O filme, que era onde as imagens ficavam gravadas, tinha de ser levado para um local especializado em fotografias, para que recebesse o tratamento necessário, e, horas, ou dias após, bastava retornar ao estúdio de revelação, e pegar suas fotos.
Foi nesta época que os primeiros nudes começaram a ‘vazar’. Funcionários dessas lojas podiam agir de má fé com os clientes que gostavam de registrar momentos íntimos e fazer cópias extras de fotos picantes. A partir daí, o futuro dessas imagens seria incerto. Na maioria das vezes os amigos e parentes de quem fazia as revelações das fotos eram quem tomava conhecimento, mas a situação nunca tomava proporções estratosféricas, como nos dias de hoje.
Com a invenção da máquina fotográfica digital, as coisas começaram a mudar um pouco e se tornou possível baixar as imagens em um computador e compartilhá-las com quem quisesse, através de e-mail, ou mesmo, pelas primeiras redes sociais, que começavam a surgir. Mais tarde, com a evolução dos celulares e o aparecimento das câmeras nos dispositivos, a fotografia se popularizou e tonou-se mais acessível ao público em geral, possibilitando à grande parte da população registrar seus momentos e compartilhá-los com quem quisesse.
Outro fator importante para entender como o ‘vazamento’ de fotos íntimas se tornou recorrente é o desenvolvimento das redes sociais e aplicativos de troca de mensagens. A partir do momento em que se tem uma câmera em um celular, e no mesmo aparelho, existe um aplicativo para compartilhá-la com qualquer pessoa, e, assim, tornou-se fácil espalhar qualquer coisa.
A falsa ideia de que a comunicação ocorre apenas entre as pessoas escolhidas é o ponto-chave da questão. Por estarem compartilhando qualquer coisa a partir de seu smartphone pessoal, as pessoas têm uma falsa sensação de que a privacidade e o controle sobre o conteúdo são maiores do que nas redes sociais, e assim, sentem-se seguras para compartilhar quaisquer informações, e até mesmo fotos íntimas, com pessoas de sua confiança.
Confira os depoimentos de algumas vítimas:
O jornal Correio9 foi em busca de pessoas da região que, tiveram em algum momento de suas vidas, fotos íntimas divulgadas na internet, para conversar e ter conhecimento de como as fotos foram parar nas mãos das pessoas erradas. Por questão de segurança e privacidade, os nomes das pessoas e, até iniciais, serão ocultados. Os depoimentos serão totalmente anônimos.
A primeira pessoa com quem o Correio9 conversou é um homem que teve uma foto íntima vazada pelo WhatsApp há mais ou menos quatro anos, época em que surgiram vários vazamentos de nudes.
“Eu estava em uma viagem a trabalho e estava com saudades da minha namorada na época, e resolvi tirar uma foto em frente ao espelho para mandar para ela, só de brincadeira. Meses após ter tirado a foto, nós terminamos o nosso relacionamento, e, por vingança, ela repassou a minha foto para algumas amigas, que repassaram para outras amigas, até que em certo momento, cheguei a receber a imagem através de um amigo meu, que a havia recebido em um grupo cheio de gente. Neste momento, eu senti meu corpo todo ficar gelado, começando dos pés à cabeça, nunca vou me esquecer. Minha privacidade havia sido invadida, e já imaginava que a cidade toda tinha acesso à minha foto. Foi um momento muito ruim, sofri bastante nos dias seguintes, eu e minha família buscávamos formas para tentar diminuir o estrago, mas já era tarde demais. Após um tempo, as pessoas foram esquecendo, principalmente depois que saíram outras fotos de pessoas conhecidas em nossa região. Preferi não entrar com nenhum processo para tentar abafar o caso ao máximo”.
A segunda pessoa que conversou com a nossa redação, também é um homem, que teve suas fotos vazadas, praticamente na mesma época do relato anterior.
“Eu sempre fui muito ‘pegador’ e nunca tive vergonha das minhas partes íntimas. Mandei a minha foto nu para uma mulher que estava afim na época, para conquistá-la, e quando menos imaginei, meus amigos e familiares já tinham recebido a minha foto. Fiquei um pouco com vergonha pois quando a gente tira a foto, não imagina onde ela pode chegar, mas no final das contas, me ajudou muito, pois outras mulheres começaram a demonstrar interesse por mim. Como não me trouxe problemas, nem pensei em correr atrás de polícia nem nada”.
A terceira pessoa procurada pelo Correio9 é uma mulher, que na época teve seu celular roubado e diversas fotos divulgadas.
“Eu e meu namorado sempre trocávamos mensagens picantes, e até mesmo fotos pelados, não víamos problema nisso, tínhamos a sensação de que estávamos seguros, até que um dia, fomos assaltados. Dois homens de moto nos abordaram durante o réveillon e levaram todos os nossos pertences e dinheiro. Foi uma virada de ano muito triste, ficamos muito preocupados, pois sabíamos o que a pessoa poderia achar nos celulares. Torcemos para que de alguma forma, nossas fotos não fossem descobertas”, disse ela.
Mas isso não aconteceu, “meses após o ocorrido, estávamos mais tranquilos, pois nada tinha vazado ainda. Até que um dia meu namorado recebeu uma de minhas fotos em um grupo de seus amigos. Lembro dele falando que estava acompanhando as conversas e começaram a mandar algumas fotos de mulheres peladas, até que ele reconheceu uma das minhas fotos, que não mostrava o meu rosto. Veio me mostrar e a nossa preocupação voltou ao nível máximo. Mais tarde, ainda no mesmo dia, um amigo dele mandou uma foto em que aparecia meu rosto para ele no privado, dizendo que havia recebido em um outro grupo. Tentamos rastrear a origem da foto, conversando com as pessoas que tinham recebido, mas chegou a um ponto em que as pessoas eram totalmente desconhecidas e não nos respondiam mais. Fiz um boletim de ocorrência na época mas não adiantou muito, as leis de crimes virtuais ainda não eram tão eficazes como hoje. Lembro de que fiquei muito envergonhada na época, muitas vezes nem saía de casa para não ser vítima de comentários maliciosos na rua, mas hoje tudo passou, são só lembranças ruins”.
A quarta pessoa da reportagem, também, é uma mulher, que teve um vídeo onde mantinha relações sexuais com o seu namorado da época.
Ela explicou como seu drama começou: “Eu namorava um rapaz há mais de três anos e nós sempre fomos ‘super’ parceiros. Muito carinhoso, atencioso e amoroso. Nós tínhamos confiança total um no outro. Havia sempre o ciúme, mas nada demais. Em um dos nossos aniversários de namoro, nós fizemos uma viagem para a Bahia, e ficamos hospedados em uma pousada. No dia do nosso aniversário, comemoramos em alto estilo em uma festa que acontecia na cidade, bebemos um pouco a mais e fomos para a pousada namorar um pouco. Foi quando decidimos fazer um vídeo nosso. Ele teve a ideia, e pegou o celular para filmar”.
Segundo ela, algum tempo depois, seu tormento começou: “Dois anos se passaram e nós chegamos a terminar, porém, antes de nos separarmos, ele havia me prometido que havia apagado o vídeo há muito tempo, logo após a nossa viagem. Estava despreocupada e solteira, mas com outro relacionamento praticamente engatilhado. Foi quando o meu novo pretendente chegou com o vídeo, me mostrando e falando que havia recebido de um número desconhecido. Por causa disso, nosso relacionamento que estava começando, foi por água abaixo. Para o meu desespero, o vídeo foi sendo repassado para pessoas que eu nem conhecia. Logo nos primeiros dias, eu saía de casa e as pessoas me olhavam na rua, alguns homens chegaram até mesmo a me coagir, me ameaçando a sair com eles para que não divulgassem mais os vídeos”.
A divulgação do vídeo mudou sua vida de cabeça para baixo: “Nesta época, fiquei muito mal, entrei em uma depressão profunda, precisei trocar de número de telefone, apaguei todas as minhas redes sociais e tranquei até a minha faculdade. Tinha vergonha de sair de casa, eu estava ficando cada vez mais conhecida na minha cidade, mas a fama não era boa. Teve uma época que eu até tentei me matar tomando remédios controlados, mas minha família esteve comigo e me ajudou a superar a questão. Depois de meses que o vídeo tinha vazado, mudei de estado, e até hoje converso com pouquíssimas pessoas na região onde morava antes. Procurei uma advogada na época, mas ela me aconselhou a ficar na minha, pois um primo meu encontrou com este meu ex-namorado, e deu uma surra nele, deixando-o inconsciente. Para mim, a justiça não havia sido feita, mas para não alongar ainda mais o assunto, não entrei com processo nenhum. Hoje me arrependo, pois sei que existe todo um aparato jurídico para esses tipos de crime, mas acredito que ele aprendeu a sua lição”.
Psicóloga e advogados comentam sobre o assunto
O Correio9 procurou a psicóloga Daniely Lorenzon, do Instituto de Psicologia Subjetiva, de Nova Venécia, para saber como a família da vítima deve lidar com uma situação dessas.
Para ela, “a família em situações como essa deve oferecer o suporte emocional que a vítima do compartilhamento de nudes sem o consentimento precisa. Sabemos que é um movimento difícil de fazer, porém, necessário. Evitar julgamentos, acusações e principalmente reduzir a vítima ao fato ocorrido. Outro caminho importante é buscar ajuda de um profissional psicólogo para auxiliar tanto a vítima quanto a família na ressignificação do fato ocorrido. A ausência dessa rede de apoio à vítima aumenta a probabilidade de desenvolvimento dos transtornos psicológicos, devido a maior vulnerabilidade emocional e social”, explica Daniely.
É preciso, também, se atentar às medidas legais cabíveis. Para entender melhor, o Correio9 conversou com dois advogados de Nova Venécia que explicaram como proceder em casos assim.
Segundo o advogado Antônio Marcos Campo Dall’orto, atualmente, podem existir diversas formas de vazamento de dados e imagens. Um dos exemplos é quando a pessoa leva o seu notebook para a assistência técnica e de, alguma forma, os responsáveis descobrem arquivos sigilosos em seu computador e salvam para si, e posteriormente acabam vazando os vídeos ou fotos para outras pessoas. Neste caso, o enquadramento será na Lei Nº 12.737, que ficou popularmente conhecida como Lei Carolina Dieckmann, que promoveu alterações no Código Penal Brasileiro tipificando os chamados delitos informáticos. A pena nesses casos pode chegar à detenção de até um ano e multa.
Um segundo caso é quando há um término de relacionamento, e em seguida pode haver divulgação de fotos ou vídeos íntimos sem o consentimento de uma das partes, conhecido como revenge porn. Neste caso, o enquadramento será na Lei Nº 13.718, que introduz modificações nos crimes contra a dignidade sexual, com a pena podendo chegar à reclusão de um ano a cinco anos, se o fato não constitui crime mais grave, porém, neste caso específico, onde existia uma relação íntima de afeto com a vítima, a pena pode ser aumentada até em 2/3.
Um terceiro exemplo, que é o mais comum do dia-a-dia é quando alguém desconhecido compartilha um vídeo ou imagem que recebeu de terceiros, neste caso, esta pessoa poderá ser enquadrada, dependendo do tipo de informação, nos crimes de calúnia e difamação, que estão previstos nos artigos 138 e 139 do Código Penal, com penas de detenção de até dois anos e multa e detenção de até um ano e multa, respectivamente.
“Em todos os casos, é aconselhável que a pessoa que se sentir lesada procure uma delegacia de polícia e confeccione um Boletim de Ocorrência para que o caso denunciado seja investigado pela autoridade policial. Independente da seara criminal, o prejudicado poderá intentar uma ação civil em desfavor de quem cometeu o crime, sendo que esta pessoa poderá ser condenada por danos morais se configurada a situação vexatória que por ventura tenha sido colocada. Este direito está assegurado no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal, que trata sobre a vida privada e a honra da pessoa”, diz Antônio Marcos.
O também advogado, Jairo Rodrigues Gomes recomenda às pessoas que sofreram este tipo de violência, procurar uma delegacia especializada (Delegacia da Mulher, Adolescente e Idoso, por exemplo), registrar um Boletim de Ocorrência e apresentar os números de telefone de quem enviou e quem recebeu esse tipo de mensagens. Além disso, procurar um advogado e entrar com uma ação de indenização por danos morais quando a divulgação gera situação de constrangimento ou situação vexatória no ambiente familiar ou de trabalho.
“É importante perceber que o compartilhamento não consentido de vídeos e imagens íntimas é uma forma de violência contemporânea, no qual a maior parte das vítimas são mulheres, que sofrem muito com a exposição provocada pelos vazamentos, sentindo-se muitas vezes culpadas e extremamente constrangidas. Neste momento delicado é preciso apoiar a vítima sem julgamentos e procurar tratar a questão no âmbito jurídico. Mandar nudes não é um problema, mas sim compartilhá-los sem autorização, a culpa sempre será das pessoas que compartilham”, relata Jairo.
“É preciso romper o ciclo. Ao receber um vídeo ou uma imagem de alguém em uma situação dessas, basta não compartilhar com outras pessoas, assim, estará limitando a circulação do conteúdo. Ao presenciar qualquer tipo de ofensa, denuncie sempre”, finaliza o advogado.
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