O dia 13 de setembro de 1848 mudou a vida do jovem operário americano Phineas Gage e produziu uma reviravolta na compreensão científica dos transtornos de personalidade antissocial. Gage era um disciplinado trabalhador da empresa encarregada de construir uma ferrovia em Vermont, Estados Unidos. Usava uma barra de ferro para socar areia sobre a pólvora colocada no orifício de uma pedra. Depois, quando o rastilho explodisse a pólvora, a pedra rachava e podia ser removida para posicionar os trilhos. Nesse dia, a pólvora explodiu antes da hora e arremessou a barra de ferro sobre Gage crânio adentro, causando uma irreversível lesão de um olho e partes adjacentes do cérebro nos dois lados, conhecidas como córtex orbitofrontal.
Gage sobreviveu milagrosamente, mas de operário-padrão tornou-se um andarilho extravagante, antissocial, agressivo e contador de lorotas. Abandonou a família e acabou morrendo anos depois na Califórnia. Seu caso foi descrito pelo médico que o atendeu, que mandou exumar o corpo, removeu o crânio e o levou para o museu da universidade Harvard. Mil interpretações científicas e pseudocientíficas deram relevo ao caso Gage, relacionando a mudança radical de sua personalidade a explicações sobre o funcionamento cerebral dos psicopatas, chamados atualmente com mais cautela de portadores de transtornos de personalidade antissocial.
Polêmicas à parte, nossa atenção se volta para esses casos, que ocorrem hoje aos borbotões: desde os terroristas violentos aos políticos corruptos que recebem propina. Como será a estrutura e a funcionalidade dos cérebros desses indivíduos? Haverá semelhanças entre os assassinos em série, os que agridem crianças e mulheres, os que divulgam fake news intencionalmente e aqueles que apenas furam o sinal vermelho no trânsito ou contam mentirinhas ocasionais numa conversa? Seremos todos parte de um grande contínuo cerebral e comportamental que vai da mentirinha ao assassinato? Seremos todos um pouco loucos?
Um grupo de pesquisadores da Finlândia publicou há poucas semanas um trabalho que vai nessa direção. Examinaram por neuroimagem de ressonância magnética a estrutura e a função do cérebro de mil pessoas sem antecedentes criminais, mas cujo comportamento social/antissocial inaparente podia ser aferido e classificado por questionários padronizados. Depois foram além, analisando cerca de 20 presidiários condenados por crimes violentos, e compararam seus cérebros com os 1000 voluntários “normais”.
Resultou uma conclusão assustadora: somos todos um pouco psicopatas. Alguns mais, outros menos. Além disso, demonstraram que aquelas regiões orbitofrontais, danificadas em Phineas Gage, são mais desestruturadas e até atrofiadas quando é maior o índice de comportamento antissocial das pessoas. Nos presidiários violentos, a redução dos indicadores estruturais era máxima. Depois desse estudo, partiram para um experimento funcional por neuroimagem, expondo os mil voluntários a videoclipes com conteúdo violento e analisando o grau de ativação das regiões cerebrais envolvidas. Não deu outra: maior ativação dessas regiões — e várias outras — quanto maior o grau de personalidade antissocial dos indivíduos.
Estudos como esse — ditos transversais — indicam uma associação entre estrutura e função do córtex orbitofrontal e os comportamentos antissociais, mas não permitem asseverar uma relação de causa-e-efeito. O psicopata nasce assim ou fica assim? Outros dados indicam que o ambiente social e educacional modula o desenvolvimento dessas regiões cerebrais. Para o bem e para o mal. “Gentileza gera gentileza”, propalava o místico José Datrino nos anos 1980 nos bondes e ônibus do Rio. Infelizmente, a frase do Profeta Gentileza, atualizada para os tempos de hoje, é “violência gera violência”, ou mais objetivamente: “fuzis geram fuzilaria”. E não são propaladas por místicos, mas por governantes.
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