Eliana Maria Lemos
Assisti, em dezembro, ao especial de Natal do Porta dos Fundos, intitulado “A Primeira Tentação de Cristo”, sinceramente, não gostei. Achei muito chato, muita falação e um festival de palavrões, desnecessário. Tive que me esforçar para ver até o final. Fiz isso porque queria entender a polêmica envolvendo a produção da Netflix. Cheguei à conclusão de que todo o filme é uma piada sem graça. Só isso! Não vi nada que justifique todo esse blá blá blá; muito menos a censura imposta pela Justiça do Rio de Janeiro, nessa semana, a pedido da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, ligada à Igreja Católica.
Bem, por tudo o que vi, acho que bem mais grave do que retratar um Jesus Cristo com tendências homossexuais, é tudo o que está acontecendo desde que o filme foi disponibilizado na Netflix, como o ataque à produtora do Porta dos Fundos e, agora, a imposição da Justiça para que a produção fosse retirada do ar.
A liberdade de expressão e de pensamento é um direito fundamental assegurado no art. 5º, da Constituição Federal Brasileira, pelo qual muitos lutaram, foram torturados e, até, perderam suas vidas no tenebroso período da ditadura militar, e infelizmente nesse Brasil de hoje – em que preconceitos raciais, sociais e sexuais estão escancarados – muitos grupos utilizam a religião como pano de fundo para atacar essa conquista tão duramente obtida.
Um exemplo recente aconteceu na Bienal do Livro de 2019, quando o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivela quis recolher uma revista em quadrinhos por ter personagens homossexuais. O bispo, que não parece se incomodar com a matança diária de gente inocente nas periferias e morros da cidade maravilhosa, em tiroteios e balas perdidas; quis porque quis impedir a exibição e a leitura do gibi, ilustrado por Jean Galvão, por trazer um beijo entre os dois personagens do mesmo sexo. Agora, a mesma religião de novo é usada pra justificar as barbaridades cometidas contra o Porta dos Fundos.
Na minha modesta opinião, quando polemizaram tanto com o especial, o que era pra ser só mais um besteirol, uma sátira de humoristas sem graça, acabou alcançando um patamar de obra cultural importante, que não merecia.
Para quem não assistiu a sinopse é a seguinte: após se isolar no deserto Jesus está completando 30 anos e sendo aguardado com ansiedade na casa de Maria e José, que preparam uma festa surpresa. Entre os convidados para o evento estão os três reis magos e o próprio Deus, um ser egocêntrico e sacana, que tenta a todo custo ficar com Nossa Senhora, usando seus poderes pra humilhar José que busca se afirmar como pai e marido mesmo com suas limitações.
Quando retorna ao lar Cristo chega acompanhado por um convidado especial, que quer apresentar aos pais, mas se vê diante do dilema de ter que escolher entre seguir com sua vida terrena ou se dedicar aos planos de Deus. Nesse desenrolar da trama o que acontece é um festival de bobagens que não vou revelar pra não dar spoiler.
O engraçado é que em todas as críticas que eu li a respeito das reações sobre o especial, não vi nenhuma negativa em relação à forma como o Todo Poderoso é mostrado. Parece que ninguém achou esquisito um Deus abusado e egocêntrico como aquele, só o fato de Jesus levar pra casa um rapaz em vez de uma moça.
Desde que o mundo é mundo o homossexualismo existe, assim como o hétero ou o bissexualismo. Pessoas são como são e ninguém escolhe, biologicamente falando, ser isso ou aquilo. O problema é que a sociedade impôs a regra da hipocrisia, criou-se um padrão que supostamente, deve ser seguido por todos, pra que fique tudo nos conformes. Nesse caso, o “certo” é homem gostar de mulher e vice-versa. Quem não anda por essa cartilha deve se esconder, se reprimir e até se castigar para não ser discriminado.
Mas, os tempos são outros, e com a evolução humana as denominações e as diversas formas de relacionamentos, emergiram na sociedade, sendo enxergadas e contextualizadas como naturais nos animais, humanos ou não. O problema é que tem gente que não aceita quem difere. Acha que todos devem ser aquilo que considera “normal”, e não tem nenhum limite pra impor sua forma de pensamento. Só eles estão certos.
Em nome de Deus, da religião, diariamente são cometidos crimes como homicídios, roubo, corrupção e exploração sexual. Basta ver um pouquinho só o noticiário pra ter uma prova do que estou mencionando. Mas, ironicamente, essas mesmas pessoas que se incomodam tanto com manifestações artísticas, não são impactadas com esses fatos reais. Esquecem que um filme ou livro é uma questão de escolha própria se quero ou quando quero ver. Ninguém vira isso ou aquilo por conta de uma manifestação artística, o que se espera é que a arte seja capaz de promover um questionamento ou discussão sobre determinado aspecto. E isso – mesmo a contragosto – sou obrigada a admitir que a equipe da Porta dos Fundos conseguiu.
* A autora é jornalista, roteirista, escritora, pesquisadora do Instituto Ipsos e articulista exclusiva
do Jornal Correio9
NOTA DO EDITOR:
Após o texto já ter sido escrito, o STF derrubou na noite desta quinta-feira (09) a decisão da Justiça do Rio de Janeiro de censurar o vídeo da produtora Porta dos Fundos e Netflix
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