Por Titina Cardoso
(Ales/ES)
“Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Esse pensamento da ativista e filósofa americana Angela Davis ficou ainda mais popular em 2020, ano marcado pelo debate sobre o antirracismo.
O assunto ganhou repercussão mundial, principalmente, devido ao assassinato de George Floyd, homem negro que foi estrangulado por um policial branco nos Estados Unidos. O caso foi um estopim para diversas manifestações nos EUA e no mundo e abriu espaço para um tema que, por muitos anos, ficou à margem do debate público.
No Brasil, a obra “Pequeno Manual Antirracista”, da filósofa Djamila Ribeiro, figura há meses entre os livros mais vendidos de não ficção, tendo ocupado o primeiro lugar por várias semanas. O antirracismo está em pauta e é importante aprofundá-lo.
Mas, afinal, o que é ser antirracista? Quem nos responde é o filósofo e historiador Marcos Antônio Cardoso, militante do Movimento Negro Brasileiro há mais de quatro décadas, mestre em História Social, professor de Introdução à História da África e pesquisador das culturas negras no Brasil.
Na entrevista concedida ao portal da Assembleia Legislativa (Ales), o ativista fala sobre como o racismo pode ser observado na sociedade brasileira e aborda temas que também estão na agenda, como racismo estrutural e lugar de fala. Confira a entrevista:
O que é racismo?
O racismo é um sistema de ideias, um conjunto de percepções estruturado, que advoga a ideia de que existem raças, povos ou culturas superiores às outras. No caso da sociedade brasileira, o racismo molda, atravessa as relações sociais entre negros, brancos e os povos indígenas. O racismo no Brasil é um discurso de poder e ele é acionado para justificar privilégios e justificar a marginalização e subjugar as pessoas oprimidas.
Então, nesse sentido, o racismo é uma violência. Porque além de ser um discurso de poder, o racismo é uma violência contra a humanidade do outro. O racismo nega a humanidade do outro. Na sociedade brasileira, é assim que o racismo funciona. É mais que uma ideologia. Então, as pessoas, de certa forma, têm no racismo uma arma poderosa para opressão do seu semelhante.
Como o racismo pode ser observado no Brasil?
O racismo se manifesta de diversas formas. Ele se manifesta como preconceito, como discriminação racial, através das piadas. Só que, no Brasil, a gente tem um racismo que tem uma dimensão subjetiva, que está na relação interpessoal, e o racismo mais objetivo, que estrutura as relações de poder.
Por exemplo, quando se exige boa aparência para acessar uma vaga de emprego. Quando as pessoas te animalizam, xingando, relacionando as pessoas negras aos símios, aos macacos. O racismo se manifesta quando tudo que se refere a negro é ruim e tudo o que se refere ao branco é bom. Quando se refere ao cabelo das pessoas, sobretudo ao cabelo crespo, como cabelo ruim. Quando nós vemos na TV brasileira como que os negros aparecem nas novelas.
Ele se manifesta de várias formas, né? Sobretudo em relação aos espaços de poder. Então, percebemos no mercado de trabalho, na diferença salarial entre negros e brancos. Na maneira de morar nas cidades, por exemplo, onde é que os negros moram e onde é que os brancos moram. Então, há uma segregação racial do espaço urbano. No acesso à educação superior. São essas as formas de perceber como o racismo é estruturante da sociedade brasileira. Ele estrutura o Brasil.
Como o mito da democracia racial prejudica a luta antirracista?
As pessoas, em função do mito da democracia racial, negam a existência do racismo no Brasil. Por que é um mito da democracia racial? Porque inverte a realidade. Esse mito foi, de certa maneira, construído a partir dos anos 1930, sobretudo a partir de uma obra importante para conhecer e interpretar o Brasil, que é “Casa-Grande & Senzala” (Gilberto Freyre, 1933).
No Brasil, advoga-se a ideia de que as relações entre brancos e negros não têm conflito. Brancos e negros na sociedade brasileira têm as mesmas oportunidades, são iguais. Quando, na realidade, isso é apenas um discurso que mistifica essa relação. Aqui no Brasil somos um paraíso racial. Então, a desigualdade que existe na sociedade brasileira é uma desigualdade social, é por mérito. A questão é por causa da pobreza e não por causa da cor da pele ou da raça da pessoa. Isso é uma falácia. Porque, de fato, é a cor da pele que marca essas relações no Brasil. Por isso que o Movimento Negro brasileiro denominou como mito da democracia racial.
Então, como “não existe racismo” e as pessoas têm uma baixa consciência política a respeito disso, as pessoas naturalizam, ninguém enxerga, não se colocam no lugar do outro. Por isso que a gente fala que o racismo é naturalizado. Vou dar um exemplo bem concreto: se um jovem branco de classe média é assassinado, é violentado pela polícia, a sociedade brasileira rapidamente se mobiliza. Os jovens negros são assassinados todos os dias. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Isso é natural. Ninguém se mobiliza. Essa dor dessa mãe preta diante do seu filho morto não mobiliza as outras mulheres mães no Brasil. Isso que é naturalizar essa situação.
Nesse sentido, o mito da democracia racial impacta a luta antirracista no Brasil. Porque é um mito muito forte, está entranhado na sociedade, está no discurso das pessoas. Isso é muito difícil de ser combatido. Então, é importante conhecer a história do Brasil, entender os movimentos sociais, para que a gente possa compreender como que isso se dá no dia a dia das pessoas. O mito da democracia racial é um desses desafios. Porque ele que vai calçar a ideia de naturalização dessas relações no Brasil.
E o que é racismo estrutural?
Por essa razão, o Movimento Negro, os intelectuais negros definiram o racismo no Brasil como racismo estrutural. Ou seja, o racismo estrutural é aquele que está além das relações pessoais, do preconceito. Então, quando a gente está falando de racismo estrutural, a gente está dizendo dessas relações que atravessam as estruturas de poder: o Poder Judiciário, o poder das universidades, das igrejas, das instituições. O racismo estrutural não é apenas o racismo institucional, porque as instituições são racistas, mas as pessoas não são (risos). As pessoas, às vezes, pensam que existe racismo, mas ninguém é racista.
O fato de negros não serem protagonistas, por exemplo, na teledramaturgia brasileira é natural. Essa falta de representatividade da população negra no mundo da propaganda, da publicidade, é natural. O fato de não ter quase nenhuma representação negra no Parlamento brasileiro é natural. Para a gente, isso é estrutural. Faz parte da estrutura de poder do Brasil e atravessa todas as instituições. E as instituições são constituídas por pessoas. Então, as pessoas levam para essas instituições a sua maneira de ver o mundo.
Então, essa invisibilidade planejada de mais da metade da população brasileira – nós somos 56% da população brasileira – é vista como uma coisa natural. Só que faz parte da estrutura, de como a sociedade brasileira se estrutura. Não só a sociedade, mas a nossa maneira de ver, de pensar, de comportar, as nossas atitudes etc. Isso que é racismo estrutural. Essa invisibilidade da presença negra no Brasil como uma coisa natural. Mas, na realidade, isso está por trás da estrutura de subjugar política e economicamente a população negra brasileira.
E aí toda a questão do negro e da negra na sociedade brasileira é reduzida à questão cultural. Então, parece que a gente não participa do PIB (Produto Interno Bruto), que nós não produzimos, que nós não consumimos, que nós não temos tecnologia, não temos ciência. Quando, na realidade, a população negra no Brasil também estrutura a sociedade, produz PIB, trouxe aportes civilizatórios importantes para o Brasil ser o Brasil que é. E essa negação dessa presença, dessa contribuição, faz parte do que nós denominamos de racismo estrutural.
Por que é importante ser antirracista?
Ser antirracista é ser efetivamente comprometido com a luta pela transformação da sociedade brasileira. Um exemplo: as pessoas ficaram perplexas diante do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. E, pela primeira vez, nós vimos sobretudo a juventude branca dos EUA participando do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Aqui no Brasil os jovens são assassinados e a indiferença da sociedade é tamanha. É muito grande. Ela não se mobiliza em relação a isso. Uma mulher é arrastada por um carro (Cláudia Silva Ferreira, arrastada por uma viatura da PM no Rio, em 2014) e a população, a classe média, não é com ela. Então, essa cumplicidade, esse silêncio faz parte do racismo estrutural.
Então, ser antirracista é efetivamente entrar nessa luta. Participar das mobilizações, sobretudo do Movimento Negro. Por que o Movimento Negro participa das lutas por democracia, das lutas pela democratização do Brasil, das lutas pela melhoria da qualidade de vida do povo brasileiro, e os outros não participam das lutas do Movimento Negro? Porque a luta para combater o racismo, combater as opressões, não é uma questão do negro, deveria ser uma questão nacional, uma questão da sociedade brasileira. É disso que se trata. Lutar contra o racismo beneficia não apenas os negros, mas, sobretudo, os brancos, na medida em que eles também são herdeiros dessa sociedade escravocrata, opressora.
Se nós queremos ter uma sociedade democrata, justa, fraterna e mais igualitária, é necessário que a gente participe desse processo, que nós sejamos educados para a democracia. Para isso, é necessário que negros e brancos estejam juntos. Mas só que para negros e brancos estarem juntos, os brancos deveriam irmanar na luta contra o racismo como uma luta central de compreensão da identidade brasileira. Isso, para mim, é ser efetivamente antirracista. É tomar atitudes que integrem, que visibilizem, que empoderem a população negra nos lugares de representação.
Como uma pessoa branca pode ser antirracista sem invadir o lugar de fala de uma pessoa negra?
A população branca, os brancos de uma maneira geral podem ser antirracistas. Mas ser antirracista não significa disputar com os negros o lugar de poder. Não querem poder tomar o lugar de protagonista. Essa é uma luta que os negros e as negras têm que protagonizar. E é importante a aliança e a unidade com os brancos. Então, os brancos têm que ser antirracistas, mas sem querer protagonizar essa luta e querer tutelar a participação da população negra.
Então, assim, você tem que ser antirracista e, ao mesmo tempo, não querer ser o dirigente desse processo. Ou apropriar-se da cultura do outro sem fazer referência à participação desse outro. Porque, na realidade, esse outro é semelhante. São os nossos semelhantes. Então, ser antirracista é, de fato, se solidarizar e participar efetivamente da luta política e da luta cultural de combate ao racismo na sociedade brasileira, de combate à desigualdade social e na luta por uma sociedade fraterna e mais igualitária. É isso.
Comente este post