* Anderson Barollo Pires Filho
Nativos da Idade Média, os arautos eram todos aqueles que tinham como função apregoar os sucessos do reino. Sempre vestidos com roupas extravagantes, eles proclamavam as últimas notícias, batalhas e ofertas da nobreza.
Mas o nobre ofício foi além do período medieval. A Igreja Católica, por exemplo, tratou de ter, da mesma forma, seus arautos para serem seus mensageiros — ou missionários — do “Santo Evangelho”.
Há também quem teorize que os pregoeiros foram os primeiros “garotos propaganda” da história, se tornando, assim, uma espécie de “pais da publicidade”. Precursores do merchandising ou não, fato é que o espírito arauto existe até hoje, em diferentes moldes.
Um exemplo? A política — em especial, a brasileira. É bem verdade que nossa cultura política sempre teve um caráter paternalista, populista e, por vezes, messiânica, mas nunca internalizamos tanto essa índole como nos dias atuais.
Em outras palavras: nunca tivemos tantos arautos políticos reverberando ao mesmo tempo. Mas, dentre tantos, há um que merece destaque.
O bolsonarismo
Um nome. Um mito. O assunto. O chamado “bolsonarismo” veio para ficar?
Para conseguir projetar uma previsão e responder essa pergunta, é necessário, primeiramente, retroceder e entender o fenômeno que foi — e ainda é — Jair Bolsonaro.
Nos últimos anos, o assunto mais pautado da mídia é, sem dúvidas, o presidente da República. Seu nome gera paixões e ódios, levanta multidões — de adeptos e opositores — e, definitivamente, roteiriza boa parte da vida dos brasileiros hoje.
Quem?¹ Como? Há vários caminhos para trilhar em busca dessas respostas, mas tomemos como ponto de partida uma outra pergunta: quando?
Crucial para compreender o caldeirão de desinteligência que se tornou o debate político, o ano de 2014 foi marcado, entre outras coisas, pelas eleições (as mais polarizadas e sujas da história, até então); a Copa do Mundo no Brasil (e o vergonhoso 7×1); o início da Operação Lava-Jato; e um ensaio para as eleições de 2018.
Enquanto as atenções eram voltadas a esses eventos, o então deputado federal Jair iniciava sua campanha eleitoral, não só para a reeleição como parlamentar, mas, também, para o cargo do Palácio da Alvorada.
Já conhecido (por alguns) por protagonizar polêmicas declarações em programas como o de João Kleber, SuperPop, CQC e Casos de Família, o atual presidente também foi um dos precursores da ativa atuação nas mídias sociais.
Pelas redes, Bolsonaro fez uma leitura política muito eficiente: um território fértil para replicar suas aparições em programas de TV, atingir uma massa e se tornar porta voz de valores — até então — “esquecidos” pela sociedade.
Assumindo o papel mais rígido do “antipetismo” — fracamente representado pelo PSDB até então — e preenchendo um (falso) símbolo conservador — que há tempos não exercia uma voz ativa — , o então parlamentar ganhava o apelido de “mito”.
No biênio 2015–2016, a principal pauta da mídia tradicional era o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Já em diversas bolhas do território virtual, o carro-chefe era a hashtag Bolsonaro2018.
No princípio, a ideia era levada como uma “zoeira”, um “meme” — e aqui cabe uma mea-culpa, não só minha, mas talvez, também, sua, que me lê agora — que projetou e ramificou o nome “Bolsonaro” como uma marca.
O que era cômico para uns, para outros era conteúdo, libertação e representação. O pobre — mas oportuno — revisionismo histórico, cultural e ético exercido por Jair foi sua maior expertise.
No país que precisa se reconhecer como paciente e que não conhece sua própria história, aquele que se apresenta como incorruptível e defensor da verdade “que liberta” tem tudo para ser bem sucedido.
Então, em abril de 2016, quem ainda não conhecia Jair Bolsonaro passou a conhecer: seu discurso na votação de abertura para o impeachment da então presidente Dilma repercutiu em todo Brasil, chegando a ser matéria no Jornal Nacional.
A homenagem a um torturador, embora repugnante, foi mais uma cartada política para consolidar, de uma vez por todas, seu nome em todo o país.
Ele que, desde 2015, já vinha visitando os estados brasileiros para participar de eventos e palestras, agora era recepcionado por multidões em aeroportos aos gritos de “1, 2, 3, 4, 5, 1000: queremos Bolsonaro presidente do Brasil”.
Assim, no biênio 2017–2018 restaram apenas três caminhos para aqueles que consideravam o “mito” como “meme”: continuar levando-o como uma cômica e bizarra caricatura; comprar seu discurso; ou entender que ele era um forte candidato para levar a faixa presidencial.
De fato, qualquer uma das três alternativas acabava fortalecendo a campanha do ex-capitão.
Os dois primeiros caminhos — trilhados pela grande maioria — revigoravam a marca do então deputado fluminense. Já para a terceira opção, embora pudesse frear sua ascensão, já era tarde demais: era ano par, período eleitoral.
O que foi considerado “fenômeno”, na verdade, foi — sabiamente — construído de há muito. Enquanto seus adversários entravam em uma disputa eleitoral, Jair Bolsonaro já havia iniciado a sua há quatro anos.
O resultado? Era óbvio: sua eleição. Mas houve, ainda, aqueles que negaram — o velho e bipolar negacionismo da terra dos papagaios² — até as últimas o evidente, o real.
Há também quem atribua a facada do dia 6 de setembro de 2018 como determinante para o resultado das eleições. De fato, houve uma comoção e seu nome — que já era o favorito — passou a ser a pauta principal dos jornais e do debate público.
O fato é que a facada foi, nada mais, que o triste cume de algo escancarado: nossa polarização. A eleição já estava ganha.
O lamentável atentado acabou se tornando uma justificativa plausível para o que já iria acontecer: a sua ausência nos debates, que ele próprio já havia especulado não participar mais.
2020: um ano pandêmico
O país vive hoje um leque de crises: sanitária, econômica, institucional, política e social.
Sanitária porque somos o 2º no mundo em números de infectados pelo coronavírus e o presidente minimiza a situação; politiza o vírus e um remédio; troca e perde ministros da saúde em menos de 30 dias e mantém há mais de dois meses — em plena pandemia — um interino à frente da pasta.
Econômica porque, com o agravamento da pandemia e as diversas outras instabilidades, o desemprego segue aumentando, empresas estão fechando e as previsões apontam para a maior recessão da história do país.
Institucional devido aos constantes ruídos e atritos protagonizados, principalmente, entre os poderes Executivo e Judiciário; as repercussões da saída do ex-juiz e ministro Sérgio Moro, o caso Queiroz³ — que acaba impactando o governo — e a desgastada imagem que o país passa ao cenário internacional.
E, por último, crise política e social, por consequência das instabilidades brevemente elencadas acima. Ainda assim, as pesquisas mostram que Jair segue com um apoio e aprovação de 30% da população brasileira.
Portanto, voltemos à questão inicial: o bolsonarismo veio para ficar?
Se gerarmos um recorte no seu apoio atual, encontraremos duas categorias: um núcleo duro (aqueles que acreditam em tudo que o presidente diz) de aproximadamente 15% e outros 15% que, mesmo não indo às ruas apoiá-lo, avaliam bem seu mandato.
Ou seja, 50% do seu eleitorado apoia-o incondicionalmente, aconteça o que acontecer; e os outros 50%, embora não totalmente alinhados com seus pensamentos, considera-o a melhor — ou a menos pior — opção.
Embora as últimas pesquisas apontem que 70% consideram seu governo regular ou ruim, não se pode — ou não se deveria — negar a expressividade que o ex-capitão ainda mantém. O fato é que se houvesse uma eleição hoje, Bolsonaro estaria no 2º turno.
Sendo assim, não é difícil entender que, para uma parcela significativa, a novilíngua do Jair⁴ prevaleceu, e que, mesmo com inúmeros motivos para terem abandonado “a causa”, eles seguem bradando como fiéis arautos do presidente.
Para aqueles que acompanham e estudam — com a frieza necessária — os atos do presidente, é notório que, no fundo, não há nada de inesperado ou aleatório. É tudo muito previsível, constante.
O Messias, mas não milagreiro, está em um incessante ciclo vicioso: uma eterna campanha eleitoral. O seu modus operandi tem nome: populismo. Seu projeto? Não é de país, é de poder. Um específico poder.
Por fim, ao invés de trazer respostas, proponho novas perguntas: esse movimento nasceu em 2014 ou ele sempre existiu, mas agora com um porta-voz? Ele tem extensões? O que mais pode ou deve acontecer para mudar a percepção de seus apoiadores? Quais são as surpresas — se é que há — e regras desse governo?
É oportuno lembrar também que para se conquistar um coletivo ou ganhar uma eleição, poucas palavras, causas e bandeiras atendem. Já para gerenciá-las, principalmente em uma crise, demanda mais repertório, mais engenho, logística.
Em meio a tantos arautos e messias, seguimos como na Idade Média: negando o evidente. Mas agora não mais pela ausência de luz e sim pela cegueira do seu excesso. Com tanta claridade, quem se atreve a abrir os olhos?
Notas de rodapé
¹ Quem? Para os interessados sobre o perfil do “bolsonarismo”, indico o texto do meu colega e editor chefe da Revista Brado, João Vitor Castro: Quem são os olavistas?
² A terra dos papagaios. Texto de minha autoria já publicado pela Revista Brado sobre os grandes problemas que o país enfrenta, entre eles o negacionismo. Clique aqui e leia.
³ O caso Queiroz. Leia mais sobre o caso que envolve o senador Flávio Bolsonaro e as ligações com o STF em meu artigo Do Bagaço a toga, publicado pela Revista Brado.
⁴A novilíngua do Jair. Confira na íntegra meu texto A república “pastel com caldo de cana”, publicado pela Revista Brado.
* O autor é estudante de Jornalismo, colunista de política na Revista Brado e colaborador do Jornal Correio9
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