Elias de Lemos (Correio9)
As críticas à qualidade da educação brasileira são comuns, do mesmo modo que é rotineiro assistirmos comparações dos problemas brasileiros com questões semelhantes de países mais desenvolvidos. O Enem, que se inicia neste domingo, oferece razões para uma reflexão particularizada do problema educacional brasileiro por pelo menos duas razões: a primeira, pela tensão que antecede ao exame e na forma pedagógica, aplicada às aulas, caracterizadas por shows de professores, em auditórios superlotados, ginásticas e por aí vai. A segunda razão pode ser colhida depois da prova, na reação, quase (?) unânime ao conteúdo da avaliação, em especial à redação.
Estes dois pontos nos conduz a outros: 1) a maneira como os estudantes estudam; 2) a maneira como os professores ensinam; e 3) ao tipo de conhecimento que tem sido valorizado no processo de ensino-aprendizagem. Por que existe esta cortina entre o Enem e o ensino prestado pelo sistema educacional? Por que os estudantes precisam fazer cursos preparatórios para o exame, revelando a desconexão entre a escola e o conteúdo da prova?
Mas, por outro prisma, esta reação colabora para um entendimento mais amplo e sistemático das outras crises que ocupam o debate brasileiro, neste momento em que o país parece ter perdido o a capacidade de discernimento.
Esta mesma falta de entendimento, pode ser observada em outras discussões, em que assuntos como corrupção na Petrobrás, Lava Jato, corrupção no governo, na Câmara, no Senado e a crise econômica, são todos discutidos dentro do mesmo “caldeirão”.
O Brasil vem pagando um alto preço pela ignorância do seu povo: jornalistas de televisão a serviço de governos estrangeiros, jornalistas aliados a partidos políticos e envolvidos com empresários corruptos, ministros do Supremo Tribunal Federal declaradamente partidários. Os presidentes da Câmara e do Senado sendo investigados, e, negando os fatos, a Câmara Federal não tem tido o mínimo pudor em manter no cargo, um presidente desacreditado, rejeitado pela população, denunciado pela Procuradoria Geral da República, o qual está arrastando o país para o caos absoluto. Enquanto isto, muitos brasileiros declaram nas redes sociais, onde a maioria se informa, publicamente seus atestados de demência ao pedir a volta da ditadura. E, ainda, como se não bastasse tudo isto, vem-se tratando de ressuscitar a defesa do armamento de civis, exatamente no momento em que se dissemina a cultura do ódio e a violência dispara no país.
Todas as crises brasileiras podem ser analisadas a partir de um mesmo ponto: a educação. Mesmo que existam grandes profissionais no país, grandes universidades, grandes mestres, pesquisadores renomados, grandes juristas, todos são frutos de um sistema deformado.
A educação brasileira tem raízes no positivismo francês de August Comte (1798-1857). Os principais pontos do pensamento comtiano gravitam em torno da completa reforma intelectual do homem. Segundo ele, assim, seria possível uma mudança radical no pensamento e no comportamento em sociedade. Para tanto, considerava, o papel da física social e a ciência, como ordenadores da sociedade positiva, o que implicava na substituição do estado teológico pelo estado metafísico. Daí, com a valorização da ciência, se estabeleceria o estado positivo com desenvolvimento político, social, ordem e progresso.
No Brasil, as ideias de Comte influenciaram, em especial, a educação técnica-militar e a Constituição Republicana, chegando ao ponto de se tornar lema da bandeira nacional. Mas, ao contrário da física social, aqui permaneceu a ordem hierárquica, com uma preocupação excessiva com a ordem social, sem realçar a natureza dos conflitos. Desse modo, o Brasil desenvolveu uma educação, não como um processo de socialização, mas, tecnicista, para resolver problemas e controlar a sociedade.
Para outro francês, o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), diferentes de outras espécies, o ser humano não possui o conhecimento necessário à vida em sociedade, e a educação incute outra natureza, a qual o afasta da natureza egoísta, contemplando valores morais e as normas da sociedade. Uma vez incorporados os valores e as normas, os indivíduos reproduziriam isso na sociedade, o que tornaria a vida em grupo, harmônica e coesa. No pensamento de Durkheim, a diferenciação e o individualismo precisavam do equilíbrio de uma força superior, a qual ele denominou “solidariedade orgânica”, para definir as leis que ligam os indivíduos.
A constituição histórica brasileira – onde o capitalismo começou às avessas, pois a economia escravagista era incompatível com a existência de um mercado – é vista como prejudicial, do ponto de vista da solidariedade orgânica, e como causa da anomia e falta de coesão social. O familismo, o personalismo, o patrimonialismo e o autoritarismo acentuam a falência das nossas principais instituições: o Estado, a família e a escola.
Enquanto isto nos países desenvolvidos, as leis são valorizadas, estão acima dos interesses individuais, e os problemas são resolvidos no âmbito da justiça, independente da posição social. No Brasil, o “jeitinho”, não é exceção, e sim regra, e isso deturpa a lei. Essa dificuldade que o brasileiro tem de obedecer, às leis, resulta em formas paradoxais de convívio social, e alimenta o desejo de alcançar o objetivo com o menor esforço possível, com o uso do “jeitinho”. Daí decorre a valorização da vida de “grande senhor”, o gosto, e a vontade, de ser grande personalidade, para ter prestígio. Como resultado disso, construímos uma sociedade de indivíduos com vontade de mandar, e disposição para obedecer aos mandões aos quais estão aliados.
Outro ponto é a desigualdade e a exclusão do processo educacional brasileiro, que resumo em quatro pontos: 1º) porque temos uma educação tecnicista – para o trabalho manual – destinada aos pobres; 2º) porque a nossa educação humanística – para o trabalho intelectual – está reservada aos ricos; 3º) a inacessibilidade da população rural à educação; e em quarto existe a tendência de arremedo, de copiar técnicas pedagógicas de fora, incondizentes com a realidade brasileira.
Pressionado por organizações internacionais para promover a inclusão, o país vem multiplicando o número de vagas nas escolas e nas universidades, mas sem a devida conexão com a realidade. A ampliação do acesso à educação, no Brasil, não está necessariamente vinculada à qualidade da educação. Basta observar a mercadorização do ensino com instituições sem compromisso com a educação, voltadas apenas para o lucro. O resultado disso é uma sociedade com o monopólio das posições de mando em apenas uma classe social.
Este sistema alimenta o processo educacional com pouco gosto pelo saber, pela leitura e pelo valor do conhecimento, por ele mesmo, sem um fim específico em si.
Antes de ter acesso à educação de qualidade, trabalho e salário, que lhes permitam a dignidade, os indivíduos são transformados em consumidores. Assim, valores como cidadania, democracia e solidariedade, são substituídos pela participação não-social, mas no universo do consumo, onde o “ter” prevalece ao “ser”, ou o “parecer ter”, pois essa passa a ser a chave para o reconhecimento social. Numa sociedade assim, o diploma é o que importa, porque depois se dá um “jeitinho”.
Aquela imagem de igualdade, veiculada nas propagandas que induzem ao consumo, produz a ilusão de que pessoas de realidades diferentes possuem necessidades semelhantes, estimuladas pelo consumo. Muitas vezes, as pessoas não percebem que estão sendo condicionadas.
Neste sentido, o grande desafio, da educação brasileira, é o de estimular o educando, para despertar a consciência do que é o conhecimento, de que ele nos ensina a ver o mundo e nos liberta das ditaduras do consumo, da beleza e da imagem, que tanto mascaram a verdadeira condição humana.
Diante disso, como subverter a lógica alienante, a padronização cultural e a subordinação social mascarada no discurso de liberdade de escolha, como propaganda de consumo? E mais, como reverter esta situação em uma era em que as os nossos estudantes substituíram os livros pelas redes sociais?
Para o socialista Karl Marx (1818-1883), o elemento básico para pensar a sociedade é o trabalho, porque ao transformar a natureza que o cerca, o ser humano desenvolve o pensamento e a sua consciência, o que transforma a sua própria natureza e o humaniza. Já o capitalista Adam Smith (1723-1790), examina criticamente o pensamento moral, e sugere que a consciência surge das relações sociais e explica a origem da capacidade da humanidade em formar juízos morais, apesar da natural tendência dos homens ao auto interesse, mas que a consciência moral deve ser fiscalizada pelo Estado, a fim de evitar que o egoísmo – ou o “jeitinho” – prevaleça sobre as regras.
Para o patrono da educação brasileira, Paulo Freire, “seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.
* O autor é professor de Economia, jornalista e editor-chefe do Correio9
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