Vagner Martins
Está em fase inicial, porém, não tão embrionário assim, as negociações que visam buscar parceria entre público e privado para reconstrução de uma réplica do Casarão dos Escravos em Nova Venécia. Um projeto polêmico, que se avançado, trará impactos ambientais e culturais irreversíveis.
De autoria de um engenheiro que é bisneto do Barão de Aymorés, o projeto de reconstrução de uma réplica do Casarão dos Escravos possui forte cunho comercial, e também é apresentado como cultural e inovador. Entretanto, há elementos a serem questionados, como o impacto na área de proteção ambiental e a afronta às comunidade indígena e afrodescendente.
É importante e necessário que a atenção da comunidade veneciana se volte para os aspectos ambientais e culturais, pois interesses comerciais podem se sobrepor a estes com a evolução das fases do projeto. Vamos falar mais sobre tais aspectos adiante.
Ambientais – a intenção do projeto é utilizar a área original do casarão, que atualmente fica dentro da APA (Área de Proteção Ambiental), no entorno da Gameleira, Pedra do Elefante e o Santuário da Mãe Peregrina. Área sensível que possui os mais interessantes e visitados pontos turísticos de Nova Venécia. Portanto, trata-se de um espaço que requer atenção de ambientalistas e também da sociedade civil veneciana. Ressalto que no caso de continuidade do mesmo, a geografia desses espaços passará por alterações, muitas vezes permanentes.
Culturais – tal projeto reviverá a memória de dor e opressão dos escravos que viveram nas senzalas dessa antiga fazenda. É um afronto à comunidade afrodescendente, e também à memória dos escravos e indígenas que ali amargaram dias de dor e sofrimento.
A ideia do projeto seria interessante se não ignorasse fatores culturais e ambientais que envolvem, de um lado, a memória dos povos indígenas, e de outro a insensibilidade em recriar um ambiente que retrata a dor e o sofrimento inimaginável dos escravos que viveram nas senzalas dessa fazenda.
Para compreender o que a composição dessa réplica representa, é preciso rememorar a história da cidade de Nova Venécia e qual ligação direta desse projeto para a comunidade afrodescendente, principalmente na atualidade, em que comunidade negra tem sido fortemente representada através do movimento mundial Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), e busca por igualdade de oportunidades. Todo e qualquer movimento no sentido de exaltar figuras escravocratas terá atenção e oposição do movimento.
Os primeiros habitantes que ocuparam o território do atual município de Nova Venécia foram os indígenas Aymorés.
Os indígenas, ao fugirem dos combates com as forças portuguesas, se refugiaram nas cabeceiras do rio da cidade.
A primeira penetração no território efetuou-se em 1870 pelo major, Antônio Rodrigues da Cunha, o Barão dos Aymorés.
O Barão dos Aymorés foi o responsável pela introdução dos italianos no Norte do Estado. A cidade de Nova Venécia recebe esse nome em homenagem à região de Vêneto, na Itália.
Construído entre 1870 e 1873, o Casarão dos Escravos, como é popularmente conhecido, foi residência do barão de Aymorés que possuía mais de 100 escravos.
É oportuno destacar o protagonismo de dois povos que viveram em terras venecianas, os indígenas e os escravos. Os objetivos distintos dessas três figuras (barão, indígenas e negros) se cruzaram e ficaram marcados para sempre na história do município de Nova Venécia.
Não nos esqueçamos que a riquíssima cultura do povo indígena que habitou a região do nosso atual município se perdeu com o genocídio e etnocídio praticado contra eles.
O projeto de reconstrução de uma réplica do casarão do barão, que possuía escravos e os mantinha nas senzalas, é recebido como uma ofensa na comunidade afrodescendente veneciana, que sempre teve pouco ou nenhum incentivo público, a exemplo do atual momento de pandemia em que não há recursos para incentivos de representatividades culturais do movimento, como a semana da consciência negra.
Na outra ponta vale lembrar que o município tem uma forte influência da comunidade italiana e onde a cultura italiana se beneficia por anos dos investimentos públicos.
A um visitante que passe pela cidade de Nova Venécia, não faltará elementos para reconhecer a presença da cultura italiana, que vai desde a arquitetura da prefeitura às festas tradicionais da Itália.
Foi pela introdução do escravocrata Barão dos Aymorés que a imigração italiana se deu ao município de Nova Venécia.
É inegável a contribuição de algumas famílias italianas que ajudaram a construir a história do município, porém, igualmente devemos reconhecer que estes foram os primeiros cotistas (bolsistas) a se beneficiarem do decreto número 528, de 28 de junho de 1890 – Publicação Original.
O site oficial da Câmara dos Deputados detalha todas as leis que beneficiaram, objetiva e claramente, os europeus no Brasil.
Um empurrão do governo brasileiro que foi desde passagens pagas, terras doadas ou vendidas a preços irrelevantes a auxílio pagos às famílias a depender do número de pessoas.
Sob o pretexto de embranquecer a sociedade brasileira, o estado brasileiro promoveu apoio ao imigrante que se beneficiou de apoio irrestrito. Tais benefícios não se estenderam igualmente ao negro pós-escravizado.
É importante entender o que foi essa configuração que deu base ao Brasil da atualidade para compreender como o racismo estrutural está nas entranhas da sociedade; o racismo que no Brasil acontece de forma velada.
Para o Movimento Negro o que ficam são perguntas como: quantos negros quiseram uma casa e não tiveram?
Projetos como esse dão protagonismo unicamente ao colonizador branco, exaltando a casa grande, a casa branca que é símbolo da opressão, é o símbolo do mando que era o homem branco mandando na mulher, mandando na escrava, mandando em todo mundo num patriarcalismo absoluto, devem ser questionados.
Como compensação e oposição a esse projeto que fala em cultura e história de Nova Venécia, mas que a intenção comercial não contempla a real história do casarão e traz impactos ambientais, ao leitor e ao cidadão veneciano que quiser conhecer mais sobre a cidade, é recomendado valorizar o que já possuímos de concreto e histórico, como a fazenda da Dona Ercila, que é histórica e conta com um mini museu. Certamente ao visitá-la é possível reviver a história sem impactos ambientais e culturais, e sem invisibilizar os desafios que a comunidade negra e indígena tanto luta. Além de desfrutar de uma bela visão natural, como os ciclistas venecianos têm feito, sem alteração geográfica que essa região presenteia.
Visitem o museu!
Em minhas viagens a Europa tive o privilégio de visitar alguns museus, e não há como negar o encanto que a arte e a história proporcionam a um visitante. São momentos mágicos em que pessoas de diferentes lugares do mundo se conectam em apreciação de duas ciências: a arte e a história.
A história é certamente uma das ciências mais importante na vida de um indivíduo, pois foi ela que não somente contribuiu para compreendermos alguns elementos que nos possibilitaram chegar até aqui, como também é dela que devemos nos valer para que não sejamos enganados mesmo quando disfarçadamente tentam.
Mais uma vez a história tem seu fundamental papel em não nos deixar cair em esquecimento sobre o que foi a escravidão e suas cruéis consequências ainda nos dias atuais.
Por fim, vale questionar em como esse recurso (seja de qual área que possa vir) seria altamente bem recebido para financiamento de projetos de educação. Educação liberta. Conheceis a educação e seu conhecimento o libertará.
Referências: Wikipédia; site oficial da Câmara dos Deputados; site oficial da cidade de Nova Venécia e representantes intelectuais do Movimento Negro da cidade.
* O autor é administrador e cidadão veneciano – verdadeiramente apaixonado por Nova Venécia – e ativista do Movimento Negro
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