Gláucia Gomes nasceu e cresceu em Araraquara, interior de São Paulo. Em 2011, aos 23 anos, conseguiu na própria cidade o primeiro emprego com carteira assinada e começou a trabalhar como copeira no Hospital Beneficência Portuguesa.
Em meio a tarefas do dia a dia, conheceu Cota, uma senhora que vivia no hospital havia 50 anos. “O que contam é que ela chegou ainda criança, vítima de um atropelamento, e por lá passou vários meses internada. Depois, acabou ficando em um quartinho e, com o tempo, passou a ajudar na cozinha, limpando mesas.”
Parece inacreditável uma pessoa viver por tanto tempo sem nenhum documento, nome ou sobrenome. Apenas Cota.
“Até a idade dela foi estipulada com base no que contam. Ela chegou ao hospital quando não existia o pontilhão do bairro Quitandinha, onde aconteceu o acidente, então, como o pontilhão tem em torno de 50 anos, calcularam a idade dela atual entre 62 e 66 anos”, conta Gláucia. “Para mim, no início, ela era como qualquer outra funcionária do hospital, mas tudo mudou quando percebi que ela não tinha ninguém.”
“Perdi o emprego, mas ganhei outra filha”
Em 2016, Gláucia, que já estava casada e havia se tornado mãe da pequena Emily, na época com 1 ano e 4 meses, recebeu a notícia de que o hospital Beneficência Portuguesa de Araraquara iria fechar.
“No começo, o que chegou para os funcionários era que o hospital passaria por uma reforma e logo depois seria administrado por uma empresa de Brasília”, relembra.
Nesse meio tempo, a situação de Cota veio a público, e a idosa foi levada por autoridades locais para um abrigo. “No dia seguinte eu estava lá para buscá-la. Naquele momento, na minha cabeça, pensei: ‘Bom, por enquanto ela vai ficar comigo. Quando o hospital reabrir, ela volta para a ‘casa’ dela e eu volto para o meu trabalho”.
A boa intenção de Gláucia acabou gerando muitas dificuldades, mas nenhuma foi maior do que o sentimento de amor e lealdade que estava crescendo entre ela e dona Cotinha.
“O hospital realmente fechou, e a Cota continuou na minha casa. Não iria conseguir dormir se a tivesse levado de volta para o abrigo, onde não conhecia ninguém. Não queria que ela revivesse tudo o que passou durante a infância e a adolescência. Naquele dia, minha ficha caiu: ela estava comigo. Foi então que prometi cuidar dela como cuido da minha filha.”
A casa das três mulheres
Desempregada, Gláucia precisou se virar. Ela conta que teve a ajuda do marido, de quem se separou tempos depois, da irmã e dos pais.
“Teve muita gente que falou que eu não iria conseguir, que era melhor não ter ficado com ela. Mas eu não escutei. Se a minha família me apoiou, por que eu daria ouvidos para outras pessoas?”
Cota, que apresenta certa dificuldade de raciocínio e comunicação, foi entendendo aos poucos qual era o seu novo lar. “Ela entende o que é certo e o que é errado. E o presente. Por exemplo, se eu falar pra ela: ‘Cota, hora de tomar banho’, ela vai. Se eu falar: ‘Cota, amanhã vamos ao médico’, ela já não vai entender nada”, explica Gláucia.
Quando busquei as roupas dela no hospital e coloquei tudo junto no guarda-roupa da minha filha, ela me abraçou, emocionada, e disse: ‘Tadinha, tadinha’. Acho que, ao longo dos anos, Cota ouviu tanto essa palavra, por conta da sua situação, que passou a considerar ‘tadinha’ uma expressão de carinho.”
Mãe de duas
Após a decisão, Gláucia conseguiu um novo emprego, justamente em uma casa de repouso. Como cuidadora, ela teve a chance de incluir Cota ainda mais em sua rotina: “Eu acordo cedo, levo a Emily para a creche e depois sigo com a Cota para o trabalho. Lá ela se distrai, almoça e participa de atividades ao lado de outros idosos”.
“Ela é totalmente independente. A única coisa que requer mais cuidado é com a alimentação. Como ela tem dificuldades para mastigar, a comida tem que ser pastosa, por isso sempre preparo sopas”.
A cuidadora se emociona ao falar da relação de Cota com a filha. “É como a de uma irmã mais velha. Ela tem um carinho enorme, e isso é o que mais me encanta. Quando a Cota vê a Emily fazendo arte, ela me avisa: ‘Mamãe, ó o neném, ó’. Ela é totalmente leal e tenho certeza de que faria tudo por nós.”
Maria Cotinha
Mesmo com todo o sentimento de amor e dedicação, faltava ainda para Gláucia oficializar essa relação tão especial. Foi quando ela teve a ideia da adoção.
Como, pela lei, o adotante precisa ter 16 anos a mais do que o adotado, advogados ajudaram Gláucia a dar o seu sobrenome para Cota.
“Quando me disseram que poderiam colocar meu sobrenome, eu adorei. Afinal, se você olhar pra ela e falar a palavra mãe, ela vai apontar pra mim. O que eu sinto por ela é isso, o mesmo amor que sinto pela minha filha.”
Hoje, Maria Cotinha dos Santos Gomes tem documento de identidade e certidão de nascimento. A data definida foi 12 de outubro, Dia das Crianças, quando as funcionárias do hospital comemoravam o aniversário de Cotinha. Em 2019, ela completa 67 primaveras.
“Ainda quero muito que meu nome conste como mãe na filiação da Cota. Por isso, um pedido de adoção inversa vai ser apresentado ao juiz. Isso seria mais uma forma de protegê-la, já que a tornaria, pela lei, parte da minha família.”
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