Elias de Lemos (Correio9)
O processo de privatização trata da transferência de bens, de propriedade do setor público, ao setor privado. Ele foi iniciado, na década de 1980 no Brasil, intensificado nos anos 1990 e está de volta à pauta do governo em 2017. Seus defensores argumentam que nas mãos da administração privada, estas empresas contribuem mais para o desenvolvimento do país. Por outro lado, os desfavoráveis à privatização acusam que este processo acentua outro: o da terceirização da economia.
As empresas estatais brasileiras surgiram a partir do movimento de substituição de importações, iniciado na década de 1950, a fim de criar um parque industrial nacional e reduzir o peso das importações sobre a renda dos brasileiros. É simples: ao importar, o brasileiro transfere renda para outros países, portanto mandando o lucro para fora. Foi com o intento de diminuir a saída de renda do país que, na década seguinte, foram criadas empresas, com grandes investimentos, em setores estratégicos como energia, siderurgia, mineração, comunicação e transportes. A injeção de dinheiro do governo foi fundamental para a construção dessas empresas, dado que o empresariado nacional não dispunha de capacidade para o tamanho dos investimentos. Assim, o projeto de substituição de importações, financiado inteiramente pelo governo, exigiu grandes sacrifícios de toda a nação.
A partir dos anos 1990, o governo, apoiado no argumento de que as estatais estavam defasadas tecnologicamente e sem capacidade de investimento em inovação, executou o Plano Nacional de Desestatização, PND, que resultou na venda de mais de cem empresas.
Mas, além deste argumento, existem outras razões que explicam o processo de privatização brasileiro, e suas raízes na ordem econômica internacional. A partir do final da década de 1970, a palavra privatização passou a aparecer, com destaque, no discurso político pelo mundo afora. A Crise do Petróleo, que se desenrolou entre 1973 e 1979 criou o ambiente para as mudanças econômicas que reorientaram a economia mundial a partir da década de 1980.
Os preços, durante a crise, provocaram uma sangria de dólares do mundo para os países filiados à OPEP – Organização dos Países Produtores de Petróleo – os quais tiveram um acúmulo monumental de dinheiro, os chamados “petrodólares”, que se somaram aos “eurodólares”, ou o dinheiro que havia sido transferido, anteriormente, pelos Estados Unidos para a reconstrução da Europa após a Segunda Guerra. Ao final da crise, em 1979, a primeira-ministra da Inglaterra, Margareth Thatcher, buscando tirar proveito desta situação, baixou medidas de liberalização da entrada e saída de capital internacional em território inglês, o que significou menor, e até ausência, de controle por parte do governo.
Com esta nova forma de tratamento, e maior acesso ao dinheiro internacional, a Inglaterra, privatizou, investiu e estabeleceu reformas trabalhistas. Porém, é importante lembrar de que o governo inglês não adotou estas medidas com a finalidade de pagar contas, mas de reduzir o tamanho do Estado. No Brasil, acontece o oposto, o governo está lançando mão de tudo o que pode – e até do que não pode – para arrecadar dinheiro para pagar os juros da Dívida Pública.
O sucesso alcançado pela Inglaterra despertou interesses, e suas práticas foram seguidas pelos Estados Unidos em 1980, com Ronald Reagan, pelo chanceler Helmut Kolh da Alemanha em 1982, e por Schullter na Dinamarca em 1983, e daí se espraiando pelo mundo. Nesta fase a palavra Neoliberalismo entrou em voga, como denominação de uma nova etapa do capitalismo, em que o sistema financeiro assume o papel de protagonista do sistema. O capitalismo financeiro é a caracterização do capitalismo pelo crescimento da especulação financeira em torno de ações de empresas, juros, títulos de dívidas governamentais e outras formas de crédito que se transformaram em mercadorias, sendo comercializadas como tais. Quando a grande imprensa fala de “mercado”, ela está se referindo a estas coisas.
No Brasil, o neoliberalismo se apresentou no final dos anos 1980, através da abertura econômica, iniciada pelo governo de Fernando Collor de Mello. Mas foi a partir de 1994, no governo de Itamar Franco, que as políticas liberalizantes começaram a ser adotadas.
As privatizações no Brasil têm origem no Consenso de Washington, realizado em 1989, que apresentava uma série de recomendações, para a condução econômica, que funcionaram como meio de pressão internacional para a adoção do neoliberalismo, especialmente pelos países subdesenvolvidos. Desse modo, orientadas pelo Fundo Monetário Internacional, FMI, as diretrizes do Consenso foram difundidas, e serviram de base para as privatizações brasileiras.
As privatizações do período de 1995 a 2005 renderam R$ 95 bilhões, mas para vender suas empresas, avaliadas em R$ 38 bilhões, o governo fez várias concessões; o montante de benefícios concedidos aos compradores, de diversas formas, foi de US$ 45,168 bilhões: foram US$ 15,919 bilhões em créditos tributários; US$ 8,958 bilhões de “moedas podres” (dívidas do governo em poder dos bancos, como o nome diz, não tinham quase nenhum valor de mercado); e US$ 20,289 bilhões em financiamentos concedidos antes e depois das privatizações. Ao final das contas, a constatação é a de que o governo doou as empresas e, ainda, pagou aos compradores.
Em 2005 o Brasil liquidou a dívida com o FMI e se livrou das exigências da instituição; quatro anos depois, se tornou emprestador. Agora, em 2017, pelo menos quatro motivos indicam que o país vai voltar a bater às portas do Fundo: a sustentação da dívida pública, o déficit público, o déficit da balança comercial e a manutenção do valor do Real.
No centro da privatização está a minimização dos gastos com a folha salarial, uma vez que o número excessivo de funcionários é diminuído e, sempre que possível, os cargos passam a ser terceirizados. Entre 1995 e 2005, o número de empregados em empresas privatizadas nesse período caiu de 95.000 para 28.000 trabalhadores, uma queda superior a 70%. Enquanto isso, nessas mesmas empresas, a lucratividade deslocou-se de 11 bilhões de reais para 110 bilhões de reais, um aumento de 900%.
Outros países, como Argentina, Venezuela, Equador e Bolívia enfrentaram crises e recessões econômicas, decorrentes da perda de controle de suas dívidas. A Argentina esperou até o colapso, antes de agir, em 2001; já a Venezuela e o Equador decidiram fazer auditorias das suas dívidas, e acabaram descobrindo que a maior parte delas não existia, mas se tratava de dívidas prescritas ou de esquemas de corrupção. No Brasil, a ex-presidenta, Dilma Rousseff, se recusou a promover a auditoria da dívida, e o governo de Michel Temer apresentou o plano de privatização, mudando o foco da discussão, deixando de falar na dívida e da incapacidade de pagamento dos juros, mudando o foco para a Previdência Social.
A privatização pode causar efeitos positivos na economia, quando os recursos obtidos são destinados ao pagamento de parte do capital da dívida a fim de reduzir a incidência de juros, e favorecer a capacidade de investimento do governo, na economia. Porém, o programa apresentado pelo governo brasileiro está associado à necessidade de provisão de dinheiro para paliar o desejo dos seus credores, insatisfeitos com o não-recebimento dos juros integrais, devidos anualmente.
Nos 21 anos entre 1995 e 2016 o Brasil pagou R$ 3,875 trilhões de juros; a dívida atinge R$ 3,350 trilhões e os juros comprometem 43% do orçamento. A privatização, anunciada pelo governo, de R$ 44 bilhões, corresponde a 9,2% dos juros pagos em 2016.
As dúvidas são: depois de privatizar o que resta, qual será o próximo passo? Como o governo vai continuar sustentando a dívida? A dívida já se tornou, ou pode se tornar um fardo, impossível de ser sustentado? O peso e o custo dos juros podem gerar um repúdio geral à dívida, e obrigar o calote por parte do governo?
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