Elias de Lemos (Correio9)
No ano de 1993, o então ministro, FHC, iniciou um plano econômico de estabilização conhecido como Plano Real, concebido e executado em três etapas.
A primeira fase do Real foi implantada com o Programa de Ação Imediata (PAI), em 14 de junho de 1993. Para que as finanças públicas pudessem ser equilibradas, o governo reconhecia a urgência de se efetuar uma ampla reorganização do setor público e de suas relações com a economia privada. Para isso o Plano previa um ajuste fiscal nas contas públicas.
Dentre os problemas com os quais o governo se defrontava, destacava-se a falta de recursos para execução dos serviços básicos, e a incapacidade para realizar os investimentos necessários ao desenvolvimento do país.
Neste âmbito o governo passou a tomar medidas como: combate à sonegação, procurando assim aumentar a eficiência administrativa; restabeleceu as relações financeiras entre o governo federal e outros níveis de governo, buscando reduzir as transferências de recursos federais, regularizar o pagamento de dívida vencida para com a União e impedir o retorno de estados e municípios à condição de endividamento insolúvel. Promoveu uma reestruturação dos bancos estaduais e federais, de modo a racionalizar suas estruturas, tornando-os mais competitivos; e, privatizou várias estatais, na tentativa de atingir o equilíbrio financeiro.
Porém, uma reportagem do jornal Folha de São Paulo, de 5-12-1999, apresentou um balanço geral das privatizações federais, com importantes informações sobre como se deu o aquele programa. Pelos cálculos, as privatizações realizadas até 1999 teriam rendido ao governo federal US$ 56,171 bilhões, contra um patrimônio líquido total estimado em US$ 38,305 bilhões. O volume sobre o patrimônio líquido das empresas privatizadas foi de apenas US$ 17,865 bilhões. Já o montante de benefícios concedidos aos compradores, de diversas formas, foi de US$ 45,168 bilhões: foram US$ 15,919 bilhões em créditos tributários; US$ 8,958 bilhões de “moedas podres” (dívidas do governo em poder dos bancos, como o nome diz, não tinham quase nenhum valor de mercado); e US$ 20,289 bilhões em financiamentos concedidos antes e depois das privatizações. Ao final das contas, a constatação é a de que o governo trocou U$ 83,473 bilhões (U$ 38.305 + U$ 45,168) por US$ 56,171 bilhões. Em outras palavras, o governo doou as empresas e, ainda, pagou aos compradores U$ 27,303 bilhões.
A segunda etapa do Plano Real foi marcada pela implementação de um índice monetário, a Unidade Real de Valor, (URV), em 27 de maio de 1994. A URV foi utilizada para restaurar a função de unidade de conta da moeda, que havia sido destruída pela inflação.
Na terceira, e última, etapa do Plano, foi introduzida a nova e atual moeda – o Real – em 1º de julho de 1994.
Assim, temos que: 1) a política econômica do Real foi concebida para combater e controlar o problema da inflação, 2) que a raiz do problema se encontrava no déficit do governo, o que causava dependência de empréstimos e exigia equilíbrio dos gastos. Daí que – para viabilizar a implantação do Real – o governo iniciou um processo contínuo de endividamento crescente.
O desempenho da economia pode ser comparado ao funcionamento de um carro, cuja velocidade é regulada pelo uso do freio e do acelerador. As situações de baixas taxas de geração de PIB e emprego significam lentidão, e podem ser corrigidas pelo uso do acelerador. Mas, em casos de inflação descontrolada a receita usual é a do “pé no freio”. Resumindo: se o desemprego estiver alto o sistema pede a expansão da economia, mas se, se tratar de inflação a exigência é de contração econômica.
Desdobramentos
do Plano Real
Ao reduzir os gastos públicos, naquele momento inicial, o governo diminuiu a sua participação na economia. Por outro lado, o processo de endividamento fez nascer o Serviço de Liquidação e Custódia-Selic, o que iniciou um processo contínuo de aumento das taxas de juros. Nestes dois ingredientes, estava embutido o propósito de eliminar o excesso de demanda.
O raciocínio do governo ao criar o Real pode ser resumido assim: se a inflação é causada pelo excesso de gastos, impõe-se, ao governo, ajustar as contas para acabar com ela, para tanto, basta adotar as medidas necessárias; 1) reduzir os gastos públicos; 2) aumentar a receita; e 3) endividamento público, enquanto as duas primeiras ações são executadas, até atingir o objetivo maior, que seria o controle total sobre a inflação. Com essas ações, o IPCA que fechou o ano de 1993 em 2.477,15%, caiu, no ano seguinte, para 916,46% e desceu a 22,41% em 1995.
Porém, durante a sua condução, a política econômica foi apresentando “efeitos colaterais” em vários setores – do governo, da economia mista e do âmbito privado. Com o fim da correção monetária, o setor financeiro foi um dos mais atingidos pela transição de hiperinflação para inflação baixa. Assim, com a justificativa de assegurar a solidez do sistema financeiro nacional, o governo editou na madrugada do dia 04 de novembro de 1995, uma Medida Provisória criando o Proer – Programa de Estímulo à Reestruturação do Sistema Financeiro Nacional.
O Proer embutiu um amplo pacote, dividido para atender às categorias bancárias: Proer (bancos privados), Proes (bancos estaduais) e o Proef (bancos federais). O Programa injetou R$ 169 bilhões em 32 bancos estaduais, e mais o Banco do Brasil, BNDES, Banco Meridional e a Caixa, controlados pelo governo federal, além de bancos privados como o Banco Nacional, Bamerindus e o Banco Mercantil. Apenas no paulista Banespa, o Banco Central colocou R$ 45,5 bilhões para cobrir o rombo, sendo que deste total, R$ 20 bilhões foram herança dos governos de Orestes Quércia, PMDB e de Mário Covas, do PSDB. Na prática, os bancos estaduais funcionavam como financiadores dos governos regionais.
O caso mais conturbado foi o do Banespa, que sofreu uma intervenção em 1994 e passou a ser administrado pelo BC até a sua venda para o espanhol Santander, seis anos mais tarde. Antes, 1990, o então governador Orestes Quércia, do PMDB, declarou: “Quebrei o Banespa, mas elegi meu sucessor”. Os rombos do Banespa e do Banerj – este, vendido ao Itaú em 1995 – custaram R$ 45 bilhões, em recursos corrigidos para valores de 2013.
Além da injeção financeira, o Proer fez surgir o Fundo Garantidor de Crédito, ampliou as regras para o controle do sistema financeiro, tornou o sistema mais forte, o qual passou imune à crise de 2008. Por outro lado, evitou os desdobramentos das consequências das quebras dos bancos Bamerindus, Nacional e Econômico sobre o sistema financeiro como um todo. Entre todas as instituições socorridas, estes três bancos, mais o Mercantil de Pernambuco e outras de pequeno porte, liquidaram seus empréstimos com o Banco Central. O resto, nem sinal.
Absolutamente nada do que o governo colocou nos bancos públicos, jamais foi recuperado, foi dinheiro entregue para cobrir irresponsabilidades dos governos. O impacto do Proer foi catastrófico sobre as finanças públicas, e, somado ao programa de privatização, comprometeu os fundamentos da política econômica. No ano de 1999, a Presidência da República, vetou 14 dispositivos da Lei de Diretrizes Orçamentárias, os quais requeriam ao governo a prestação de contas dos gastos do Proer ao Congresso Nacional. Ao final das contas, o obscurantismo do Proer rendeu ao então presidente, FHC, quatro pedidos de impeachment. Mas, na ocasião, o então presidente da Câmara, Michel Temer, nem sequer discutiu: arquivou os quatro pedidos.
O caminho do Real foi sendo reformado, ainda, para ajustamento às novas condições que a moeda vinha proporcionando. Assim, surgiu a âncora cambial. Mas, este é um assunto que cabe em outro “Contraponto”, que já está pronto para a próxima sexta-feira, dia 17.
* O autor é professor de Economia, jornalista e editor-chefe do Correio9.
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