Elias de Lemos (Correio9)
Centrão e oposição se juntaram para tirar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Justiça
Esta quinta-feira (9) foi atípica para os padrões do Congresso Nacional. A Comissão Mista que analisa a Medida Provisória (MP) 870/2019, que altera a estrutura da administração federal, impôs uma derrota ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, ao Governo de Jair Bolsonaro (PSL), aos setores que apoiam o combate à corrupção e, na verdade, a toda a sociedade brasileira.
A labuta em que se tornou a votação evidenciou, mais uma vez, a falta de articulação entre o governo e o parlamento, mas, deixou clara a resistência de senadores e parlamentares em aperfeiçoar mecanismos de investigação contra a corrupção.
A MP 870 – assinada no primeiro dia do novo governo – trata da reforma ministerial proposta por Bolsonaro e, para se tornar definitiva, precisa de ser transformada em lei, porque a medida perde efeito no início de junho. O principal ponto de divergência é a transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o ministério da Justiça. O grupo contrário reúne, informalmente, um bloco de partidos formado por PP, PR, PRB, SD, DEM, MDB e PTB.
O Governo fez concessões e orientou o relator da MP, senador Fernando Bezerra (MDB-PE), a acrescentar, no texto, uma emenda para limitar as competências investigatórias de auditores da Receita Federal. Na prática, a medida cria impedimentos à participação da Receita em investigações de crimes de corrupção, por exemplo, o que acendeu sinal vermelho no Ministério Público Federal (MPF) e outros setores que atuam no combate à corrupção.
É claro que o governo foi derrotado. Afinal, a transferência do órgão para a pasta da Justiça é parte do discurso anticorrupção, que fundamentou a campanha do presidente. Mas, é claro, também, que o Brasil inteiro saiu perdendo.
A intenção de leva-lo para o Ministério da Justiça poderia fortalecer o Coaf. Independentemente de posicionamentos políticos, é importante observar que a transferência não é uma questão política do Ministério da Justiça ou do governo, na verdade é uma política de Estado.
No mesmo dia o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), decidiu que as medidas provisórias serão votadas em plenário na ordem em que foram editadas, decisão que pode fazer a medida provisória 870, perder a validade.
O presidente da Câmara disse que será difícil aprovar a MP dentro do prazo, em especial porque a base do governo “ainda está um pouco desorganizada”. Para aprová-la, o Governo vai ter que se organizar rapidamente e formar uma base para conseguir ultrapassar todas as medidas provisórias, que estão na fila, para chegar na medida provisória 870.
Desde que foi anunciada, a realocação do Coaf encontrava resistência entre os integrantes da comissão. Para não perder os dedos, o governo ofereceu os anéis. Nas negociações, cedeu e aceitou recriar dois ministérios a partir de um atual, deixando a redução total de ministérios de 29 para 23, e não mais 22, como previsto inicialmente. Mas mesmo essa movimentação do governo de recriar os ministérios das Cidades e da Integração Nacional a partir do desmembramento do Ministério do Desenvolvimento Regional não foi suficiente para evitar a derrota na disputa pelo controle do Coaf.
Ao mesmo tempo em que impôs a derrota em relação ao Coaf e à definição da competência de demarcação de terras indígenas a cargo da Funai – aprovada por 15 votos a 9 –, a comissão manteve o polêmico trecho do parecer que delimita a atuação de auditores fiscais da Receita Federal.
O dispositivo altera uma lei de 2002 para definir que a atividade desses servidores fica limitada, em matéria criminal, à investigação de crimes no âmbito tributário ou relacionados ao controle aduaneiro. O texto também prevê que os indícios de supostos, ou eventuais, crimes identificados no exercício da função, o auditor-fiscal “não podem ser compartilhados, sem ordem judicial”. Na prática, a norma elimina a possibilidade de cruzamento de informações de outros órgãos controladores com dados da Receita Federal.
O grupo contrário à proposta foi além de enviar um recado ao governo. Mas, também, de dar uma lição no ministro Sérgio Moro, que foi o personagem principal, enquanto juiz, contra a corrupção e de minar, pouco a pouco, o arranjo institucional que permite as investigações complexas que sempre foram o centro dos esforços da Operação Lava Jato.
O movimento orquestrado por deputados do “centrão” e os setores não comprometidos com a moralização da prática política brasileira, parecem não ter entendido a mensagem enviada pelas urnas (nas eleições de 2018) e continuam fora de sintonia com o projeto de país que a maioria da população brasileira quer construir. A atuação do bloco nesta quinta-feira deixa claro que a sociedade deverá estar atenta a outras manobras dessa natureza.
Por outro lado, não é possível isentar o governo do fracasso. Quando ficou claro o resultado da votação na Comissão, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), passou a defender o texto, mesmo com todas as mudanças, como o texto possível, e que preservava “95%” das mudanças. Ciente de que outro resultado não seria possível, porque o clima no plenário – especialmente na Câmara – é ainda mais desfavorável que na comissão, o governo deu sinal verde e, com a ajuda de Rodrigo Maia (DEM-RJ), chegou a um acordo de líderes, inclusive com a oposição, para que a MP fosse votada em plenário ainda nesta quinta-feira. Havia inclusive a possibilidade de que a votação acontecesse também no plenário do Senado, afastando de vez o perigo de que a MP perca a eficácia sem que tenha sido transformada em lei.
É compreensível que muitos deputados se oponham ao texto que saiu da comissão, e que muitos novatos ainda não consigam perceber tudo o que está em jogo. Mas o fato é que a perspectiva em plenário é ainda menos otimista e que o governo não foi capaz sequer de alinhar o próprio PSL.
Na prática, a falta de liderança e de articulação transformou quatro derrotas e várias vitórias na possibilidade de uma derrota completa. Mas, não uma derrota para o governo, como vem sendo tratada. Foi uma derrota para o País, que perde a oportunidade de aprimorar suas instituições e fortalecer o combate ao crime e à corrupção.
Diante da falta de uma base aliada fica difícil antecipar possíveis novas derrotas, que podem ser ainda piores em matérias de repercussões maiores. O que é fundamental é que pelo menos o governo aprenda uma lição – e rápido. Era até de se esperar que houvesse alguma lentidão nessa tramitação, especialmente tendo em vista a renovação do quadro congressual nas últimas eleições, mas há um limite para isso, caso contrário pode colocar em risco todo o governo.
Por outro lado, a sociedade tem de ficar atenta e encontrar mecanismos para pressionar os deputados que continuam atuando contra os esforços de combate à corrupção. As seguidas derrotas do governo no Congresso têm sido justificadas em nome da “falta de diálogo”, do presidente com o parlamento. Na prática a “falta de diálogo” pode ser traduzida como o fim da velha prática política do toma-lá-dá-cá, imposto por Bolsonaro.
Existem inúmeros problemas carentes de mudanças no Brasil. Nenhum deles é, do ponto de vista técnico, tão difícil de mudar. O que falta é vontade política para isso, pois, antes de decidir, nossos congressistas pensam primeiro em como a norma poderá atingi-los, depois, pensam (será?) no povo.
O saudoso deputado Ulysses Guimarães, dizia que “a corrupção é o cupim da República”. Bolsonaro tem dito: “Muitos não querem abandonar a velha política”. Parece que os dois têm razão.
* O autor é economista, professor, jornalista, escritor e editor-chefe do Jornal Correio9
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